Opinião

Isto é América, como cantou Childish Gambino

Marissa J. Moorman |*

O golpe que aconteceu quarta-feira no Capitólio dos E.U.A não me surpreende, mas estou furiosa e cheia de dúvidas. Nós presenciámos, pela televisão e pela media, o assalto de milhares de apoiantes de Donald Trump.

09/01/2021  Última atualização 08H00
Foi um acto de terrorismo doméstico, instigado pelo próprio Presidente. O assalto foi mais do que previsível. Desde a sua derrota eleitoral, em Novembro de 2020, Trump recusa-se a aceitar a eleição; está a espalhar mentiras; a montar teatro político e a fomentar a violência. Ele tem estado a promover a violência e equivalências falsas já há muito tempo. E tem feito isso como fez em resposta à violência racista em Charlottesville, em 2017. Mas tem feito sozinho. O que vimos no dia 6 foi o resultado do trabalho assíduo de alguns republicanos, a falta de política clara e construtiva relativamente à informação nas plataformas de media social e o crescimento do populismo baseado no racismo, que é o irmão gémeo da democracia americana.  

Trago à tona alguns detalhes importantes. Primeiro, falo dos líderes americanos, os representantes e senadores eleitos pelo povo. O Presidente Trump é uma figura eleita. Deve representar os interesses de todos os americanos. Mas nunca foi assim. Logo, antes do assalto, Trump falou para a multidão na manifestação que ele anunciou  em meados de Dezembro, iria ser um ‘dia louco.’ Os senadores Josh Hawley (republicano do Missouri) e Ted Cruz (republicano do Texas) lideraram o movimento no Congresso de se opor à aprovação da eleição (no acto do voto de aprovação dos eleitores de cada Estado).

 Hawley, entrando no Capitólio, passou pela multidão e levantou o punho para os encorajar. Ambos, Hawley e Cruz, já declararam interesse em concorrer à presidência, em 2024. Querem ganhar a fidelidade dos apoiantes de Trump. Mesmo que alguns republicanos tivessem desistido de se opor aos resultados do Colégio Eleitoral (incluindo figuras de destaque como Lindsey Graham e Mitch McConnell), oito senadores e 147 representantes insistiram em votar, para inverter a eleição. O partido republicano que mais dividido do que me lembro. 

Até agora, a Polícia deteve somente 63 pessoas, algumas com armas (ilegal no Capitólio), a maioria por ter violado o recolher obrigatório, um homem com uma arma automática e 11 cocktais Molotov. Bombas caseiras foram encontradas próximo das sedes dos partidos republicano e democrata no Capitólio. As bombas foram desactivadas, mas a Polícia, até ao momento, não prendeu ninguém.  A primeira imagem que vi, quarta-feira, quando liguei a televisão, foi de um homem com a bandeira do Confederado pousada no ombro, passeando pelo Capitólio. Calmamente. A base destes apoiantes de Trump são supremacistas brancos. Via-se proclamado nas suas roupas - camisolas, casacos e chapéus - com as palavras "guerra civil, confiem no plano” (lema do grupo extremista e conspiratório QAnon), "Deus, Armas, Trump”, e "Camp Auschwitz”, para além de uma variedade de bandeiras. Muitos acreditam na superioridade dos brancos. Como Trump, entendem-se como vítimas, em vez de enfrentar a realidade do capitalismo neoliberal. 

Restam muitas dúvidas sobre os acontecimentos do dia 6 de Janeiro de 2021. Muitos perguntam: como entender a falta de preparação da Polícia? O facto daquela fraqueza e chamada falta de preparação levanta questões. Como é que, em poucos minutos, a multidão conseguiu entrar no Capitólio, com a Polícia quase em debandada? Dizem que o prédio é um labirinto, cheio de esconderijos feitos a propósito. Como é que, rapidamente, alguns dos invasores conseguiram localizar o gabinete de Nancy Pelosi? 

Já muitos jornalistas e activistas se têm perguntado como foi a resposta assim tão fraca e, às vezes, amigável, quando, no caso dos protestos organizados pelo movimento Black Lives Matter, há sempre o uso da força, que resulta em prisões massivas e violência contra manifestantes. Os Fro-americanos costumam falar em crime de "andar enquanto negro” ou "conduzir enquanto negro”, para descrever o tratamento prejudicial da polícia para com os negros. No dia 6, vimos a facilidade no comportamento dos assaltantes, quando entraram no Capitólio. Um disse que a Polícia "estava fixe” com eles. Como cantou Childish Gambino, em 2018, ‘This is America’ (Isto É América). É uma América que facilita a violência dos brancos, mesmo num acto de traiçãoe violenta o negro no seu dia-a-dia.

Os peritos dizem-nos que não foi um golpe, mas uma insurreição perigosa, que representa o surgimento de autoritarismo democrático, tal e qual temos visto na Turquia, Venezuela, Hungria e no Brasil. Mas a falta do envolvimento visível das forças armadas não quer dizer que não houve um golpe e que não havia cumplicidade de algumas autoridades das forças armadas. É uma questão aberta. E a informação que se vai revelando não é abonatória. O Pentágono, nos dias 4 e 5 de Janeiro, não autorizou o uso de armas à Polícia  nem à Guarda Nacional.   A demissão das autoridades de segurança do Capitólio não basta. Tem de haver uma comissão investigativa que toca os níveis mais altos e, depois, uma prestação de contas.                                     * Professora de História da Universidade de Chicago

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