Entrevista

Ilídio Brás: “É preciso dar melhor tratamento aos músicos mais velhos”

Carlos Miranda

Jornalista

Tem-se dito que a concorrência no mercado músico-cultural angolano é “desleal”, muito feroz. Existem os que resistem com os seus próprios meios; outros, nem tanto assim…. Resistem como podem, suplicando aqui e ali apoios institucionais ou não. Muitos destes promotores e produtores musicais veteranos, ligados fundamentalmente aos verdadeiros estilos “mwangolês”, foram capazes de sobreviver e já lá vão quase cinquenta anos de resistência pura e dura...

03/08/2024  Última atualização 10H21
© Fotografia por: Rafael Taty | Edições Novembro

Destes homens, restam poucos com uma trajectória tão longa. Ilídio Brás é um deles e   conta como foi resistir à fase mais crítica por que passou o movimento musical angolano, com o Semba e outros estilos nacionais de raiz quase a serem enterrados ou votados ao esquecimento. Vamos à conversa? 

O senhor Ilídio é mais conhecido como homem da Cultura. Mas desde quando é que sentiu essa predilecção para inserir-se neste sector e vingar através da música? Sofreu alguma influência familiar ou não, enfim, do próprio meio em que viveu?

Influências? Bastantes. Eu faço parte de uma família que sempre esteve ligada à organização de eventos, à música nos bairros. Por exemplo, eu tive um tio que sempre viveu no Marçal, onde ele possuía um espaço enorme chamado o "Terraço do Senhor Jacinto”.  Nesta altura tinha eu uns dez anos e já sentia uma certa influência da música e o contacto com as bandas e artistas renomados. Também tinha os meus irmãos mais velhos (sou o último) e estes, já no Bairro Operário, também organizavam festas de contribuição bastante animadas entre amigos e familiares.

Os seus irmãos já imaginavam que seria um homem fortemente ligado a este movimento cultural que perdura até hoje?

Sim, porque depois, com os meus dezassete anos, eu já tinha uma estrutura de base para me impor de alguma forma. Tinha uma boa aparelhagem constituída por um leitor de cassetes e algumas colunas, para começar. Falando ainda em influências, devo realçar a presença de Voto Gonçalves, meu cunhado, em minha casa, depois de ensaiar num espaço localizado na Rua de Benguela, pertencente à família Adriano, um lutador pertencente ao grupo dos famosos Taborda, Xavier e outros profissionais de Luta Livre. Neste espaço, tocava-se muita música urbana moderna e um dos frequentadores assíduos era o meu cunhado. Influenciou-me com a sua experiência, mas, passo a passo, comecei a criar condições técnicas melhor estruturadas e já com espaço próprio no Miramar, nos anos 76, 77 por aí…

Parece-me que a sua vida, com aquela idade, era feita sem muitas preocupações, num tempo permanente de guerra como aquele… Nunca foi à tropa?

Eu fiz recruta! Mas eu tinha a minha parte levada a sério na Educação, na Academia e isto naquele tempo nos permitia que tivéssemos ``adiamento militar´´. Fiz a recruta e praticamente em todos os anos fazia inspecção militar.

Portanto, Miramar, Bairro Operário… Nesta zona existiam muitos DJ, grandes e bons… Alguém em especial que tenha seguido as peugadas e marcaram a sua trajectória?

Sim, mas podemos recuar para os "monstros” que surgiram há muito mais tempo. Há dias, infelizmente registámos com pesar o falecimento do "Ti” Pereira, que com o Zeca Povinho fazia uma dupla extraordinária. Também havia   o Zé da Yamaha e o Artur (não me refiro ao Arturinho – o Ramos). Foi com o Artur que surge o Mangalha…

Nesta altura já havia esta concorrência, como a que hoje existe, por vezes desleal, com "beefs” pelo meio?

Não, não havia. Era uma coisa feita com muita vontade, muita camaradagem entre eles, os mais velhos… Quando um precisasse de um disco, emprestava-se…enfim, havia uma vida saudável.

O Mangalha continua a ser uma referência para si?

Sim, naturalmente!

Que tipo de lições de vida ele continua a passar para si?

Ele era uma pessoa extremamente aplicada na sua carreira como "discotequeiro” e muito envolvida noutros projectos culturais. Pela sua maneira honesta de ser e estar, com Mangalha, as pessoas sentiam-se bem, muito à vontade, com mais alegria.

Já naqueles anos pressentia que havia de chegar até aqui, como produtor musical de destaque na nossa praça?

Sim, sente-se sempre com um pé mais à frente. A nossa carreira é um desafio. Hoje tenho cinco discos, mas já perspectivo que dentro de alguns meses produza outro… Mas já sabia naquela altura que o caminho era esse, sim.

E o estúdio? Como é que surge o estúdio, a gravadora BRASOM?

 O estúdio surge depois de outras etapas. Estávamos a falar de outras etapas…. Da aparelhagem e depois foi tudo crescendo… Os equipamentos foram se multiplicando e então começámos a fazer festas de casamento, aniversários etc., e depois passamos a prestar serviços de som para os conjuntos. Então, daí o grande salto para o investimento da BRASOM, criada em 1985, não especificamente como uma gravadora, mas como espaço de encontro de alguns conjuntos que faziam aqui ensaios; não tão bem como se fazem hoje, mas já havia alguma qualidade.

Também há um espaço para história neste contexto. Ainda em 1984, Luanda praticamente não tinha recreação nenhuma, pois foi mais ou menos nessa fase que houve a "morte” dos centros culturais, recreativos, dos centros sociais, tais como o Desportivo União de S. Paulo, o Ginásio etc., etc.

É uma época que pode voltar?

Não, não. É uma época de facto para esquecer!

Mas esquecer como? No sentido positivo ou negativo?

Extremamente negativo, pois quase não tínhamos nada e, então, nós tínhamos que nos reinventar. E a reinvenção o que é que foi? Então ressurgiram as pequenas festas de contribuições e o aparecimento dos "dancings”. Os primeiros "dancings” de Luanda foram o Paralelo, BRASOM, Bambix, Pandemonium, Cunene 2000, Horizonte… enfim, isto é uma parte a partir da qual a BRASSOM teve, também, que se reinventar.

 Fizemos "dancings”, de 1984 até muito próximos dos anos 90, e, a partir dali, tivemos que fazer umas transformações em termos de obras com alguma envergadura.

Sabe-se que o Ilídio Brás é um homem defensor do Semba, fundamentalmente… A partir de 80 como é que lidava com outros estilos musicais que fizeram com que o Semba ficasse quase esquecido?

 Há um factor que nos levou a isso. O desaparecimento da própria actividade musical e a entrada no nosso mercado da música cabo-verdiana, das Antilhas, da música latina, a salsa, os plenas etc.

Então vocês como angolanos não se sentiam mal naquela altura ou preferiram seguir a "onda” para puderam fazer a vossa vida?

Era um bocadinho seguir a "onda”, porque na altura não tínhamos força, uma expressão forte para pudermos resgatar o nosso Semba e outros estilos musicais nossos. Éramos jovens, não tínhamos como aparecer e tínhamos de sustentar a máquina…

Nesse momento, o senhor sente que o Semba está mesmo a "bater”? O Semba está colocado no seu devido lugar ou pode alcançar patamares muito mais elevados?

Está, está… O Semba está no bom caminho, embora atrasado porque os passos estão a ser muito lentos. Quem tem de fazer a coisa a andar muito mais depressa tem de ser o Estado. O reconhecimento, a internacionalização para colocar os músicos noutros palcos…

Como já se fez em algum tempo como a realização do Projecto "Calunga”, por exemplo?

Sim, também se fez com o Projecto "Angola 70” … Isto devia ser feito, agora com muito maior regularidade, principalmente aonde a nossa comunidade é grande.

Sente que o actual elenco que está à frente do Sector da Cultura está interessado?

Sim, o Sector agora ficou mais facilitado, porque   emagreceu. Uma das coisas que eu tive de dar sempre uma nota negativa é quando se fez a junção daquele ministério grande, que era o Turismo e    Ambiente. A estrutura era muito pesada e a parte da Cultura ficava para trás, quando devia ser apenas um Ministério a tratar apenas da Cultura. Hoje está mais facilitado.   E aí, sim, casa bem e, sobretudo, porque as pessoas que estão à frente da Cultura conhecem o meio…

Agora, uma curiosidade que, julgo eu, tem alguma relevância: conhece o ministro da Cultura, como músico? Como cidadão, se o encontrasse, quer a título particular ou oficial, o que é que lhe sugeria para que este quadro fosse melhorado ainda mais em termos da divulgação do Semba?

O que eu, no fundo, lhe pediria, seria dar um melhor tratamento à classe de músicos, particularmente àqueles da outra Era, com muitos anos de estrada, com muita coisa ainda para transmitir. Infelizmente, hoje já não são muitos. Uns já partiram, outros estão desligados da actividade cultural, mas aos poucos que existem deve-se dar mais apoio, quer material, institucional, financeiro, enfim de todas as formas para que a essa nova geração se reveja neles e tenha motivos de dizer: "nós também vamos trabalhar, porque afinal os nossos mais velhos estão a ser reconhecidos; e se nós trabalharmos ainda mais do que eles, mais rápido virá o reconhecimento e melhor ficará reconhecida a nossa música”. 

E o que é que o senhor particularmente tem feito para que esse sonho se realize? Refiro-me à vossa classe…

O que nós temos de espaço aqui no Miramar é para dar apoio aos nossos músicos. Eu recordo que em determinada altura, em Luanda, não existia nenhum espaço para que os músicos ensaiassem. E estava-se sempre na exigência…. Dizia-se que os nossos músicos não criavam, não inovavam, não trabalhavam. Ora, aquilo não era problema dos músicos. Eles não tinham condições. É a mesma coisa como uma equipa de futebol. Para atingir patamares excelentes de competitividade, é preciso que todos os jogadores treinem com regularidade.

É aí que surge o seu Projecto "Dizu Dyetu”?

O "Dizu Dyetu” está a caminho de três anos de existência. A nossa contribuição para a Cultura é o surgimento deste conjunto que, no fundo, nem é um conjunto; é mesmo um Projecto que basicamente se assenta em vários aspectos, particularmente no resgate da nossa música do passado, focando fundamentalmente nos nossos ritmos que são o Semba, o Kilapanga, o nosso Rumba angolano, os nossos ritmos do Leste…. Portanto, é resgatar tudo isto e fazer com que as pessoas que estejam no activo, os nossos bons músicos, façam parte deste Projecto.

Então, quais são os   kotas que têm colaborado nesse sentido? Eles aparecem?

Eu até vou dizer o seguinte. Era melhor fazer a pergunta ao contrário. Perguntar "quem ainda não apareceu”? Praticamente apareceram todos, desde que nós nos revelámos!

Todos? Mas refere-se a que faixa etária?

Dos sessenta anos de idade para cima. Elias Dya Kimuezu, Carlos Lamartine, Dionísio Rocha, enfim, a lista é enorme. E mesmo para a coisa não ficar apenas pela palavra, muita coisa já foi feita. Nestes três anos, depois de termos completado dois anos, tivemos a ideia de fazer um documentário áudio-visual que retratou o objecto deste Projecto, com depoimentos de gente importantíssima, principalmente da classe jornalística ligada à Cultura, os eventos já realizados, os sítios onde nos exibimos, enfim.

Há algum outro projecto em mão para divulgação do Projecto "Dizu Dyetu”?

Durante, ainda, este ano, vamos fazer um single com algumas faixas musicais, umas já conhecidas, com uma outra roupagem e provavelmente outras inéditas.

E a confiança entre a nova geração e a velha?

É muito boa! Só para vermos o seguinte: neste momento nós temos elementos com mais de setenta anos no grupo, todos eles executantes e temos outros elementos com vinte e poucos anos de idade. Já é a terceira geração. Já não são filhos, são netos deles. Na música, felizmente consegue-se fazer a mistura de gerações com diferença de idades muito grande.

Voltando à carga da Cultura. Os produtores também devem ter Carteira Profissional?

Felizmente já a temos. Outra forma para   ajudar a desenvolver de forma sustentável a Cultura foi a instituição da Carteira Profissional. Neste contexto, a criação do nosso Projecto Dizu Dyetu   ajudou o surgimento da Carteira Profissional para os músicos, promotores, técnicos ligados ao som, produtores, enfim, para a classe que lida com o sector da Cultura e Artes. A Comissão encarregue de ver a situação da Carteira profissional está a trabalhar e o processo está a andar…. É importante referir que o problema da Segurança Social também está a tomar um curso muito bom, começando, naturalmente, pelos músicos antigos.

Tem estado em permanente ligação com os músicos radicados na diáspora?

Tenho, porque a minha relação com os músicos angolanos e cabo-verdianos na diáspora é muito forte. Temos uma ligação muito estreita. Por cá, já passaram muitos músicos cabo-verdianos, pois no nosso espaço BRASOM muitas vezes fazemos shows intimistas e muitos deles são, também, convidados, para além dos nossos artistas, é claro. 

Este tipo de espectáculos não têm tido muita divulgação. Há aqui uma falha em termos de marketing por parte da vossa empresa?

Como aquilo é intimista e o espaço não é muito vasto, ainda não demos este passo. É um grupo de convidados que para nós nos satisfaz, por enquanto. Não os fizemos regularmente. Por vezes, aproveitamos para comemorar uma data, como foi o caso do "Março Mulher”, em que fizemos um show com as nossas senhoras. Fechámos, no ano passado, com uma grande figura que é o Sam Mangwana. Este, sim, tem de ser urgentemente melhor reconhecido porque é o nosso Rei da Rumba. Ele   é, nada mais, nada menos, do que o último sobrevivente dos grandes rumbistas de África! Com ele, como companheiros de palcos internacionalmente reconhecidos, o Bonas Pedro, todos aqueles integrantes fantásticos da Orquestra TP Ok Jazz, os músicos do Centro de África, enfim, ele é o único sobrevivente, com vida, com saúde, que continua a exercitar a música.

Quem é que mais gostaria de convidar, além do Sam Mangwana?

Há muitíssimos músicos. Mas este ano, para já, vamos convidar o Paulo Flores, que está prestes a fazer por Angola uma grande "tournéé” para fazer espectáculos de beneficiação. Daí vamos aproveitar para fazer mais um show intimista…

Também não é fácil contratar estes gigantes da música angolana e internacional…

 Não, não é. A estrutura que nós temos não facilita. Isto que vamos fazer é por uma questão de parceria, porque desde os tempos que já lá vão, ele tem utilizado o nosso espaço para ensaiar.

Nestes cinquenta anos de carreira que benefício teve?

Em termos gerais, foi mais de arranjarmos boas referências, boas relações de convivência salutar permanente com as pessoas, no sentido de um compromisso moral que sempre tivemos para com a sociedade. Parte dos nossos objectivos já está consolidado. Aliás, nas relações que fomos construindo com as pessoas com necessidades e outras com situação social boa, deve-se mesmo a um elemento fundamental: a música. Não conseguimos fazer nada sem música!

Uma trajectória de resistência

Ilídio de Jesus Brás Martins nasceu aos 22 de Dezembro de 1962, em Luanda. Oriundo de uma família proprietária de uma extensa área de cultivo, transformação e comercialização de café na província do Uíge, mais propriamente na região de Mucaba (arredores de Maquela do Zombo). Entretanto, destruída e abandonada no tempo da guerra anti-colonial.

O "big boss” da Brasom cresceu e fez-se homem nos bairros Terra Nova, Bairro Operário e Miramar, onde, definitivamente, mostrou-se ao mundo como um dos principais promotores e produtores musicais; não foi fácil esquecer o passado, a transição da sua família para Luanda, as dificuldades vivenciadas num novo mundo caluanda atribulado, mas em que, todavia, foi possível nascer, crescer e ser feliz.

…. Está-lhe no sangue esta arte de juntar pessoas no mesmo espaço, fazê-las viver de forma sossegada, alegre e, sobretudo, tentar fazer com que elas, nem que fosse por algumas horitas, esquecessem as agruras da vida quotidiana de Luanda, ontem, hoje e sempre cheia de problemas de todo o tipo.

Sim, "juntar as pessoas” foi, é, a sua sina… Ilídio Brás carrega este objectivo há cinquenta anos, mas a sua trajectória como "discotequeiro”, depois DJ e mais tarde produtor e proprietário de um dos melhores espaços culturais de divulgação da música angolana, especialmente o Semba, nem sempre foi preenchida por "vidas largas e estrelas ao luar”, como certa vez disse o mais-velho Mangalha. Mangalha que, por sinal, é um dos seus ídolos mais influentes nesta verdadeira arte de mostrar o que se vale quando se está diante de uma "aparelhagem” de som exibido com qualidade, gosto, profissionalismo e…decência na competitividade feroz que se vive no planeta músico-cultural e comercial angolano. 

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