Opinião

…E o azar há-de acabar

Jacques dos Santos

Escritor

Quando em 1964 assentei praça no exército português, precisamente no Grupo de Artilharia de Campanha, em Luanda, estava longe de imaginar que pouco mais de uma década depois, estaríamos nós, os angolanos, a festejar a independência nacional, e muito menos que aquele vastíssimo local que abarcava o quartel com todas as suas dependências, com as muitas valências que ajudaram jovens a passar da adolescência para a maioridade, a encarar a vida na aprendizagem de ofícios para iniciar o futuro, se modificasse radicalmente; e que a significativa área residencial para sargentos e oficiais casados que complementava o dito local, não fosse servir o mesmo fim.

16/05/2021  Última atualização 08H05
A pequena granja com currais e pocilgas, as pequenas hortas onde se cultivavam plantas com folhas comestíveis e até se criavam animais de abate como porcos e cabritos para o abastecimento do quartel, teve um fim perfeitamente esperado.
Era uma prática com objectivos económicos e era comum a todas as unidades militares, com outra preponderância para as que se instalavam em zonas do mato, no interior.

Mas, foi lá, no GAC1 de Luanda que alguns dos meus companheiros saíram para o ASMA, uma instituição militar que preparava mecânicos, torneiros, sapateiros e correeiros, estes últimos, ofícios difíceis de se encontrarem montados em estabelecimentos próprios nos dias de hoje, não sei bem porquê. Enquanto isso, eu aprendi e aperfeiçoei-me na condução de jeeps, jipões, Hunimogs e camiões Mercedes que inicialmente me assustavam. Manifestei sérias dificuldades de chegar aos pedais da embraiagem e do travão, dada a minha baixa estatura. Um dia, ao volante de um desses carrões, foi por milagre que não derrubei a peanha com o respectivo polícia sinaleiro que no alto do seu pedestal organizava o trânsito no cruzamento da Avenida chamada hoje do 1º. Congresso com a rua que vem do antigo Largo do Pelourinho e segue em direcção à Mutamba.

Apanhei um susto que me pôs a tremer dos pés à cabeça, como se calcula, mas que me obrigou a ganhar consciência do perigo que constitui ter em mãos impreparadas um veículo automóvel pesado, como era o caso, a circular no tráfego de uma grande cidade como era Luanda, hoje, infelizmente, muito maior e mais desorganizada. Não sei se adoptamos ou não essas práticas de aprendizagem, mas a verdade é que os ofícios de que atrás dei conta fazem falta em qualquer sociedade.

De volta ao quartel e àquele tempo em que me sujeitei às diabruras da recruta, guardando recordações da imaginação e criatividade de uma certa juventude que se colocava perante si mesma num contexto de guerra; dos amigos que criei e dos sujeitos ocultos em máscaras por trás das quais se escondiam inimigos que fui obrigado a estimar e mais tarde a odiar, ponho-me hoje a pensar, entre milhentas coisas, nas motivações que levaram a que se transformasse aquele sítio do quartel numa praça de arranha-céus, onde a alta finança se instalou.

O conjunto de edifícios que formam as sumptuosas Garden Towers e todos os outros onde funciona parte da alta finança angolana com uma série de empresas poderosas, fazem aperceber bem as transformações que Luanda e Angola sofreram. E logo me aflora a dúvida de como e de que modo se transaccionaram espaços públicos que valiam e valem fortunas, uma vez que nos jornais não surgiram, como antigamente se fazia, editais que falassem das áreas cadastradas e dessem conhecimento público de quesitos matriciais e de valores envolvidos nas vendas, de como passava o património da edilidade para mãos individuais ou de grupos, de privados.

Retorno ao quartel e àquela época, desta feita já transferido para o Regimento de Infantaria de Luanda, o RIL, onde me acompanhou e se tornou camarada um jovem português, da minha idade, exuberante, sempre a fazer caretas ao falar, chato e palerma na repetição das palavras que os outros proferiam, o que levou a que todos o tratassem por "meio maluco”. Era o Ernesto, bate-chapas, profissão que já trazia da vida civil.

Um dia, igual a todos os outros, estava ele a aborrecer-me com a extenuante repetição de tudo quanto eu dizia, quando me vi a atingir-lhe o rosto com as costas da minha mão direita. Uma grande chapada que fez inchar instantaneamente a cara do Ernesto de onde escorreu bastante sangue. Tinha-lhe partido a cana do nariz. Acompanhei-o ao posto médico, onde, para surpresa minha, se recusou a apresentar queixa que me levaria a uns bons dias de detenção. Quando voltamos do curativo, ouvi, surpreendentemente, o Ernesto a cantarolar uma cantiga de refrão esquisito.

António há-de morrer, a Oliveira há-de secar, o Sal também se derrete, e o azar há-de acabar, cantava ele, em tom menor. Fomos transferidos para o Leste e o Ernesto, já menos brincalhão, volta e meia, cantava e assobiava a velha canção. Passou o tempo da tropa, regressamos a Luanda e soube que o Ernesto continuou no seu métier de bate-chapas, numa oficina situada na Estrada da Brigada. Entretanto Salazar morreu e com ele foi-se todo um passado inculto, fechado, de arrogância, de medo e de falta de educação e cultura. Houve momentos em que senti não o sal cantado pelo Ernesto, mas o gelo a derreter-se no coração de algumas pessoas. Veio o 25 de Abril e depois a independência. O Ernesto bazou com os outros patrícios e nunca mais ouvi falar dele nem ouvi mais a música que hoje, por acaso, recordei.
Pedindo aos deuses e aguardando pela clemência da chuva, cumprimento os meus leitores com o respeito de sempre. Para a semana cá estarei, no domingo, à hora do matabicho.

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