Opinião

Hermenêutica biográfica e ética do medo

Luís Kandjimbo |*

Escritor

Em 2004, o filósofo português José Gil, natural de Moçambique, escreveu um livro cujo título é suficientemente apelativo para quem tem a curiosidade de mergulhar nas profundezas da psicologia da alma portuguesa e suas síndromas lusitanas.

02/04/2023  Última atualização 09H11

Adoptando uma focagem ética, ele tematiza o medo estrutural que impregna a sociedade portuguesa. Donde deriva o fenómeno da "não-inscrição”, isto é, "nada tem efeitos reais, transformadores, inovadores, que tragam intensidade”, à vida colectiva portuguesa. No dizer de José Gil, trata-se de um legado do salazarismo e da sua ditadura, caracterizado pela inexistência de comunidades artísticas, científicas, filosóficas e literárias. Estas são manifestações expressivas do que pode ser um espaço público. Enfim, "o medo é uma estratégia para não inscrever”, o "trauma da não-inscrição”, escreve José Gil. Portanto, o medo em Portugal herda-se. Por força das contingências históricas, parece-me ser relevante a interpretação da síndrome lusitana, esse traço que distingue a personalidade colectiva portuguesa cujas marcas históricas impregnam ainda hoje a sociedade angolana. Na tradição do pensamento ético, existem vários tipos de medo. O filósofo alemão, Hans Jonas (1903-1993), na sua ética da responsabilidade fala, por exemplo, do "medo patológico” hobbesiano ou ainda do "medo espiritual” kantiano.

 

Ética do medo

Apesar de ser um fenómeno que releva da psicologia, o medo, individual ou colectivo, suscita diálogos interdisciplinares com outros domínios do saber, tais como a antropologia, a filosofia, a história e a sociologia. Dentre os clássicos europeus, Bento de Espinoza (1632–1677)continua a ser um filósofo importante, no que diz respeito ao debate sobre a ética do medo. Definia o medo como "uma tristeza inconstante nascida da ideia de uma coisa futura ou passada cujo resultado duvidamos em alguma medida”.  Caracterizava-o como sendo "um desejo de evitar um mal maior, que tememos, por um menor”. No campo da filosofia ocidental, considera-se que o medo é um tópico negligenciado, por ser confinado ao universo da psicologia e, residualmente, da filosofia moral.  Ora, a problematização do medo  na ética de Espinoza proporciona reflexões que conduzem à conclusão segundo a qual o medo aponta sempre para um horizonte de esperança. No século XX, tal como afirmava Hans Jonas, tornou-se necessária uma "heurística do medo” que rastreasse o perigo, que não só lhe revelasse e expusesse o objecto novo como tal, mas que até ensinasse algo sobre o interesse ético que esse objecto permitia observar (embora sem registo anterior), ao reconhecer-se a si mesmo.

Em 1978, o historiador francês Jean Delumeau (1923-2020), um dos integrantes da Escola dos "Annales”, interrogava-se acerca do silêncio prolongado sobre o lugar do medo na história ocidental. Em seu entender, tal se devia a uma "confusão mental generalizada entre medo e cobardia, coragem e imprudência”.

 

Tipos de medo

As interrogações sobre o silêncio dão igualmente o tom às referências que José Gil associa ao medo, no seu livro. Entretanto, a classificação do medo e de seus tipos, existentes na sociedade portuguesa, não parece ter sido a preocupação do filósofo português. Mas a leitura das obras que constituem a literatura colonial e a literatura da guerra colonial permite chegar a uma conclusão. É possível identificar a existência de diferentes manifestações de medo, em Portugal e nas comunidades portuguesas residentes nos territórios das colónias em África. Desde logo, saltam à vista quatro tipos de medo: 1) o medo institucional que legitima o Estado policial português; 2) o medo do Outro, o Africano; 2) o medo do inimigo agonístico, durante a guerra colonial; 3) o medo, virtual e difuso, como expressão de pânico na sociedade portuguesa.

O primeiro tipo revela a génese da institucionalização de dispositivos de produção e controlo do terror e do medo. Tem início em 1930 com a criação da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado que, em 1945, foi transformada em Polícia Internacional de Defesa do Estado.

O segundo tipo acompanha os processos com os quais se renova a colonização de Angola e Moçambique  e o seu povoamento, através das vagas sucessivas de envio de colonos portugueses. Os outros dois tipos restantes de medo constituem variações do segundo.

 

Medo do inimigo

No contexto do povoamento massivo português de Angola e Moçambique predominava o medo do Outro. Já a partir do desencadeamento da luta de libertação nacional que, para os portugueses, representa o momento genético da guerra colonial, uma das primeiras narrativas que revelou a natureza do medo cultivado contra os Africanos foi o livro intitulado "Guerra em Angola” de Hélio Felgas(1920-2008), publicado em Novembro de 1961. Hélio Felgas foi militar de carreira, tendo chegado a ocupar o cargo de governador distrital. Com esse livro estavam a ser lançadas as bases para o surgimento de outro tipo de medo que até aí não existia: o medo do inimigo agonístico. Trata-se de um tipo de medo que foi explorado pela imprensa, tendo dado lugar ao desenvolvimento do pânico generalizado, no chamado país dos "brandos costumes”.Hélio Felgas construía aí uma narrativa da gesta lusitana que à luz do Direito Internacional corresponde a uma ocupação qualificada como agressão que atenta contra as comunidades históricas angolanas e seu direito à autodeterminação e descolonização. Ao mesmo tempo, procedia à descrição dos efeitos devastadores da violência legítima dos movimentos de libertação de Angola. Por um lado, Hélio Felgas exaltava um presumível carácter benigno do colonialismo. Por outro lado, condenava a natureza maligna da guerra justa em Angola que tinha fundamento ético e jurídico-internacional. A descrição dos presumíveis "massacres do Cólus, Úkua e Lukunga” e outros actos de violência legítima praticados pelos guerrilheiros em localidades da região do Norte de Angola são atribuídas a "terroristas”.  O pânico se tinha apoderado das populações de colonos portugueses que já se sentiam apavoradas com os relatos do que tinha acontecido com os belgas no Congo-Léopoldville.

 

Pânico moral

Apesar de não ser assim classificado, o estado anímico das populações de colonos portugueses, instalados nos territórios das colónias, após 1961, podia ser classificado como pânico moral. Discute-se acerca da origem, autoria e formulação desse conceito. A paternidade da sua elaboração é atribuída a dois autores. Nas décadas de 60 e 70 do século XX, o teórico da cultura, Marshall McLuhan (1911-1980), no seu livro "Understanding Media: The Extensions of Man” [Para Compreender os Meios de Comunicação Social: Extensões do Homem], (1964), enunciou a ideia de pânico moral, pela primeira vez. Mas foi Stanley Cohen (1942-2013) com o seu livro"Folk Devils and Moral Panics” [Demónios Populares e Pânicos Morais], (1972), que desenvolveu o conceito analítico de pânico moral.

Para Stanley Cohen o pânico moral deve ser definido como uma ameaça aos valores e interesses sociais que são levados ao conhecimento das sociedades, através dos meios de comunicação social. Nesta perspectiva, os principais agentes de pânicos morais são esses meios de comunicação de massas, que publicam ou transmitem histórias sobre supostas ameaças; o público em geral, que se comporta em conformidade com o que se transmite; os políticos, que apresentam propostas, aprovam legislação e procuram vê-las aplicadas; e os activistas de organizações não-governamentais e movimentos sociais.

Inventariadas as diferentes formulações de uma "heurística do medo”, tal como propõe Hans Jonas, poder-se-ia admitir que o pânico moral tem vindo a ser definido à luz de critérios históricos respeitantes a valores absolutos. Por exemplo, a indignação perante a violação de tais valores, os comportamentos censuráveis, as preocupações morais perante ameaças e perigos sociais.

Não se esgotando numa exclusiva conceptualização sociológica, o pânico moral é um conceito ético que tira proveito do contexto político e intelectual das lutas da década de 60do século XX, como vimos. Mas em finais do século, isto é, nos anos 1990, o conceito evoluiu e alargou-se, cobrindo também fenómenos como os que configuram os efeitos traumáticos da guerra colonial, alguns dos quais são relatados pelas mulheres portuguesas, esposas dos militares que viveram experiências singulares em África. Para o caso de Portugal são os novos pânicos morais, os do tempo das democracias.

 

Narrativas do medo

As histórias de vida são narrativas que têm uma grande utilidade para a heurística do medo do inimigo agonístico com que se confrontaram os portugueses, durante a guerra colonial. É o caso do registo da memória biográfica de mulheres portuguesas que acompanhavam os seus maridos que, por força da conscrição militar, eram recrutados para a também chamada "guerra de África”. Em 2007, foi publicado um livro, "As Mulheres Portuguesas e a Guerra Colonial”, que junta vinte e um depoimentos de esposas de militares que aceitaram deslocar-se e fixar residência temporariamente em cidades ou zonas operacionais da guerra colonial, tais como Bissau, Uíge, Moxico, Kuando Kubango, Sanza Pombo, Beira, Quelimane, Macímboa da Praia, Niassa, Nampula. No entender de Sofia Branco, a autora da recolha desses relatos biográficos, a presença dessas mulheres, nos territórios coloniais em guerra, garantia a estabilidade aos maridos.

A hermenêutica dessas narrativas biográficas permite explorar as memórias individuais de mulheres e os dramas de um medo patológico, o medo do Outro, Africano, e o medo da guerra colonial. O recorrente uso da palavra "medo” é significativo. As esposas dos militares portugueses entrevistadas sentem-se perturbadas por sentimentos ambíguos, divididas sobre a posição a tomar perante a injustiça da guerra colonial. A este propósito, tem razão Hans Jonas quando considera que "embora a heurística do medo não seja certamente a última acção na busca do bem, é, no entanto, uma primeira acção, extremamente útil, cuja capacidade deve ser plenamente explorada, num domínio onde tão poucas palavras nos são concedidas sem terem sido procuradas”.

De acordo com as propostas da ética da responsabilidade de Hans Jonas, a heurística do medo centra-se essencialmente no medo que, fazendo parte da responsabilidade, não é o que desencoraja a acção. Relevante é o medo que convida à acção, ou seja, o medo do objecto de responsabilidade. Em termos dialécticos, o medo, enquanto potencial, já está contido na pergunta com a qual se pode imaginar o começo da responsabilidade activa, acrescenta Hans Jonas.

 

Conclusão

Portanto, palavras como inimigo, injustiça, culpa, morte, perda, associadas aos juízos de valor suscitados pelas circunstâncias da guerra colonial, são algumas daquelas que condensam a natureza estrutural do medo que na sociedade portuguesa se reproduziu no tempo. No diagnóstico de José Gil, trata-se do medo "como um sistema que condiciona directa e decisivamente mecanismos macros sociais”. Em síntese, o filósofo português considera que o "medo impede certas forças de se exprimirem, inibe, retira e separa o indivíduo do seu território, retrai o espaço do corpo, estilhaça coesões de grupo”. Do ponto de vista ético, o medo é um mal. Mas a sua existência pressupõe a representação do seu contrário, o bem, que tem no horizonte a esperança.

 

*Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil. em Filosofia

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