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Eleições : Tunísia vive um “risco crescente de falência”

São quase oito milhões de tunisinos que estão inscritos para votar hoje na segunda volta das eleições legislativas, boicotadas novamente pela oposição, destinadas a eleger um parlamento com poderes limitados e em que a taxa de participação deverá manter-se muito baixa.

29/01/2023  Última atualização 10H35
© Fotografia por: DR

A segunda volta das legislativas - na primeira, a 17 de Dezembro de 2022, a abstenção ultrapassou os 90%, permitindo eleger apenas 30 deputados, todos afectos ao Presidente Kais Saied - concorrem 262 candidatos para ocupar os restantes 131 dos 161 assentos parlamentares.

Trata-se de uma das últimas etapas do calendário definido por Saied para instaurar um sistema ultra presidencialista, objectivo final do Presidente que, em 2021, num "golpe de força”, assumiu plenos poderes, dissolvendo o Governo e o parlamento. A nova assembleia de 161 deputados substituirá a que Saied destituiu a 25 de Julho de 2021, após meses de bloqueios políticos no sistema em vigor desde o derrube da ditadura de Zine el-Abidine Ben Ali, na primeira revolta da chamada Primavera Árabe (2011).

 Na véspera de uma nova ida às urnas, a Tunísia vive um "risco crescente de falência” e de um "novo ciclo de instabilidade”, com muitos observadores a admitirem um possível golpe de Estado, afirmou ontem um especialista.

A conclusão foi avançada à agência Lusa pelo director do Programa para o Norte de África do International Crisis Group (ICG), Riccardo Fabiani, que destacou o facto de a Tunísia estar mergulhada numa "crise política e económica” que, até agora, o regime tornado autocrático do Presidente Kais Saied "não conseguiu resolver”.

"As eleições (primeira volta) que foram organizadas em 17 de Dezembro e a segunda volta deste domingo, foram e vão ser boicotadas pela esmagadora maioria dos eleitores, que neste momento não têm confiança no Presidente nem na oposição, que continua de ser hegemonizada pelos islamistas”, sustentou Fabiani.

"Há um risco crescente de que a Tunísia possa ir à falência e que haja um novo ciclo de instabilidade, enquanto muitos observadores falam na hipótese de um golpe de Estado nos próximos meses”, alertou o director do Programa para o Norte de África do ICG.

Para agravar a situação, prosseguiu Fabiani, o Fundo Monetário Internacional (FMI) "ainda não autorizou o empréstimo” que a Tunísia negociou em 2022, "porque não confia em Kais Saied e na actual conjuntura política no país”. No fim de semana passado, milhares de manifestantes responderam ao apelo dos partidos da oposição para marcar o 12.º aniversário da revolta da Primavera Árabe e protestaram em várias cidades tunisinas contra a crise económica desencadeada pelo cada vez maior autoritarismo do Presidente Saied.

O movimento de protesto ocorre após as desastrosas eleições legislativas de 17 de Dezembro de 2022, em que apenas 11% dos eleitores exerceu o direito de voto e cuja segunda volta, marcada para o próximo domingo e novamente boicotada pela oposição, visa concluir meramente o processo eleitoral para "remodelar uma legislatura” que o Presidente Kais Saied dissolveu em 2021.

As manifestações, lembrou por sua vez a agência noticiosa Associated Press (AP), também ocorrem numa altura em que o país atravessa uma grave crise económica, com a inflação e o desemprego em alta, o que levou a que a Tunísia fosse o destino de uma ajuda alimentar da Líbia, iniciada a 17 deste mês, quando mais de 100 camiões carregados com açúcar, óleo, farinha e arroz chegaram a Tunis.

No total, o Governo de Tripoli prevê enviar 170 camiões com ajuda alimentar até ao final do mês para fazer face ao aumento dos preços dos alimentos e à escassez de combustível e produtos básicos, como açúcar, óleo vegetal e arroz.

No sábado passado, foi a Frente de Salvação Nacional (FSN), uma coligação de cinco partidos da oposição tunisina, que inclui a força islâmica Ennahdha, que convocou a marcha no centro de Tunes, em que os manifestantes gritaram palavras de ordem como "Kais Saied, deixa o poder” e "Não à ditadura, sim ao diálogo e à democracia”.

O presidente da Liga dos Direitos Humanos da Tunísia, Bassem Trifi, disse que as autoridades proibiram manifestantes de outras cidades do país de se deslocarem a Tunis para participar na marcha, mas foi o líder do Partido dos Trabalhadores tunisino, Hamma Hammami, que foi mais longe na avaliação da situação. "Kais Saied acabará na prisão ou fugirá para o exterior. O seu regime ditatorial cairá, como o do ex-Presidente [Zine Abidin] Ben Ali”, frisou Hammami.


  Recordar o passado 

A 14 de Janeiro de 2011, o então Presidente Ben Ali, que morreu em 2019, foi forçado a deixar o poder, transformando o país numa democracia emergente que inspirou a denominada Primavera Árabe, movimento de contestação popular que desencadeou mudanças históricas em vários países árabes.

"Estamos aqui para dizer 'stop' ao processo de destruição do Estado iniciado por Kais Saied. Devemos abrir novas perspectivas para o nosso país”, disse Abassi Hammami, líder do Comité Nacional para a Protecção das Liberdades, que garantiu, tal como o líder do Partido Republicano, Içam Chebbi, que a oposição vai continuar a luta para relançar o processo democrático e ajudar o país a sair da crise política, económica e social. Saied, eleito em 2019, restringiu a independência do sistema judicial e enfraqueceu os poderes do parlamento e dos partidos.

Num referendo realizado em Julho de 2022, os eleitores tunisinos aprovaram, apesar da elevada abstenção, alterações constitucionais que concedem amplos poderes executivos a Saied, que liderou o projecto e que escreveu o próprio texto. Em Setembro, aproveitando o poder do novo mandato, alterou a lei eleitoral para diminuir o papel dos partidos políticos. Na sexta-feira passada, numa aparente resposta às críticas, Saied fez uma visita surpresa a uma das principais avenidas de Tunis, a Habib Bourguiba, e percorreu o bairro histórico da capital, a medina.

Na ocasião, pediu cautela contra "intrusos e renegados” que podem misturar-se com os manifestantes para provocar confrontos. O aniversário do '14 de Janeiro' foi abolido como data oficial de comemoração por Saied, que, em vez disso, declarou 17 de Dezembro como o "dia da revolução”.


  JULGADA À REVELIA NA TUNÍSIA
Ex-chefe do gabinete presidencial  condenada a 14 meses de prisão

A ex-chefe do gabinete presidencial na Tunísia foi ontem condenada, à revelia, a 14 meses de prisão em conexão com gravações de áudio contendo comentários depreciativos sobre o Presidente Kais Saied, de acordo com relatos da mídia local citados pela AFP.

Uma série de gravações sonoras atribuídas a Nadia Akacha evocando os bastidores do Palácio e reuniões do Presidente Saied com dignitários estrangeiros, foram massivamente compartilhadas nas redes sociais em Abril de 2021, fazendo manchetes na Tunísia.

As gravações foram divulgadas três meses depois de Akacha renunciar ao cargo, depois de servir como assessora mais próxima do Presidente por dois anos. Nadia Akacha negou os comentários que lhe são atribuídos, que também incluíam intrigas sobre o Presidente e os seus sogros.

A Promotoria de Túnis abriu uma investigação no início de Maio para determinar a autenticidade dessas gravações.

Advogada de formação, Akacha foi nomeada assessora jurídica no gabinete presidencial no final de 2019, antes de se tornar em Janeiro de 2020 chefe do Gabinete do Presidente Saied, acompanhando-o em todas as suas viagens, na Tunísia e no exterior. Ela anunciou a sua renúncia citando "diferenças fundamentais de opinião, em relação ao interesse” do país. De acordo com a mídia, ela mudou-se para França depois de deixar seu posto.

Após meses de impasse político, Saied, eleito no final de 2019, assumiu plenos poderes no final de Julho de 2021, demitindo o Primeiro-Ministro e suspendendo o Parlamento, antes de dissolvê-lo em Março de 2022. Os seus críticos acusam-no de estabelecer uma nova autocracia no país, que foi o berço da Primavera Árabe em 2011.


  ACORDO ASSINADO EM TUNIS
Itália aceita aumentar fluxo de imigrantes ilegais da Tunísia

Naquilo que parece ser uma tentativa política de ajudar o presidente tunisino a melhorar a sua imagem externa, o chefe da diplomacia italiana disse, esta semana, que o seu país está "pronto para aumentar” o fluxo de imigrantes ilegais da Tunísia, mas pede mais esforços contra a imigração ilegal. Segundo a AFP, Antonio Tajani, ministro das Relações Exteriores da Itália, na sua visita à Tunísia,  reiterou a necessidade de reduzir a imigração irregular e fortalecer a regular entre os dois países.

"A Itália também está disposta a aumentar o número de imigrantes regulares, formados na Tunísia, que podem vir trabalhar connosco, no campo da agricultura, no campo da indústria. Ou seja, reduzir a imigração irregular e fortalecer a regular”, disse Tajani. Segundo aquele responsável, "o grande problema é que imigração é um flagelo para a Tunísia e para a Itália.

Dissemos que tínhamos de resolver o problema pela raiz. Não é um problema exclusivamente de segurança. É claro que é um problema de segurança, mas devemos ter uma estratégia para entender por que milhares e milhares de pessoas decidem deixar seu país de origem”, Tajani também anunciou a próxima organização de um Fórum de Negócios para "reforçar ainda mais a presença de empresas italianas” na Tunísia.


 

Berço da Primavera Árabe tem 11 milhões de habitantes 

A Tunísia, com 11 milhões de habitantes, está situada no Norte de África, no cruzamento das bacias oriental e ocidental do Mediterrâneo, entre a Argélia (Oeste) e a Líbia (Sudeste), a Sudoeste da Itália (180 quilómetros  da Sicília). Com o Norte montanhoso, o Centro Oeste com estepes, o Sudoeste com lagos salgados (secos) e com deserto em todo o Sul, a Tunísia tem 1300 quilómentros de litoral marítimo desde a fronteira com a Argélia até com a da Líbia.

A Revolução de Jasmim , também chamada revolução tunisiana de 2010-2011, é uma sucessão de manifestações insurrecionais ocorrida no país entre Dezembro de 2010 e Janeiro de 2011 que levou à saída do Presidente da República, Zine El Abedine Ben Ali , que ocupava o cargo desde 1987.

Os protestos na Tunísia prosseguiram ao longo de Janeiro de 2011, estimulados por um excessivo aumento dos preços dos elementos básicos, que veio a aumentar a insatisfação popular diante do elevado desemprego, das más condições de vida da maior parte da população tunisina e da corrupção do Governo. Dado que na Tunísia não há registo de muitas manifestações populares, estas foram as mais importantes dos últimos 30 anos.

Primeiro país da chamada Primavera Árabe, a Tunísia destacou-se e realizou avanços significativos no seu processo de transição democrática. Em 2014, o país dotou-se de uma nova Constituição e levou a cabo eleições legislativas e presidenciais que permitiram formar um Governo de coligação entre o partido maioritário, Nida Tounès e o Ennahda. A atribuição do prémio Nobel da paz, em Outubro de 2015, ao Quarteto para o Diálogo Nacional da Tunísia provou que movimentos islamitas e seculares podem trabalhar em conjunto e atingir resultados significativos no interesse do país

Em termos económicos, depois de uma década em que o produto interno bruto (PIB) registou um crescimento médio anual da ordem de 5%, a actividade económica sofreu um acentuado abrandamento em consequência da instabilidade social, política e económica que o país viveu nos últimos anos. Em 2015, apesar de uma conjuntura internacional mais favorável, a economia tunisiana teve um crescimento de apenas 0,3% (2,7% no ano anterior), segundo estimativas da Economist Intelligence Unit (EIU) , em consequência, sobretudo, da degradação da envolvente securitária, que afetou seriamente a confiança das famílias e das empresas.


  eleitores manifestam pouco interesse nas eleições 

Anterior taxa de participação revela a indiferença popular


A taxa de participação na primeira volta das eleições legislativas na Tunísia, em Dezembro do ano passado, foi baixa, tendo sido  de apenas 9 %. Os 1.055 candidatos eram na grande maioria desconhecidos e contavam com menos de 12% de mulheres. E foram proibidos de exibir qualquer filiação política. Ao contrário do Parlamento eleito após a revolução de 2011, a nova Assembleia de Deputados está desprovida de poderes reais.

Segundo a nova Constituição, aprovada no verão passado, o Parlamento não poderá demitir o presidente e dificilmente poderá apresentar uma moção de censura ao Governo. A principal força da oposição, Frente de Salvação Nacional (FSN), unida em torno do movimento de inspiração islâmica Ennahdha, denunciou uma "deriva autoritária” na única democracia surgida da Primavera Árabe.

Os resultados representam uma decepção muito grande porque Kais Saied contava com a vontade do povo”, que ele reivindica desde o golpe de 25 de Julho de 2021, observou na altura o analista político tunisino Abdellatif Hannachi. Eleito por mais de 70% em Outubro de 2019, Saied deixou o palácio presidencial, antes da votação, para inaugurar estradas ou confortar os moradores de bairros pobres.

Opositores do FSN e do influente Partido Desturiano Livre (PDL, anti-islâmico), de Abir Moussi, estão a exigir a saída de Saied, expressando o desejo de toda a oposição.  Mesmo depois da também baixa taxa de participação no referendo à Constituição (30,5%), Saied "recusou-se sempre a admitir a derrota”, sublinhou Chérif.

A oposição está dividida em três blocos: o FSN, em torno do Ennahdha, os partidos de esquerda e o PDL. Segundo os analistas, a divisão tem na base o papel do Ennahdha, uma formação maioritária no Parlamento há 10 anos, que muitos tunisinos responsabilizam pelos problemas económicos e sociais do país. As manifestações contra o "golpe de Estado” de Saied reuniram no máximo 6 mil a 7 mil pessoas e tornaram-se cada vez mais raras.

Apenas a poderosa central sindical da União Geral dos Trabalhadores Tunisinos (UGTT) tem sido capaz de levar as pessoas às ruas. A Tunísia está mergulhada numa crise económica e social, agravada pela guerra na Ucrânia, com inflação próxima de 10% e pobreza crescente.

O apoio externo é crucial para uma Tunísia altamente endividada, que pediu ao FMI um empréstimo de cerca de 2 mil milhões de dólares, condicionando ela mesma a outras ajudas, da Europa ou dos países do Golfo. A comunidade internacional tem sido pragmática em relação à Tunísia, tendo em conta a situação regional e "tendo em vista os problemas de imigração e o conflito entre o bloco sino-soviético e o bloco norte-americano-europeu”.


  SOCIEDADE CIVIL está preocupada
"Tortura psicológica” anima apreciação política

A Tunísia tem testemunhado o aumento nos maus-tratos aos opositores do Presidente Kais Saied desde que ele assumiu o poder em 2021, o que equivale à "tortura psicológica”, segundo um grupo de direitos humanos sediado no país. Saied paralizou o Parlamento e apoderou-se de poderes executivos, em 25 de Julho de 2021, naquilo que os críticos chamaram de "golpe” e um "ataque” à única democracia que emergiu depois da "Primavera Árabe”, há mais de uma década.

Após a queda de Zine El Abidine Ben Ali, em 2011, os incidentes de tortura instigados pela liderança política em Tunis diminuíram, disse Helene Legeaey, da Organização Mundial Contra a Tortura. Mas desde que Saied assumiu o poder, tais maus-tratos foram "estendidos a opositores políticos” do líder tunisiano.

"O que nos preocupa enormemente é o aumento nos últimos anos do que poderia ser descrito como tortura psicológica, ou pelo menos maus-tratos perpetrados contra pessoas sob vigilância policial. Isso, manifesta-se sob a forma de restrições arbitrárias de liberdades, restrições renovadas, através de prisão domiciliária, proibições de viagem e visitas policiais”, disse Legeay.

Legeay disse que as forças de segurança desfrutam, em grande parte, de "impunidade”, oferecendo "consentimento tácito” para o ataque a "manifestantes, opositores políticos e membros da comunidade LGBTQ”. No entanto, "a Tunísia ainda não suspendeu ou prendeu qualquer pessoa acusada de cometer tais crimes”, acrescentou.

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