Sociedade

Burlas deixam milhares de famílias na desgraça

A voz firme de Sandra Macedo, ao tentar passar a ideia de que está tudo bem, é incapaz de abafar a tristeza transmitida pelo seu semblante, sempre que ouve falar do projecto imobiliário “Bem-Morar”.

12/06/2018  Última atualização 11H14
Domingos Cadência | Edições Novembro © Fotografia por: Obras do Bem-Morar ficaram pelo meio e alguns clientes tiveram de continuar o trabalho

A razão não é para menos. Além de perder, na altura, os únicos 201 mil dólares, adquiridos a base de muito sacrifício, também viu morrer o marido, que não conseguiu enfrentar o prejuízo.
“O meu sonho morreu duas vezes. Fiquei sem a casa e sem o marido”, lamenta. Apesar de o companheiro já ter falecido, há quatro anos, Sandra ainda se encontra a pagar uma dívida estimada em 16 mil euros, que foi contraída para salvar o marido, aplicados no tratamento deste.
“Nós tínhamos uma gran-de expectativa em relação ao projecto. Por essa razão, não hesitamos em adiantar a única reserva que nos restava em casa”, contou com ar nostálgico.
Sandra e o marido concorriam para uma casa T4, no projecto “Bem-Morar”, orçada em mais de 300 mil dólares. Na sequência desse investimento, tiveram de trazer de volta para o país um dos filhos que se encontrava a estudar no estrangeiro, por já não terem como custear a formação dele. “Ficamos sem dinheiro”, explica.
A situação só não ficou ainda mais complicada porque, diferente de outras vítimas, que ficaram sem um tecto para morar, Sandra Macedo continua, até agora a residir na sua antiga casa, porque resistiu à tentação de vender a única habitação que possuía.
“A nossa sorte é que não nos desfizemos da nossa actual casa como os outros fizeram e, hoje, estão a viver dias difíceis em casas de familiares ou na renda”, salientou.
Dadas as dificuldades que Sandra enfrentava para continuar a contar a sua história, fomos obrigados a interromper a conversa com ela e ou-vimos Nelson Antunes, que falou ao Jornal de Angola, em nome do coordenador-geral da Comissão dos Lesados pela Build Angola, Hélio Moryson. O primeiro dado que esse responsável nos avançou foi que “o marido de Sandra Macedo não é o único que perdeu a vida em consequência desse prejuízo”.
Nelson Antunes revelou que meses depois de terem feitos os contratos, em 2008, alguns candidatos das casas dos projectos da Build An-gola, entre os quais o “Bem-Morar”, foram adoecendo e muitos morreram. De óbitos, por esse motivo, contam já um total de 15 pessoas, entre homem e mulher.
“Os problemas de hipertensão foram os principais causadores das mortes”, disse com tristeza no rosto. “Hoje, quem representa os candidatos falecidos na nossa comissão das vítimas são os familiares desses”, revelou.
Nelson Antunes explicou que, além dos óbitos, há os que contraíram Acidente Vascular Cerebral (AVC), uns vi-ram as famílias desmoronar, outros continuam a pagar dívidas ao banco sem beneficiar das casas pagas e os que se encontram a morar em lugar incerto, por terem vendido as suas casas para concorrer ao projecto imobiliário.
Nelson Antunes disse que a comissão, criada para impedir que outras pessoas se infiltrem entre as vítimas, controla cerca de 1.160 lesados, que concorreram a vários projectos imobiliários promovidos pela Building Angola.
Em termos monetários, avançou Nelson Antunes, a Building Angola arrancou dos bolsos de todos os lesados um valor estimado em 230 milhões de dólares.
Uma notícia, embora não confirmada, que desanima os cidadãos burlados pela Build Angola, de acordo com informações que as vítimas obtém da media, é de que parte desse dinheiro, se não todo, já não se encontra no país. “Foi movimentado através de canais oficiais, como bancos”, declarou Nelson Antunes.
Na ânsia de reaver o dinheiro investido nesse projecto, o membro da comissão disse que já escreveram para instituições como a Procuradoria-Geral da República (PGR), Assembleia Nacional, Provedoria de Justiça, ao INADC e à Embaixada do Brasil em Angola, mas, até ao momento, não obtiveram qualquer resposta concreta.
“De um modo geral, apenas nos dizem que tomaram boa nota do caso e, no mo-mento oportuno, vão se pronunciar”, lamenta. Mas, para o espanto dos cidadãos, essa espera dura já dez anos, sem que nenhuma das instituições acima referida ouse dizer alguma coisa sobre o assunto.
Nelson Antunes diz que nem sequer número de processo o caso tem junto das instituições por onde já se dirigiram. “Estamos indignados por estarmos a ser abandalhamos na nossa própria terra, onde fomos roubados por estrangeiros que se diziam nossos irmãos”, refere furioso.

  Afogar as mÁgoas

Numa ronda efectuada à zona onde a empresa imobiliária Build Angola tencionava implantar o projecto “Bem-Morar”, próximo do Lar do Patriota,
o Jornal de Angola constatou que muitas famílias, sobretudo as mais aflitas, vão erguendo agora as suas moradias nos lotes que lhes tinham indicados pela imobiliária.
Além desses, muitos ou-tros têm já casas erguidas e a morar nelas. Esses são aqueles que a construtora havia avançado umas poucas percentagens de execução das moradias, deixan-
do já, por exemplo, o esqueleto da obra. “Na sua maioria, eram pessoas que não tinham onde ficar, por já terem se desfeito das anteriores casas”, explica.
Nelson Antunes denunciou que muitas outras famílias quiseram fazer o mesmo, mas ficaram impedidas porque souberam que os lotes a si inicialmente cedidos pela construtora foram igualmente vendidos a mais de um cliente.
A situação é ainda mais grave, explica Nelson An-tunes, uma vez que existe muitas outras famílias que também não conseguem ocupar os lotes que seriam seus “porque ficaram a saber que a Building não acabou de pagar os terrenos aos proprietários desses espaços”, lamentou.
Em função disso, explicou que os verdadeiros donos dos terrenos não estão a permitir que os candidatos dos espaços indicados pela Build os ocupem. Para agravar, os proprietários dos referidos lotes estão já a vende-los a outras pessoas que não faziam parte do projecto.
Desesperados, as vítimas pedem a intervenção do Presidente da República no sentido de se encontrar uma solução. “Estamos aflitos e já não sabemos a quem recorrer, para reaver os nossos va-
lores, que foram conseguidos a base de muito sacrifício”, suplicou uma outra vítima da burla.
A empresa Build, lidera-da por cidadãos brasileiros, surgiu no mercado angolano, em 2008. Com o apoio de várias figuras públicas, com destaque para o ex-futebolista Pelé, que empre-staram os seus rostos para as campanhas publicitárias, colocaram à disposição dos angolanos vários projectos imobiliários, onde os mesmos pudessem adquirir residências.
“Bem-Morar” foi apenas o mais conhecido. Além desse, havia também o “The One”, “Copa Cabana Palace”, “Nossa Vila”, “Nosso Lar” e “Quintas do Rio Bengo”.

 Jefran também é acusada

Depois do “Bem-Morar”, liderado pela Build Angola, outros projectos imobiliários com características semelhantes as do primeiro decidiram entrar também em cena. São os casos dos projectos da empresa Jefran e Jardim do Éden.
O primeiro é acusado de burlar mais de mil clientes, que já haviam adiantado parte do valor dos imóveis.
Uma das vítimas desse projecto, que falou sob anonimato, alegadamente por não estar autorizada pelo INADEC a falar à imprensa, por esse órgão de defesa do consumidor estar já a tratar do assunto, disse que uma boa parte dos clientes pagou já a casa na totalidade e, um outro grupo, adiantou os 50 por cento do valor.
Mas, continuou, a imobiliária não fez a entrega das casas nos prazos acordados. De acordo com a cliente, nove meses após o pagamento de dez por cento do valor da moradia, os candidatos receberiam as chaves.
Isso não aconteceu. Em função desse incumprimento, um grupo de vítimas do projecto remeteu ao INADEC mais de 50 reclamações, que estão a ser agora devidamente analisadas.


Jardim não é do Éden
Localizado no distrito do Camama, o “Jardim do Éden” também produziu várias vítimas. Só que, diferente de outros, onde as mesmas aceitam dar a cara, neste caso, a excepção de José Luís Mendonça, não se consegue saber onde estão os outros concorrentes às casas do projecto nem como estão a viver nem se continuam a recorrer.
Conhecido nas lides literárias, José Luís Mendonça explicou ter assinado, a 20 de Maio de 2008, com José Ferreira Ramos, Presidente do Conselho de Administração da imobiliária Jardim do Éden, um contrato promessa de compra e venda, com o n.º3/03040, para aquisição de um imóvel, tendo adiantado já 80 mil dólares. A casa custava 120 mil dólares.
“Fiz o pagamento com os fundos provenientes da minha reforma antecipada, pelo trabalho nas Nações Unidas”, frisou José Luís Mendonça para quem a imobiliária tinha prometido entregar-lhe a casa em Setembro de 2009.
Tudo isso, ficou por aí: uma promessa! Perante esse quadro, em 2011, José Luís Mendonça contactou a direcção do Jardim do Éden que, por sua vez, fez-lhe chegar um acordo mútuo que resultou na assinatura de uma adenda ao contrato-promessa de compra e venda, contra o pagamento antecipado de mais 32.554,00 dólares.
A adenda, explicou, estabelecia as bases de entrega de uma habitação já em fase de construção no lote 19.51-A, no bairro do Camama, um ano depois da assinatura.
Meses depois de pagar a prestação, José Luís Mendonça conta que os asiáticos que executavam as obras abandonaram os trabalhos e desaparecem da casa, deixando a construção literalmente parada.
Tentando solucionar o impasse, enviou uma carta à direcção do Jardim do Éden, a solicitar que lhe entregassem o espaço mesmo com as obras inacabadas, a fim de ele mesmo concluí-la, mas a resposta não chegou. “Em função disso, compreendi que a tal obra era mais um engodo para sacar dinheiro aos clientes”, concluiu.
Em 2011, o escritor remeteu todo o processo ao INADEC, na esperança de ver o problema resolvido, mas, até à data, não obteve uma resposta satisfatória.
Por sua vez, uma fonte do INADEC, contactada pela reportagem do Jornal de Angola, revelou que a instituição não dispõe de informações sobre todos os projectos em que estão registados casos de supostas burlas.
A fonte informou que actualmente o INADEC trabalha apenas com o caso das vítimas do projecto Jefran. “Sobre esse processo, ainda não podemos adiantar informações para a imprensa, mas, no momento oportuno, vamos pronunciar-se”, concluiu.

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