Política

Gritos e ranger de dentes na madrugada em que “catanas falaram”

A noite de sexta-feira foi tranquila. Poucos imaginavam o que havia de acontecer na madrugada seguinte. A escuridão ainda invadia a cidade quando o silêncio da alvorada daquele sábado memorável foi interrompido por uma enorme agitação. O calendário gregoriano registava o dia 4 de Fevereiro de 1961.

04/02/2021  Última atualização 08H35
© Fotografia por: DR
Homens vestidos de preto invadiam as cadeias de Luanda, com catanas e paus, para libertar os presos políticos que lá se encontravam. Para despistar as autoridades e garantir o êxito da acção, estavam divididos em dez grupos de 25  elementos cada, perfazendo 250 revoltosos.     O ataque foi antecedido  de um longo período de preparação sobre questões como manejar os instrumentos que seriam utilizados no assalto, principalmente catanas, ou desarmar guardas.  Sessenta anos depois, dos protagonistas da acção do 4 de Fevereiro de 1961 restam apenas 15 sobrevimentes.

Amadeu Martins "Kalunga", um dos envolvidos, afirma que as catanas eram afiadas com lima e posteriormente com pedra. "As catanas 'falaram' naquela madrugada. Eram tão afiadas que podiam servir para  barbear", referiu.   Relatos históricos revelam que os treinos decorriam à noite, na zona de Cacuaco, arredores de Luanda, e quando começaram a recear infiltrações de indivíduos ligados à PIDE - extinta polícia política portuguesa, mudaram-se para o Cazenga, no local em que está erguido  o Marco Histórico do 4 de Fevereiro.   O quintalão da casa de Imperial Santana, no Rangel, serviu também para muitos encontros clandestinos.A crença em forças ocultas foi um elemento catalisador para o ataque. Antes da acção, que envolveu uma única mulher - Engracia Francisco Cabenha, com 12 anos na altura-  foram submetidos a rituais, engolindo moedas e outros objectos que, alegadamente, os protegeria das balas da polícia e das tropas portuguesas.     

Os grupos pretendiam atingir o Palácio do Governo, a Casa de Reclusão Militar, os Correios, a Cadeia de São Paulo, a 7ª esquadra, o Regimento de Infantaria (RI-20) e o campo de aviação.    À testa  estavam Neves Bendinha, Paiva Domingos da Silva, Domingos Manuel Mateus, Imperial Santana e Virgílio Sotto Mayor, mas tudo o que se sabe, o principal mentor foi o Cônego Manuel das Neves.   
 A realização do acto à madrugada destinou-se a dificultar, ao máximo, a reposta do inimigo, devido à fraca visibilidade que o momento propiciava.    Amadeu Martins "Kalunga"  recorda com emoção que "perto do campo de aviação" havia uma companhia de cães. "Para  evitar que  ladrassem, atirou-se para o interior da unidade um produto e os cães deixaram de ter acção. Quem atirou o produto foi o Raul Deão e quando os cães inalaram o cheiro,  desapareceram, ficaram inanimados", enfatizou.     "Kalunga" tinha na altura 22 anos.  Fazia parte do grupo que devia atacar o campo de aviação que, na altura, estava nas imediações do 1º de Maio, mas a acção foi frustrada porque  os ataques não foram simultâneos.     

"Nós não conseguimos chegar ao RI-20,  nem ao campo de aviação,  porque os outros que foram atacar os Correios e a Casa de Reclusão chegaram primeiro que nós. Toda a cidade já estava aos tiros e já não conseguimos chegar ao local  definido. Tivemos que recuar e ajudar os outros que atacaram a 7ª esquadra", recorda com lucidez. A acção resultou na morte de 40 nacionalistas, seis agentes da Polícia e um cabo do exército português, junto da Casa de Reclusão.

Aos 82 anos,  Amadeu Martins "Kalunga” revela que se tudo corresse bem, havia um plano de ataques em todas as províncias. "O plano estava feito,  ninguém podia voltar atrás. Fizeram-se ataques no dia 4 e no dia 11 de Fevereiro. Se tudo corresse bem estavam preconizadas outras acções nas províncias, mas já não houve tempo. Depois dos dias 4 e 11 de Fevereiro, aquilo foi um caso muito sério. Foi caça ao homem", recorda.    Daí para frente os dias já não eram os mesmos. Portugal reforçou a presença militar em Angola. Uma enorme perseguição estendeu-se a todo o país. Seguiram-se prisões arbitrárias nas cadeias da PIDE-DGS. Alguns nacionalistas conseguiram escapar para lá das fronteiras territoriais, mas outros foram apanhados e submetidos a torturas. É o caso de Amadeu Martins  "Kalunga". 

"Fui preso em 1961 e só saí em 1965. Aquilo foi sério. Eles tinham uma forma de torturar que a pessoa era obrigada a falar à-toa", lembra.   Em 1969, devido à sua ligação à célula  clandestina do MPLA integrada por Diogo de Jesus, que com Nelito Soares e Luís Kiambata desviaram para o Congo-Brazzaville um avião Dakota da DTA- Divisão de Transportes de Angola  (a predecessora da TAAG), Amadeu Martins "Kalunga" escapa a uma segunda prisão.    

Conta que, na altura, trabalhava na revista Notícias como paquete (contínuo) e o director era o Charula  de Azevedo.   "Eles foram à minha busca, mas já não me deixei ser levado. Eu que tinha saído da cadeia em 1965 e quatro anos depois tinha de voltar outra vez? Fiz uma tremenda barafunda...  Na redacção da revista em que trabalhava lutei com o sub-inspector Vieira, que foi buscar-me e fugi. Nos bairros era um caso sério".    

 A PIDE-DGS realiza uma verdadeira caça ao homem e no mesmo ano Amadeu Martins "Kalunga" foge para as matas, tendo sido  recebido por um grupo da Primeira Região Político-Militar do MPLA que estava destacado em Caxissa (Ndaji-ya-Menha), província do Cuanza-Norte, liderado por Abel Stona.    Amadeu Martins "kalunga” lembra que. ultimamente,  na Primeira-Região a situação era extremante difícil, havia falta de quase tudo,  incluindo munições e alimentos. Afirma que a luta armada de libertação nacional teve como ponto de partida o 4 de Fevereiro de 1961 e "os sobreviventes deviam ser mais dignificados”. 

"Fui preso pelos ‘Flechas’ e alguns foram meus alunos”  

Em 1974, ainda durante  a guerrilha, Amadeu Martins "Kalunga” é preso por "Flechas”, forças de operações especiais dependentes da PIDE-DGS e integradas  por ex-guerrillheiros.  "Curiosamente,  os indivíduos que  me prenderam foram meus alunos e  só fui posto em liberdade após o 25 de Abril de 1975”, enfatizou, acrescentando que comeuo pão que o diabo amassou. "Apanhei tanta surra que até o diabo ficava com pena”, lamentou o ex-professor do "CIR Certeza”.  

Assegura que  são os "Flechas” de  Ndalatando que o prendeu na sequência de uma denúncia de um elemento que tinha ligação com a PIDE-DGS.  "Fomos traídos por António Kauelenga. Sempre imaginávamos que ele estivesse do nosso lado, afinal era um traidor.  A tropa veio ao nosso acampamento e o Tala-Mungongo, um jovem que cresceu nas matas de Nambuangogo, foi morto mesmo ali. Foi-lhe cortada a cabeça”, recorda com voz embargada. Amadeu Martins "Kalunga” afirma que, posteriormente, o indivíduo que o traiu viria a ser morto pela própria PIDE-DGS,  por ter mentido que Tala-Mungongo era o Abel Stona, o chefe do grupo guerrilheiro.
 "Casa dos heróis” em degradação

A  sede da Associação 4 de Fevereiro, por detrás da fábrica da Cuca, em Luanda, pode ser confundida com uma residência qualquer da antiga cooperativa Alegria pelo Trabalho. No exterior, não se vislumbra nenhum símbolo representativo.  Apenas um mastro solitário, sem bandeira. As paredes "descascadas” cor de areia e a porta de entrada clamam por uma nova pintura.O aspecto degradante contrasta com o simbolismo que carrega. Nada mudou desde que lá estivemos, há um ano, por ocasião de mais um aniversário de início da luta armada. Se existe alguma mudança é a degradação acentuada. 

No interior,  o cenário  não é muito diferente. O pobre mobiliário pede substituição. Uma secretária e uma velha cadeira preenchem a sala de espera, logo à entrada, ao rés-de-chão. Do outro lado, uma sala de reuniões com as mínimas condições:  mesa e um conjunto de cadeiras  aceitáveis. O mesmo não se pode dizer em relação aos gabinetes que se encontram na parte superior das instalações, que clamam por melhores condições. 

Amadeu Martins "Kalunga” afirma  que a associação não recebe qualquer apoio para manter a estrutura com maior dignidade. "Vivemos de quotizações e é com este dinheiro que pagamos aos funcionários que aqui trabalham e outras despesas correntes, como energia e água. A quota mensal é de dez mil kwanzas. Com isso não se pode fazer muita coisa”, lamenta.

Hoje os sobreviventes do 4 de Fevereiro  são tenentes-generais. Apenas um tem a patente  de  coronel, uma situação que, segundo Amadeu Martins "Kalunga”,  não agrada aos demais, por considerarem que todos deviam ter o mesmo grau militar. "Kalunga” vai  mais além, sublinhando que "todos deviam ser generais de três estrelas” pela sua participação activa no movimento de libertação nacional. 
"Menina dos olhos” sem brilho nem chama

A cerca de 800 metros da sede da associação, está o Marco Histórico "4 de Fevereiro”, no Cazenga. Erguido há cerca de duas décadas em homenagem aos heróis, apresenta uma imagem degradante. Quando lá chegamos, há uma semana, o capim seco no espaço reservado ao jardim, invadia a zona. Um tímido movimento de meios de limpeza denunciava algumas preocupação devido à aproximação da data que hoje se assinala, enquanto crianças de troncos nus entravam no interior do recinto para brincar , numa abertura  da vedação. 
  No  monumento permanecem as  esculturas de Paiva Domingos da Silva e Imperial Santana, dois comandantes que se destacaram na acção, mas foram roubadas as duas placas de bronze com os nomes de outros heróis de Fevereiro. Uma das placas foi recuperada pela Polícia, mas na verdade, permanece "distante” do monumento. No local funciona a Rádio Cazenga, a Direcção Municipal da Cultura  e um restaurante de gestão privada. Esta parte do recinto confunde-se com um parque de estacionamento, tendo em conta o número de viaturas poeirentas ai estacionadas, algumas das quais com problemas mecânicos. 

Uma fonte contactada no local disse que grande parte das viaturas aí estacionadas está  sob responsabilidade  dos serviços municipais de fiscalização. Quer dizer que o local funciona, também , como um parque dos Serviço de Fiscalização. Em contraste com o aspecto que hoje apresenta, o Marco Histórico 4 de Fevereiro, cuja gestão pertence ao Ministério da Cultura, Turismo e Ambiente,  já foi a "menina dos olhos” do Cazenga, que enchia de orgulho os moradores.  Amadeu Martins "Kalunga” afirma que a preocupação com a limpeza do local só se verifica quando se aproxima a data que hoje se assinala. 

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Política