Cultura

Epistolaridades para história intelectual

Luís Kandjimbo |*

Escritor

As cartas podem ser classificadas como género literário ou não? Pode a epistolaridade ser digna de tratamento no âmbito da teoria do texto do autobiográfico? As perguntas podem ter respostas, se tivermos em atenção o facto de a glorificação do indivíduo, em detrimento da comunidade, corresponder hoje a um modo de vida.

02/05/2021  Última atualização 08H40
Cartas de escritores angolanos © Fotografia por: DR
 Do ponto de vista moral, a interpretação dos textos literários autobiográficos, tais como as cartas, pode ser afectada pela sorte moral, no sentido em que certos factores subjacentes na relação epistolar escapam ao controlo dos sujeitos, mas determinam avaliações do seu carácter. 

Esta é a proposta de conversa que procura valorizar as cartas que, mesmo não sendo na sua génese textos literários, podem, no entanto, merecer a classificação para efeitos de estudo da história intelectual, tendo como fundamento a sua natureza narrativa autobiográfica.

A década de 50 do século XX, é um período interessante para o estudo da história intelectual de Angola de que são protagonistas os escritores e intelectuais. Parece-me ser um bom tema de conversa para compreendermos a agentividade, a condição de agentes que a história reserva a cada membro de uma comunidade.


Salim Miguel e cartas de Jacinto e Viriato
Em 1991, integrando uma delegação de membros da União de Escritores Angolanos, participei no I Encontro de Professores de Literaturas Africanas, realizado na Universidade Federal Fluminense, em Niterói.
Conheci pessoalmente o escritor e editor brasileiro, Salim Miguel, cuja comunicação chamou a minha atenção em virtude de ter dado testemunho das relações epistolares que manteve com escritores angolanos. Em 2005, ele publicou um livro que faz a apologia do discurso epistolar: "Cartas D’África e Alguma Poesia”.
Nessa década, Salim Miguel vivia em Florianópolis e fazia parte da equipa editorial do Grupo Sul que publicava a revista "Sul”,desde 1948.O livro comporta uma selecção de cartas que trocou com escritores e intelectuais residentes em Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe. De Angola estão António Jacinto, Américo de Carvalho, Garibaldino de Andrade, José Graça )Luandino Vieira), Mário Guerra e Viriato da Cruz.

Entre as cartas de angolanos destaquei as de António Jacinto )1924-1991) e Viriato da Cruz )1928-1973) )nas imagens que ilustram este texto).A literatura e a política constituem os principais temas. Ambos encomendam livros de orientação ideológica marxista e comunista. Referem-se ao V Congresso de Escritores Brasileiros. A revista "Sul” merece elogiosas menções. A respeito da revista, António Jacinto considerava, na carta data de 24 de Setembro de 1952, que "conta com a nossa simpatia hei-de enviar trabalhos de todos os jovens de Angola, que se preocupam com coisas do espírito." De Luanda, Jacinto dá notícia do quinzenário independente "Farolim” e lança o apelo para colaboração que se estende à revista de Cultura e Arte "Mensagem”.Em carta sem data, António Jacinto solicita os préstimos de Salim Miguel para a aquisição de dois livros de autores chineses, designadamente, "Trente ans du parti communiste Chinois” de Hou Kiao-Mou e "How the tillers win back their land” de Hsiao Chien.
Na referida colectânea de cartas, António Jacinto tem seis cartas. Além da já mencionada, há mais cinco com as seguintes datas: 30 de Abril de 1953; 27 de Dezembro de 1953; 16 de Junho de 1955; 9 de Outubro de 1955 e a última sem data.

Viriato da Cruz é igualmente autor de seis cartas, uma com data de 23 de Setembro de 1952 e as restantes enviadas em 1953: de 6 e 16 de Janeiro; 13 de Fevereiro; 24 e 31 de Março. Viriato da Cruz revela um grande entusiasmo com as notícias que chegam do Brasil, através da revista "Sul”. Ao mesmo tempo, manifesta um estado de espírito semelhante ao de António Jacinto e uma paixão pelo efectivo intercâmbio intelectual que a correspondência propicia. Por isso, na carta de 6 de Janeiro de 1953, anuncia o envio de uma colecção da revista "Cultura”, órgão da Sociedade Cultural de Angola e lamenta o facto de não ser possível compará-la com a revista brasileira "Horizonte”, invocando as seguintes razões. "É que, a par das condições inibitórias em que a sociedade mergulha, a cultura, em Angola, é ainda privilégio de poucos”.Nesta carta, além de prometer a publicação de uma recensão sobre o livro de um autor brasileiro, António Paladino, no Jornal de Benguela, Viriato da Cruz também encomenda livros: "Dialética de la Naturaleza”, de Engels; "O marxismo e o problema nacional e colonial”, de Stálin; "El Metodo dialético marxista”, de Rosental )Iudin); Dicionário Filosófico marxista”, idem; "Sobre os fundamentos do leninismo”, de Stálin; "Lenin e o Leninismo, idem”; "Sobre o problema da China”, idem; "Marxismo e liberalismo”, idem; "Lenin, Stálin e a Paz”,idem; e "Luta contra o trotskismo”, idem.  E no fim afirma: "estou a escrever um estudo sobre a filosofia bantu”.


Intelectuais marxistas

Uma leitura atenta desta correspondência privada que se torna pública, ao ser inserida em livro, solicita algumas ferramentas analíticas, tal como o exigem os protocolos do texto epistolar. As cartas publicadas por Salim Miguel são seminais para compreendermos a vontade de afirmação de si que anima os membros de uma geração inteira. Com elas é possível perscrutar as preocupações mais íntimas de António Jacinto e Viriato da Cruz. Palpitam ideias que, apresentadas de modo difuso, deixam escapar uma consciência de quem sente a sombra da vigilância policial, mas não é possuído por  qualquer tipo de pavor. De resto, o interesse por livros de autores marxistas e comunistas, revelam manifestamente uma apropriação da filosofia marxista. Mas, por outro lado, constituem o prenúncio de acontecimentos políticos, no contexto colonial vivido na época.

Deste modo, pode dizer-se que as cartas de António Jacinto e Viriato da Cruz desvendam um pensamento através do qual se exprime a consciência da afirmação de si  perante o Outro. Nessa relação intersubjectividade cada um dos pólos da relação – o sujeito que endereça a carta e o destinatário – representam duas comunidades, isto é, sujeitos colectivos, cujas experiências estruturam o comportamento individual daqueles.

Uma década após esse congresso de professores brasileiros, durante meses trabalhei nos fundos arquivísticos da polícia política portuguesa, em Lisboa. Procurava materiais para alimentar o acervo destinado à construção das minhas reflexões sobre a história intelectual e literária angolana. Foi assim que adquiri cópias dos processos que continham informações reveladoras do nível de vigilância policial sobre os escritores angolanos.  Fiquei impressionado com uma carta de dez páginas, manuscrita e assinada por Viriato da Cruz, com data de 27 de Novembro de 1952. Era destinatária a jornalista e escritora moçambicana, Noémia de Sousa. O registo discursivo da carta permite concluir que essa  relação epistolar já durava anos. Teria dado lugar a uma abundante correspondência, certamente.

A carta endereçada a Noémia de Sousa, que vivia em Paris nessa altura,  é escrita no intervalo em que são enviadas outras cartas para diferentes destinatários. Presume-se que, em carta anterior, com data de 14 de Novembro, a escritora moçambicana terá suscitado uma questão que merecia resposta. A distância que os separa é então preenchida pela reflexão de Viriato da Cruz através da qual se propõe abordar aquilo a que denomina por "caso angolano”, tendo em conta que "as transformações sociais de uma comunidade particular determinam-se também, […] pelas transformações do processo global da humanidade”. E acrescenta: "Nada é absolutamente exterior a tudo. Tudo age sobre tudo. E o caso angolano é dos que estão sujeitos a uma série complexa de influências”.
Assim, Viriato da Cruz  considerava que a liquidação do colonialismo implicava "o desenvolvimento da economia capitalista em Angola, um capital angolano” e a criação de uma "elite capitalista”. Mas, afirmava que "uma elite capitalista significa, não só aumento e melhor definição do campo da pequena-burguesia e do proletariado, como significa, ainda, criação, em Angola, de um proletariado branco.”

As ideias plasmadas nesta carta serão consolidadas nos anos seguintes. A acta da fundação do Partido Comunista de Angola é prova disso. Trata-se de um documento assinado por quatro membros fundadores, entre os quais António Jacinto e Viriato da Cruz, a que se juntam Ilídio Machado e Mário António Fernandes de Oliveira. O documento está impregnado pelo pensamento que devia conduzir à "fundação de um Partido progressista e combatente pela causa da libertação das massas trabalhadoras e do povo angolanos[…]”.
Na parte final da carta, manifesta a sua admiração por Noémia de Sousa e revela a existência de uma força poética na franqueza com que exprime os seus sentimentos, apesar de terem sido por ela conotados com "exageros poéticos”. Por isso, renova a sua simpatia e amizade.

Da poesia publicada na revista "Sul” e que Salim Miguel insere no seu livro, está um poema de Viriato da Cruz que terá sido evidentemente enviado por carta. Trata-se do poema com o título "Encruzilhada”, escrito em 1953, dedicado ao panafricanista norte-americano W.B.Dubois e ao poeta Agostinho Neto, duas figuras que, como é evidente, mereciam a sua admiração e estima.
Portanto, as cartas  destes dois poetas angolanos fornecem já a tipificação dos  intelectuais orgânicos marxistas angolanos que vão integrar o movimento de libertação nacional cujos modelos são tomados do Brasil e Portugal. Os intelectuais são os "legitimadores da ideologia” cuja ambiguidade do conceito  produziria efeitos nefastos durante a luta anti-colonial e após a independência do País. Em conclusão, pode dizer-se que é recomendável interpretar e compreender os textos autobiográficos dos escritores, enquanto fontes para uma verdadeira narrativa histórica angolana.

 * Ensaísta e professor
universitário

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