Entrevista

Lesão coarta sonho de menino

Armando é um dos muitos ex-desportistas que despontou no areal e decidiu abraçar o desafio de um dia tornar-se um futebolista de referência, cumprindo com todas as etapas, mas uma "maldita" lesão coarctou a possibilidade de concretizar o sonho de garoto, jogar por um clube da Europa

07/11/2020  Última atualização 16H41
Antigo médio do Interclube e Petro de Luanda admite que passou ao lado de uma grande carreira © Fotografia por: António Júnior /Edições Novembro
Com uma breve passagem pela Escola do Peyroteo, aquele que foi um dos maiores professores do ABC do futebol antes da independência, os primeiros passos a sério começou a dá-los no Maxinde FC, seguindo depois para o Interclube, culminando no Petro de Luanda.

Enquanto esteve no activo, disputou sempre com os colegas um lugar no onze inicial, quer à defesa quer no meio campo, ao lado de nomes sonantes do futebol nacional, como Mendinho, Raúl Kinanga, Carlitos, Kinito e Pedro Afonso (Interclube), Jesus, Abel Campos, Santo António, Macuéria e tantos outros.

"Por influência de um amigo fomos fazer um teste na Escola do Peyroteo. Tentei a minha sorte e fui apurado. Infelizmente, dias depois começa a guerra civil e regista-se uma pausa em toda a actividade desportiva no país”, lembrou.
Com destino traçado para um dia consagrar-se como  atleta de alta competição "os amigos voltaram a pressionar-me, pois reconheciam em mim valências, à ir fazer o teste no Maxinde FC. O mister Semica, não teve dúvidas e convidou-me para ficar”, realçou.

A partir daí, começou a caminhada para o mundo maravilhoso do futebol. "A minha carreira considero que foi positiva, com excepção da lesão que me levou a abandonar de forma prematura. Mas, de um modo geral, posso dizer que valeu a pena”, avaliou.
Diz não ter ganho fundos e mundos como desportista, mas defende que conquistou algo muito especial na vida de qualquer ser humano: a amizade. "Ganhei muito amigos, embora os bens materiais sejam importantes, mas a amizade é para mim algo muito especial”, acentuou.

"No tempo em que muitos de nós jogávamos, era mais por amor à camisola e praticamente não existia contratos. O que recebíamos era apenas electrodomésticos ou uma motorizada. As casas começaram a surgir muito depois, ainda assim exprimíamos alegria nos rostos”, recordou.

Armando afirmou não estar arrependido, embora acredite que merecia outro destino. "Sonhei sempre ser atleta e felizmente consegui. Apesar de não ter concretizado aquilo que sempre almejei, jogar no exterior, por culpa da lesão que alterou tudo”, sustentou. Sem falsas modéstias, defende que tinha talento para fazer sucesso na Europa.
"Nos jogos do SKDA (Campeonatos Militares dos Países do Leste) impressionei muitas equipas e acredito que se tivéssemos naquela altura abertura, a história da minha carreira seria outra. Tive oportunidade de ficar à revelia, mas as possibilidades de jogar seriam remotas”, reconheceu.

Destacou que não viajavam com passaportes, "mas com salvo conduto e o dinheiro não era sonante, mas sim em travel chek e muitas outras condicionantes que não interessa estar a enumerar”, justificou.
Ao contrário de muitos atletas da sua geração, que representaram a Selecção Nacional de Honras, "a maldita lesão que sofri, aos 25 anos, coartou-me a possibilidade de representar a selecção do meu país, o sonho e, talvez, o ponto mais alto da carreira de qualquer desportista”, lamentou.

Armando admite que a saída de Semica (Severino Miranda Cardoso) do Interclube para o Petro de Luanda teve influência negativa na sua vida como futebolista, culminando com a lesão que afectou de que maneira a sua promissora carreira futebolística.
"Quando o técnico Semica foi contratado pelo Petro, em sua substituição, a direcção do Interclube contratou o mister Joca Santinho que tinha acabado de regressar da República Democrática da Alemanha (RDA)”, revelou com um semblante triste.
"Foi num jogo frente ao 1º de Agosto em que tudo aconteceu. Não houve qualquer contacto com o adversário, a lesão surgiu por excesso de carga a que éramos submetidos pelo novo treinador. Forçou-me os joelhos, os ligamentos e o minúsculo não aguentaram”, justificou.

Sublinhou que foi campeão pelo Petro, clube que manifestou interesse nos seus préstimos. "Um facto curioso, quando o técnico brasileiro António Clemente veio pela primeira vez em Angola, o Petro disputou um jogo treino, no Campo do São Paulo, com o Maxinde FC e ele ficou impressionado com a juventude e a qualidade do nosso plantel”, completou.
"Inclusive chegou a questionar se o treinador era mesmo angolano, responderam que sim e foi-lhe apresentado o mister Semica. Foi assim que levou o Lito Gouveia, que chegou a ser presidente de direcção do Petro, Chico Afonso, Afonso Coelho e o Domi. Foram estes os primeiros a irem para o Catetão”, concluiu, dizendo que a intenção era levar toda a equipa titular.

Queres ir ao Brasil?
Recorda que "num belo dia”, lesionado e sem fazer nada, a jogar "não te irrites”, no bairro do Rangel, com os amigos, foi surpreendido por um dos irmãos a chamá-lo  porque em casa estavam uns senhores que queriam falar com ele.
"Qual foi o meu espanto, quando entro na rua e deparo-me com um carro com o timbre da Sonangol. Depois da saudação, disseram-me que estavam aí a mando do sr. Hermínio Escórcio para ir conversar com ele”, contou.

Rendida pelo seu talento, a direcção do Petro de Luanda, não hesitou em levar avante o pedido feito pelo técnico António Clemente, e para espanto de Armando, a conversa com o antigo "boss” da petrolífera angolana e dos tricolores deixou-o surpreendido. "Queres ir com o Petro ao Brasil? ”, questionou.

"Temos consciência que estás lesionado, mas vais com a nossa equipa no estágio e vamos tratar da sua lesão”, lembrou, com nostalgia, estas palavras que o encantaram, deixando-o perplexo ante tamanha proposta.
"Eu era atleta do Interclube, mas como estava cansado de tantas promessas de certos dirigentes, não hesitei e aceitei o convite. Sei que a minha saída deu muitos problemas no clube, quando o ministro Kito e o chefe Nandó tomaram conhecimento”, assinalou.
Armando lembrou que ao contrário da sua transferência, que foi menos polémica, " o Simão Paulo, actual adjunto do Bravos Maquis, como era polícia, quando a direcção tomou conhecimento que assinara pelo Petro foi transferido para o Bié”, explicou.

  "Vivemos uma situação caricata no Uíge”

Uíge, província que nos últimos dias esteve em destaque nas redes sociais, como uma região onde a prática de feitiçaria para alguns  habitantes desta região é algo especial que deve ser respeitado e preservado, pois pode comandar e definir a sua vida, Armando guarda tristes recordações.
"Fomos jogar no Uíge frente aos Construtores FC e para  nosso espanto no aquecimento os atletas locais começaram a atirar coisas estranhas para o campo. O Raul Kinanga, o mais velho do grupo e nato da terra, advertiu-nos para ninguém tocar nos referidos objectos”, aconselhou.
Prosseguiu  dizendo que "para o espanto de todos, o Pirocas (falecido), como era o mais jovem e um pouco assanhado, apanhou um dos embrulhos e atirou-o para fora do campo. Qual foi o nosso espanto, caiu inanimado”, lembrou.
Armando explicou que diante desta situação caricata, "gerou-se um pânico e ficamos todos a tremer, pois eramos muito jovens, na faixa dos 19 e 20 anos, e nunca tínhamos testemunhado algo do género. Diante da situação, o moral baixou e jogámos sob pressão”, referiu.
"Com esforço, conseguimos nos concentrar e competimos de igual para igual com os Construtores e, se a memória não me falha , empatámos. Para satisfação do grupo, quando terminou o jogo,  ele  recuperou”, destacou.
O Raul em gesto de gozo, disse "já viste é para aprenderes a respeitar. Mas, as coisas não ficaram por aí, gerou-se uma certa confusão e a Polícia teve que intervir”, concluiu.
Em jeito de recado alerta à nova geração para pensar mais no futuro. "Tenho visto muitos jovens com bons contratos, mas a forma como gerem a carreira não é a mais correcta. Muitos deles compram carro de alta cilindrada, quando podiam investir melhor o que ganham. Lembro-me que nós até motos apreendidas deram-nos como recompensa de contrato”, defendeu.

  TÍTULO
Joka Santinho
"morde isca” de Semica

A matreirice e a experiência de Semica como técnico foi determinante para suplantar o 'novato' Joka Santinho, na altura regressado da Alemanha onde fez o curso de treinador, conquistando o primeiro e único título de campeão nacional, no comando do Petro de Luanda.
Forte em termos psicológicos e com muita maturidade, levou a melhor sobre o opositor, numa fase em que o Girabola estava bastante competitivo. "Inteligente e astuto como era, na véspera do dérbi Petro de Luanda- Interclube conseguiu desmoralizar o  adversário”, contou Armando.
"Na véspera do jogo, disse à comunicação social que iria defrontar uma equipa com atletas formados por ele e que conhecia perfeitamente o adversário. Estas declarações fizeram com que o mister Joka colocasse em causa o nosso profissionalismo e alterou por completo o onze inicial”, frisou.
Assegurou que pressionado pelas declarações do  antecessor, optou "por apostar em colegas com pouca rodagem competitiva. Se a memória não me atraiçoa, perdemos ou empatámos o jogo e o resultado influenciou nas contas finais, pois a diferença foi apenas de um ponto com vantagem para o Petro de Luanda, sagrando-se assim campeão nacional”,, revelou.
Com sentimento de revolta, recordou que as declarações "não passaram de bazófia para desestabilizar o mister Joka e conseguir atingir o seu objectivo. Ainda assim, sinto-me regozijado por ter jogado no Interclube, pois foi lá onde atingi o ponto mais alto da minha carreira”, sublinhou.
"Não fui campeão nacional por esta equipa, mas realizei épocas excelentes e durante alguns anos levei o Interclube às costas. Quem me conhece e acompanhou a minha carreira concorda comigo. No meio campo e, por vezes, na defesa fui sempre um dos atletas influentes”, declarou.

PERFIL
Nome
Miguel Martins

Data deNascimento
03-06-1960
Naturalidade
Luanda
Estado Civil
Casado
Filhos
5
Internacionalização
0
Títulos
Campeão pelo Petro (1984)
Clube do coração
Interclube


Especial