Cultura

Espaço, lugar e território em “A casa velha das margens”

O romance “A casa velha das margens”, escrito em um português padrão, permeado, no entanto, de palavras da língua kimbundu, traz perguntas sem respostas, interditos e lacunas, questões não elucidadas, fio condutor de uma narrativa muito descritiva. Escrito em 1999, o romance retoma o século XIX e as contradições de uma colónia heterogénea assombrada pelos fantasmas de muitas minorias silenciadas. Esses fantasmas não só ocupam a casa velha, mas também as margens do rio Lucala, lugar propício ao encontro e à manifestação do outro, muitas vezes de forma silenciosa. Os 88 anos de vida do autor, Arnaldo Santos, comemorados na terça-feira (14/03), são um bom pretexto para revisitar “A casa velha das margens”, romance fundamental da moderna literatura angolana

19/03/2023  Última atualização 06H51
© Fotografia por: Edições Novembro

Na presente abordagem procuraremos exercitar um diálogo entre os sinónimos de espaço, lugar e território. Sendo elementos do campo da Geografia, os referidos conceitos se diferenciam, pois, segundo Marcelo Lopes de Souza, "o que ‘define’ o território é, em primeiríssimo lugar, o poder – e, nesse sentido, a dimensão política é aquela que, antes de qualquer outra, lhe define o perfil” (2005, p. 77). Para contrapor "espaço” e "território”, portanto, tem-se convocado a questão do poder como elemento diferenciador, o que não quer dizer que, ainda segundo Marcelo Lopes de Souza, a cultura (o simbolismo, as teias de significados, as identidades…) não seja relevante ou não esteja contemplada no uso do conceito (cf. 2005).

Natural de Luanda, Arnaldo Santos nasceu a 14 de Março de 1935, e na década de 50 integrou o chamado "grupo da Cultura”, tendo colaborado em várias publicações periódicas luandenses, entre as quais a Revista Cultura, o Jornal de Angola (da década de 60), ABC e Mensagem da Casa dos Estudantes do Império. Foi premiado com o livro de crónicas Tempo do Munhungo, em 1968, ganhando mais notabilidade a partir de então.

Em A casa velha das margens  a relação entre Geografia e Literatura  mostra-se evidente, pois enquanto espaço de amplo debate teórico-conceitual entre os pesquisadores do campo da Geografia em relação a esses termos, há, entretanto, uma análise que não se encerra, na maioria das vezes, na distinção entre espaço,lugar e território, já que tanto as questões próprias da dimensão simbólica quanto as referentes ao poder aparecem de forma quase indissociáveis. Por essa razão, sempre que se estiver a trazer para o debate as questões que vão transladar entre os conceitos apresentados, será necessário que se leve em consideração um outro espaço, para além do geográfico: trata-se do espaço literário, com especificidades e características próprias que não devem ser tomadas de fora num exercício como este.

Uma noção de território que despreze a sua dimensão simbólica, mesmo entre aquelas que enfatizam o seu carácter eminentemente político, está fadada a compreender apenas uma parte dos complexos meandros dos laços entre espaço e poder.[...]. Assim, podemos afirmar que o território, relacionalmente falando, ou seja, enquanto mediação espacial do poder, resulta da interação diferenciada entre as múltiplas dimensões desse poder, desde a sua natureza até mais estritamente política e o seu carácter mais propriamente simbólico, passando pelas relações dentro do chamado poder económico, indissociáveis da esfera jurídico-política. (Haesbaert, 2016, p. 92-93).

No entanto, para Milton Santos, não cabem distinções entre os dois termos, pois "não serve falar de território em si mesmo, mas de território usado, de modo a incluir todos os actores. O importante é saber que a sociedade exerce permanentemente um diálogo com o território usado, e que esse diálogo inclui as coisas naturais e artificiais, a herança social e a sociedade em seu movimento actual”. (2001, p. 26).

Já o conceito de "lugar”, conforme definido ainda por Marcelo Lopes de Souza, pareceria, à primeira vista, o mais adequado para reflectir sobre a geografia inscrita nos textos literários, já que a carga simbólica seria a predominante. Segundo o pesquisador, não é a dimensão do poder que está em primeiro plano ou que é aquela mais imediatamente perceptível, diferentemente do que se passa com o conceito de território; mas sim a dimensão cultural-simbólica e, a partir daí, as questões envolvendo as identidades, a intersubjectividade e as trocas simbólicas, por trás da construção de imagens e sentidos dos lugares enquanto espaços vividos e percebidos, dotados de significado [...] Por conseguinte, ainda que com outras palavras, o lugar está para a dimensão cultural-simbólica assim como o território está para a dimensão política.  (Souza, 2013, p. 115).

Com essa leitura, pode-se perceber que em A casa velha das margens "a geografia não é um recipiente inerte, não é uma caixa onde a história cultural ‘ocorre’, mas uma força activa, que impregna o campo literário e o conforma em profundidade” (Moretti, 2003, p. 13). Os deslocamentos do protagonista  mostram-nos, então, que a geografia é uma força activa a produzir sentidos quando viajamos pelo texto literário. Tal trânsito também nos leva a questionar os caminhos trilhados pelo próprio país, reconhecendo as conquistas, mas, também, revelando denúncias de uma situação neocolonial que levou – e está levando – à morte de seu tempo. No processo de leitura do texto, podemos dizer que nos "movimentam[os] com o personagem através de espaços geográficos e experimentam[os] a negociação cultural que nele ocorre” (Tillis, 2016, p. 29). Logo que iniciamos essa viagem, percebemos que o deslocamento espacial percorrido pelo protagonista espelha um deslocamento temporal, seja pelo tempo diegético em que se passa a narrativa, seja pela temporalidade com as quais vamos entrando em contacto conforme o personagem avança cada vez mais pelo e para o interior. Para tratar dessa indissolubilidade entre as categorias de espaço e tempo nos romances, Mikhail Bakhtin cunhou o conceito de cronotopo, assim por ele definido: "No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo compreensivo e concreto” (Bakhtin, 2010, p. 211). Nesse trânsito espaço-temporais, acompanhamos a saga do personagem nascido em Angola, mas obrigado, no passado, a deixar o seu país natal e ir para Portugal, porque, na avaliação do seu progenitor, ele estava "a ficar um selvagem”, e permanecer na fazenda representava um perigo, pois o menino cresceria "no meio da pretalhada” (Santos, p. 94). Na presente narrativa, percebe-se um ser  errante, que transita por tempos e espaços distintos para desbravar essa Angola múltipla e complexa, percurso do qual, como dizia Ruy Duarte, se faz uma espécie de guia. O romance  leva-nos a concordar com as reflexões de Eduardo Galeano, para quem "o mapa mente. A geografia tradicional rouba o espaço, assim como a economia imperial rouba a riqueza, a história oficial rouba a memória e a cultura formal rouba a palavra” (Galeano, 2013, p. 323).

A escrita que Arnaldo Santos empreende no seu romance é isso mesmo, uma forma de questionar os mapas tradicionais e de resistir aos saques do espaço, da memória e dos conhecimentos que, pela palavra, circulavam – e ainda circulam. Por meio do trânsito do seu protagonista, A casa velha das margens   metaforiza o movimento de saída da capital como um esforço de dispersão, de busca por outros espaços e, consequentemente, por outros sentidos e identificações, os quais nos possibilitam redescobrir Angola, para além de Luanda, em sua riqueza e diversidade.

Arnaldo Santos tem sido referência com destaque na produção literária de Angola, sobretudo no campo da narrativa, com a novela A boneca de Quilengues: as estórias proibidas (1991); as colectâneas de contos Quinaxixee outras prosas(1981) e O cesto de Katandu e outros contos (1986); além dos romances A casa velha das margens (1999) e O vento que desorienta o caçador (2007). Com Luanda sempre a manifestar-se com destaque, cidade influenciadora na sua trajectória literária inicial, em Quinaxixe (1965), por exemplo, logo se percebe o afecto pela cidade natal que se anuncia desde o título, já que este convoca o bairro e a antiga lagoa de mesmo nome, hoje aterrada, que serviu de ambientação para as narrativas ali reunidas. Em um percurso bastante semelhante ao de A cidade e a infância, de Luandino Vieira, nesta colectânea sabemos mais sobre o quotidiano de Luanda a partir das nove "histórias dos meninos do Kinaxixe” (Santos, 1981, p. 11). Os contos são alinhavados pela presença dos mesmos personagens, como Zeca, Gigi e Mário, que transitam por vários textos e nos permitem olhar para o conjunto em sua totalidade. No conto de abertura, também "Quinaxixe”, acompanhamos exactamente um dia desses meninos e meninas luandenses. Apesar das cores e classes sociais distintas, eles conviviam como companheiros de bairro e cúmplices nas brincadeiras e risadas, cujas diferenças eram ofuscadas pela inocência dessa fase da vida e pelo prazer das travessuras. A primeira referência à cor de um dos meninos é marcada, ainda nesse conto de abertura da colectânea, pela fala de uma personagem adulta, Talamanca, viúva de um capitão português. Recuperemos um trecho: "O Zeca cantava baixo, olhando-a prudentemente, com o rabo de olho, ao passar. Ela não se importava nada de lhes dar uma berrida! Talamanca realmente não gostou, e rosnou, deitando-lhe um olhar duro: – Seu mulato vadio...! – Atira-lhe uma pedra – ofendeu-se pelo companheiro o Mário, que era branco. (Santos, 1981, p. 13).

Em homenagem ao cinquentenário da Casa dos Estudantes do Império, o escritor afirmou, em depoimento: "Teria eu sido outro homem se não tivesse passado pela Casa? Seguramente” (2015, p. 101). Depois da publicação de Quinaxixe, a capital de Angola continuou sendo o espaço focalizado por Arnaldo Santos em Tempo de munhungo, um conjunto de catorze crónicas lançado em 1968, que reúne, como o próprio autor destaca na dedicatória da obra, "estórias dos caluas” (1981, p. 71) – ou seja, dos nascidos em Luanda. Na trajectória inicial do escritor, portanto, a sua cidade natal serviu de ambientação às estórias que quis contar para contribuir com os embates políticos e sociais que, no momento de lançamento dos seus primeiros livros, se agravavam cada vez mais. Afinal, em 4 de fevereiro de 1961 deu-se o assalto às cadeias de Luanda para a libertação dos presos políticos, acontecimento este que passou a ser considerado o marco oficial do início da luta armada contra os colonizadores.


O regresso do filho pródigo

Abrindo a possibilidade de questionamento à estagnação que perdurou após a independência em 1975, especialmente no que diz respeito à questão da terra (casa), os eventos são narrados ao leitor passando pelo ponto de vista de Emídio, personagem principal em torno do qual gira a narrativa em terceira pessoa. Emídio Mendonça é o mulato filho do chefe do Conselho, conhecido como "pai dos pretos”, que manda o filho estudar em Portugal, a contragosto de Kissama, a mãe que tem o nome do povo a que pertence. Esperando em vão que o rio lhe devolva o filho pequeno arrancado e levado para adquirir o saber da gente branca, Kissama perambula dias nas margens do Lucala até perceber que sua espera é, contudo, vã. O filho retorna, é verdade, mas como homem feito, para saber que sua mãe, em uma resistência sempre silenciosa, enforcara-se dias após sua partida da casa de seu pai.

A descrição do suicídio da mãe, como boa parte dos acontecimentos contados no romance, é entrecortada, nebulosa, narrada ao longo de três capítulos em meio a recordações e reflexões, despertadas inicialmente pela visão do interior da casa velha. Em ruínas, a casa do Hombo, ao receber Emídio de volta, desperta as memórias e o passado, que retorna, mas sempre por uma perspectiva fragmentada.

Apesar de a capital da então colónia ter sido o destino inicial de Emídio assim que retornou da metrópole, quando mergulhamos na narrativa o personagem não está mais na referida cidade, mas sim em trânsito. "Recém-chegado do Reino” (Santos, p. 10), está "em Calumbo em viagem para o Dondo” (Santos, p. 9, grifo nosso), onde ficava a Casa Velha do Hombo. Lá, em Massangano, ele pretendia reencontrar a mãe e saber sobre o espólio deixado pelo pai, informações essas que esperava adquirir com um velho serviçal chamado Pascoal. Nesse lugar de passagem ele sofre um atentado, cuja motivação só ficaremos sabendo nas páginas seguintes. A princípio, no entanto, temos uma dica: "de nenhum crime lhe assacavam, senão o da sua vida ter deixado de servir os seus interesses, e que também eram os da Conquista” (Santos, p. 9). O narrador, então,  informa-nos: Calumbo, naquela banda do rio Quanza, era apenas um pequeno porto, simples lugar de curta paragem, onde aportavam as embarcações que vinham do sertão e ali faziam seus comboios para Luanda [...] aquela terra era estéril, e o povo era obrigado a afluir nas margens do rio para a cultura do milho, feijão e mandioca, enfim, não se prestava ao estabelecimento de colonos (Santos, p. 12, grifo nosso).

Ao tomar contacto com a existência de opiniões tão distintas, ele começa a  questionar-se sobre os interesses que moviam os homens que o receberam naquela cidade. Emídio percebe que, naquele mesmo local, estavam reunidos, por exemplo, sujeitos que defendiam a permanência da escravidão e os interesses dos portugueses, enquanto outros, como o jornalista Lino de Araújo, bradavam contra o racismo e pelo fim da servidão. Naquele momento "Emídio Mendonça sentiu que naquelas questões em que os homens se unem, ou separam, muita coisa lhe estava a escapar. Era terreno mussequino, que ele só agora começara a conhecer, gingando desajeitadamente ainda, os sapatos não escapavam de se cobrirem de poeira.”(Santos,  p. 71).

Só nesse momento, portanto, o personagem começa a conhecer as principais questões que mobilizavam certos ânimos e atitudes. O desconhecimento dos segredos da terra se reflecte no caminhar desajeitado de Emídio, do qual resultavam os sapatos sujos de poeira. Essa constatação nos remete à primeira epígrafe do capítulo, retirada do romance de Mia Couto, pela qual sabemos ser possível "ler a vida de um homem pelo modo como ele pisa o chão”. É exatamente logo depois desse leilão que o personagem decide dispensar a machila, deixando, ainda que tardiamente, "de se ver elevado nos ombros de outros homens” (Santos, p. 46). Quando ele finalmente deixa de observar os acontecimentos a partir de um ângulo superior, as mudanças no seu comportamento e na sua personalidade começam a se fazer notar. Ele, então, reconhece "que começara demasiado tarde a pôr os pés no chão. E aquela percepção, infelizmente, não lhe advinha apenas por já não lhes saber pousar na areia” (Santos, p. 76). Depois dessa decisão, que fizera com que muitos o olhassem com desconfiança e espanto, Emídio percebe estar só e começa a ganhar a consciência de que não aceitará desempenhar os papéis e vestir as máscaras de conquistador que lhe querem impor.  "Até aquele momento, tinha sido transportado pela cidade como um conquistador, que ele não poderia ser, e do qual lhe tentaram convencer, sem que ele opusesse qualquer resistência” (Santos, p. 77). À medida que vai colocando os pés no chão, Emídio passa aos poucos a se reconhecer como perpetuador das atitudes do pai, pois não é à toa que é conhecido pelos habitantes das Margens como Ngana Makanda, ou seja, Chefe dos Pés Grandes – expressão traduzida não no Glossário, mas no corpo do próprio romance (Santos, p.113). O filho herdou do pai essa característica física que, também, se fazia simbólica.

Frantz Fanon, cujas reflexões sobre a cidade colonizada retomamos, fez uma observação a respeito dos "pés” do colono. Segundo o teórico martinicano, "os pés do colono nunca se mostram, excepto talvez no mar, mas nunca se está bastante próximo deles. Pés protegidos por sapatos fortes” (Fanon, 2005, p. 55). Já a cidade do colonizado é, faminta e esfomeada de quase tudo, inclusive "de sapatos” (2005, p. 56). Logo, os pés do colono, ao contrário dos do colonizado, estão sempre protegidos, o que demonstra, física e simbolicamente, a distância que separa o sujeito conquistador da terra em que apenas superficialmente pisa.

 

Conclusão

Em jeito de conclusão, diremos então que quando pensamos no diálogo entre a Literatura e Geografia, lembramos que, no período da colonização, as narrativas de territórios conquistados foram fundamentais para justificar e orientar o processo de dominação. Os invasores, portanto, não lançaram mão apenas da violência das armas, mas também empreenderam ataques no campo simbólico, tornando, como analisou Edward Said, "os cruzamentos entre cultura e imperialismo [...] irresistíveis” (Said, 2011, p. 39). Como afirma o geógrafo Mauro Mota, ao pensar no caso brasileiro e no chamado tempo dos "descobrimentos”, "nas suas cartas [de navegantes, aventureiros e missionários], relatórios e impressões de viajantes, encontramos a Geografia sempre literária da colónia e a que fixa os nossos recursos naturais [...]” (1961, p. 96). Logo, as referências geográficas, presentes nas crónicas de viajantes, procuravam descrever as regiões distantes que formavam o "Novo Mundo”, orientando-se pelo propósito de exploração da terra alheia. Tais textos consistiam, portanto, mais em exercício imaginativo e em efabulação do que propriamente em registo efectuado a partir de uma observação objectiva e isenta – tarefa, aliás, impossível, como bem sabemos.

A literatura angolana, reconhecendo a pátria como terreno multilinguístico e multicultural e abrindo-se para a riqueza da criatividade, vem provando que "mais do que palco, a espacialidade e a geograficidade fazem parte das narrativas, enquanto elementos que contribuem significativamente para a compreensão daquilo que a obra traz de novo a partir de sua linguagem específica”, como analisam Lívia de Oliveira e Eduardo Marandola Jr. (2013, p. 133). As suas obras tornam-se, assim, "passaportes para outros mundos, para a construção de novas experiências, outras viagens: de reflexão, deleite, deslumbramento e descoberta” (2013, p. 134).

A nós, leitores, nessa singela homenagem pelo dia de aniversário do escritor Arnaldo Santos, cabe aceitar esse convite e, esperarmos que  O menino da Santa-clara, obra algures em produção, por um romancista angolano de mão cheia, chegue o mais breve possível, antes que as margens se juntem e o menino viaje, conheça as ruas e  as luzes da capital o iluminem, e ganhe consciência e decida escolher o que quer ser quando for grande.

David Capelenguela |Poeta e ensaísta

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