Entrevista

“Existem vários artefactos usados por Mandume que deveriam constar num museu”

Gaspar Micolo

Assinala-se hoje, 6 de Fevereiro, a data da morte do Ohamba (rei) Mandume Ya Ndemufayo, que se suicidou em 1917, depois de resistir com tenacidade à invasão estrangeira. “Mandume Ya Ndemufayo teve uma morte heróica e demonstrou ser um líder com qualidades invulgares; a pátria antes de tudo, a soberania e integridade territorial estavam além das suas ambições pessoais, por isso deu a sua vida às causas mais profundas do povo Oukwanyama e da região vizinha”, diz em entrevista o historiador Tiago Caungo Mutombo.

06/02/2023  Última atualização 06H20
Historiador e professor universitário Tiago Caungo Mutombo © Fotografia por: DR
O professor universitário, doutorado em História, em cuja tese abordou a resistência dos Ovawambo à penetração estrangeira, vai dar uma palestra no dia 8, quarta-feira, no Arquivo Nacional de Angola. Nesta conversa, garante que "ainda é notório um desconhecimento não só da nova geração sobre as figuras históricas de Angola, mas também de alguns mais velhos que poderiam ser as referências para falarem deste ou de outras figuras”.


Mandume impôs uma resistência tenaz aos invasores, sendo um importante símbolo da resistência contra a ocupação efectiva. Hoje como é que vê retratado e lembrado o seu legado?

Aos poucos o legado de Ohamba (rei) Mandume Ya Ndemufayo tem sido socializado por alguns académicos — onde obviamente me enquadro desde 2007— seus descendentes, o governo provincial do Cunene, assim como o Ministério da Cultura. Mas este esforço, embora não sendo conjunto, poderia já atingir um estágio mais acentuado de conhecimento sobre essa figura emblemática da nossa história.

Porquê?

Porque é notório ainda um desconhecimento não só da nova geração sobre as figuras históricas de Angola, mas também de alguns mais velhos que poderiam ser as referências para falarem deste ou de outras figuras, no entanto, existem sinais visíveis de que há vontade e a necessidade de maior divulgação das individualidades que protagonizaram as façanhas que sustentam a História de Angola, mas se pode fazer mais. O Ohamba (rei) Mandume tem sido retratado de modo particular com a desconstrução da imagem falsa e os seus actos heróicos têm sido divulgados aquando da comemoração de mais um aniversário da sua morte.

 

Temos hoje uma estátua do Rei Mandume ya Ndemufayo na cidade de Ondjiva. O que achou desta homenagem?

O acto de homenagem de qualquer indivíduo é sinónimo de reconhecimento de façanhas protagonizadas por alguém e no caso deste gesto de suma importância, em que o Ohamba Mandume é o eleito, é merecido. Estou  particularmente satisfeito pelo facto da estátua ser feita com a sua imagem verdadeira. Como se sabe, este soberano intrépido é um dos maiores símbolos da resistência do nosso povo, logo uma homenagem a ele é bem vista.

 

Diz-se que há vários objectos (de poder), jornais que retratam as batalhas e fotografias de Mandume, espalhados em vários países. Estes objectos não poderiam estar numa secção de um museu angolano?

De facto existem vários artefactos que foram usados pelo Ohamba Mandume, que poderiam, sim, constar num museu. Tenho dois projectos em parceria com outro historiador que é especialista da região dos Dembos, o Professor Doutor Fernando Jones Bambi, para se criar um museu sobre a resistência dos Ovawambo de Angola (na província do Cunene — Kunene) e outro sobre a resistência dos Jindembu ou Dembos (na província do Bengo), ambos projectos estão engavetados por falta de patrocínios e inserem-se no âmbito do projecto BKK-S (Bambi Kawungu Kwijiya - Solution).

 

Há também livros sobre Mandume em várias línguas, sobretudo produzidos por autores sul-africanos e namibianos. O que falta para termos estas obras traduzidas para o português?

Já existe também em português, mas não responde ainda à demanda que há sobre esta figura da História de Angola, há um romance de um amigo que pertence à linhagem do Ohamba Mandume, refiro-me ao Arsénio Satyomba, e inclusive outra obra foi escrita pelo actual ohamba dos Ovakwanyama. Tenho duas obras no prelo que estão à espera de apoio, uma ligada ao Ohamba Mandume outra é sobre a estratégia de resistência dos Ovawambo de Angola, não obstante ter alguns artigos sobre essa figura publicados em revistas científicas internacionais. Quem sabe o Governo Provincial do Cunene poderá ajudar a sua publicação depois desta entrevista. 

 

Há várias versões sobre a morte do rei dos Kwanyama. Há inclusive uma imagem que alegadamente retrata soldados sul-africanos junto ao corpo do Rei Mandume Ya Ndemufayo, em 1917. Qual é a versão que acolhe?

Realmente, existem várias versões sobre a morte do Ohamba Mandume, mas eu defendo a que a tradição oral assume, segundo a qual ele se suicidou, senão vejamos, ele foi solicitado várias vezes para se render e nunca deu margem a isso. Por essa razão defendo que Mandume Ya Ndemufayo teve uma morte heróica e demonstrou ser um líder com qualidades invulgares, a pátria antes de tudo, a soberania e integridade territorial estava além das suas ambições pessoais, deu a sua vida às causas mais profundas do povo Oukwanyama e da região vizinha que se constituíam em determinados momentos na Liga Ovawambo. 

 

Nas suas pesquisas para o doutoramento encontrou alguma referência sobre como, enquanto líder, Mandume lidou com a seca?

De facto, nas minhas investigações que começaram em 2007, sobre a região do Cunene — Kunene — e a resistência do povo Ovawambo, permitiu catalogar as diferentes fases em que a resistência deste povo vai enfraquecer e, a seca e a epizootia, estes dois acontecimentos vão de facto constituir-se como elementos que não ajudam a logística das tropas lideradas pelo Ohamba Mandume, embora a sua ascensão ao poder se tenha dado já num momento em que havia seca severa começada em 1910.

 

É que Mandume, durante o seu reinado, terá tomado medidas económicas não muito populares, mas que se revelaram estratégicas com o tempo...

Não sei! O que queres dizer com medidas económicas não muito populares? O que até agora estudei sobre a estratégia de resistência aplicada pelo Ohamba Mandume e por outros povos Ovawambo, enquanto uns estavam no teatro de operações militares, outra franja da sociedade estava a fazer a transumância do gado para outras regiões e asseguramento logístico. Mandume teve que liderar várias forças da região que, depois de verem os seus Estados vencidos, juntam-se ao último Estado Independente. Esse último Estado Independente é liderado pelo Ohamba Ma-ndume Ya Ndemufayo, tornando-se num líder acatado por todos, independentemente das diferenças e querelas antigas. O Estado Ovakwanyama torna-se num Estado esperança e é normal haver alguma insatisfação, mas Mandume é um líder que estava muito avançado do seu tempo.

 

Do ponto de vista de uma história militar endógena, temos sabido tirar proveito da abordagem à resistência feita por Mandume?

Não me lembro de ter lido ou conhecer um investigador que se tenha preocupado em escrever sobre a História Militar endógena; talvez, agora com essa provocação que me fazes, poderei pensar no assunto, porque os Estados Ovawambo no cômputo geral têm uma estrutura militar muito organizada, só comparada aos Imbangala em Angola, porque já detinham conhecimentos profundos da arte de guerra, o que nos permite depreender a existência de uma academia militar entre estes dois povos. Os Ovambadja que protagonizaram o famoso "desastre militar dos portugueses” na Batalha do Vau do Pembe, em 25 de Setembro de 1904, utilizando a táctica do fundo do saco, que consiste em rodear o inimigo sem ser visto e apertá-lo de maneira tenaz, é uma acção não somente do domínio do terreno, mas da demonstração do conhecimento da arte de guerra que não foi necessário ler a "Arte de Guerra” de Sun Tzun para poder infringir esta pesada derrota aos portugueses.

 

Eram povos guerreiros...

Existem factos que atestam que, quando os europeus começaram a frequentar a região sul para comercializar, encontraram povos de índole guerreira. Diversos relatos falam de povos guerreiros, cuja fama e poder chegava longe. Treinavam-se com regularidade e desenvolviam várias tácticas de ataque. Apercebendo-se do poder das armas, devido à sua índole guerreira, começaram a trocá-las por gado. Aprendendo facilmente o manejo das armas, tornaram-se óptimos atiradores. Possuíam armamento moderno comprado aos comerciantes europeus. Os jovens desde muito cedo aprendiam a usar ar-mas e era comum ver-se um jovem de dezasseis anos armado com uma Martini, além do uso das armas tradicionais. As mausers eram as armas preferidas dos omalenga e outros dignitários. Eram bons cavaleiros e possuíam bastantes cavalos. A forma como construíam as suas habitações, os ehumbo com uma complicada estrutura defensiva, indicava uma forte organização militar, tendo em vista a defesa dos seus territórios. As libatas eram frequentemente inexpugnáveis, cercadas por fortes paliçadas, com fossos, saídas falsas, cheias de corredores e labirintos, para defesa contra possíveis ataques de outros povos.

 

O que demonstra uma organização militar.

Claro! O modo como eles se defendiam, as tácticas usadas, demonstravam possuir uma organização militar eficaz, pressupondo uma organização política e social baseada na força, com um chefe poderoso e um exército que cumpria as ordens do seu chefe, onde a função de guerreiro era importante e a vida da comunidade girava em torno das investidas militares. As relações existentes entre os comandantes e os seus homens indicam uma grande disciplina só conseguida através da força militar.

O chefe é supremo e os seus homens devem-lhe obediência total. O chefe militar máximo era também o chefe político, que controlava a vida de todos com os seus lengas e guerreiros. Resolvia os problemas mais complicados com o auxílio dos lengas e seculos. Servia de juiz em casos graves. Era uma honra para uma família ter alguém a servir militarmente o Ohamba, ou mesmo integrado num dos exércitos dos omalengas que eram os chefes militares.  Eram também hábeis políticos, na arte diplomática e de governar, fazendo jogo duplo entre as diversas autoridades europeias que disputavam os seus territórios, como o caso do Ohamba Nande, soberano Ovakwanyama que jogou permanentemente com portugueses e alemães.

O governador português João de Almeida nos seus relatórios descreveu os Ovawambo como povos com um sistema organizativo eminentemente militar, que desde cedo preparam os jovens para a guerra. Podemos ler no seu relatório de 1910 uma descrição pormenorizada da estrutura militar e organização social dos Ovawambo.

 

Consta também que o rei dos Kwanyama soube realizar uma confederação única dos povos Ovambo para resistir à ocupação colonial...

Em 1910 no Sul de Angola o reino dos Ovakwanyama não era dominado pelos portugueses. Por diversas vezes elaboraram-se planos para a sua ocupação, efectuaram-se contactos com os chefes kwanyama para aceitarem a presença portuguesa, tentaram-se outras formas de persuadir, como a entrega da bandeira, tentativa de construção de fortes e apelos através dos missionários católicos. Os vários soberanos Ovakwanyama recusavam sempre essas tentativas de penetração por parte dos portugueses, fazendo um hábil jogo diplomático entre portugueses, alemães, ingleses e sul-africanos, tirando partido dos conflitos entre eles pela posse das suas terras. Afinal eles eram os principais interessados e nenhum dos lados lhes perguntou se os queriam por lá perturbando o seu modo de vida, destruindo as suas tradições, impondo-lhes outra cultura.

Um dos mais hábeis monarcas kwanyama foi Mandume Ndeulikufa Ya Ndemufayo, conhecido como yokayalambadwa yokapekwa ya Melulo (o jovem dos porrinhos e lanças). Assumiu o poder do território de Ovakwanyama no ano de 1911 até à data do seu suicídio, no dia 6 de Fevereiro de 1917, em Oihole. Era um homem guerreiro e disciplinado, ascendeu ao poder com a idade de omumati aos 18 anos, sucedendo ao seu primo Ohamba Nande.

Realmente, Ohamba Mandume Ya Ndemufayo, com a sua inteligência inquestionável, usou também argúcia para poder converter-se num um líder de esperança acatado por todos aqueles que já tinham sido derrotados pelos portugueses. Foi capaz de converter-se num congregador dos povos da região para defender o seu território, independentemente das diferenças do passado, um sinal que ele estava preparado para liderar. A convocação da Liga Ovawambo é uma demonstração clara disso. Nota-se que é um líder e que passou na escola local onde foi forjado para assumir os desígnios do povo. 

  A necessidade de realçar os aspectos económicos do povo e não apenas a guerra

Se fosse convidado a contribuir para um manual de história do ensino secundário, o que é que acrescentaria sobre Mandume, que acha que tem sido ignorado?

Se fosse convidado para contribuir para um manual de História do Ensino Secundário, neste caso da 11ª classe do II Ciclo do Ensino Secundário, tanto no curso de Ciências Jurídicas e Económicas e Humanas, a prior sugeria a introdução de uma temática ligada às resistências protagonizadas a nível de distintas regiões do país, porque entendo que os factos ocorridos em distintas partes de Angola devem merecer conhecimento por todos, mas de modo didáctico é que se poderá adequar a maneira como ensinar a mesma, ou seja, não me interessa apenas a questão de Mandume em si, mas a História de Angola. Como a questão se refere a Ohamba Mandume, sugeria que fossem trazidas as façanhas descritas nesta entrevista, a fim de promover mais o patriotismo, porque este ohamba é um exemplo de patriota que deu tudo que tinha para defender a independência do Reino Oukwanyama e o seu povo, tanto mais que morreu por ele.

Ohamba Mandume Ya Ndemufayo será sempre lembrado como um patriota, um líder nato. E sabendo que a sociedade angolana carece de referências, é nesta fase que se deve começar a preparação de jovens que serão os dirigentes do amanhã com valores positivos e com alcance ao país e não um grupo sectário. Por outro lado, deve-se realçar os aspectos dos meios de produção, ou seja, a componente económica e sociocultural deste povo e não apenas a guerra, porque para além da guerra, existe vida e outras práticas sociais.

 

Consta que Mandume foi escolarizado em várias línguas. Que aspectos da sua juventude moldaram sobremaneira a sua personalidade?

De facto, o Ohamba Mandume Ya Ndemufayo foi escolarizado e criado no reino de sua avó, a ohamba Nekoto. Em Oiheke, vivia também o seu tio materno Kapa ka Shikende que juntamente com o omalenga Haufiku wa Kasheeta o criaram e o iniciaram na vida. Mandume, durante a sua formação, teve como mestres os Omalenga que ficam próximo dele sempre, nomeadamente: Kashala ka Shindjoba Kashala (o tradutor do Ohamba); Haufiku wa Kasheeta (instrutor, que o cuidou e iniciou, todavia na infância); Hakwenye ka Shamaulimo; Shikololo sha Hangula, Ongoya Ya Kayela – que segurava a lenha e o fogo do ohamba, e Naholo Ya Haivinga (omalenga). Importa ainda referir que o Ohamba Mandume, na sua educação, teve também influência de missionários alemães, razão pela qual também falava alemão. Foi um dos mais hábeis soberanos Oukwanyama. Diplomata e estratega, homem esclarecido e à frente do seu tempo, Mandume jogou permanentemente com os portugueses, alemães e ingleses, tirando proveito das contradi-ções e rivalidades entre eles, fazendo sempre os possíveis para manter a soberania Ovakwanyama.

Não prevê publicar a sua tese de doutoramento?

Como é do conhecimento do jornalista, o livro para a nossa realidade ainda é muito caro, por um lado, ademais, para quem fez um doutoramento com fundos próprios — quando solicitou apoio de quem de direito sequer foi respondido,  não é fácil publicar os mesmos resultados, porque até ao presente momento estamos a procurar recuperar este investimento pessoal, familiar e do país. Tenho no prelo a tese transformada em livro, mas carece de patrocínio para a sua efectiva publicação. Temos ciência que esta obra deve sair do prelo para o público alvo. Por onde passamos para ter este resultado exige de mim mesmo a publicação do livro, com ou sem apoio. Já tive impedimento por parte de alguém que entendia que estudar a região em questão era uma propriedade e criou-me muitas dificuldades,  tendo que aguardar 3 anos para ter informações da região. Felizmente, quem estuda estratégia deve munir-se de ferramentas para contornar as barreiras. Contudo, pensamos publicar a tese em livro no final de 2023 ou em Setembro de 2024.

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