Reportagem

Os defensores do povo às portas da Independência

A “Revolução dos Cravos” em Portugal, a 25 de Abril de 1974, encabeçada pelo general Spínola e o Movimento das Forças Armadas (MFA), gerou insegurança nos sectores coloniais.

26/07/2017  Última atualização 06H06
Arquivo Edições Novembro © Fotografia por: Levantamento de 15 de Julho de 1974 contra a falta de segurança nos muceques de Luanda

O golpe dos capitães foi, para os historiadores, um episódio pacífico. Assim seria se os dados se circunscrevessem a Portugal. A verdade histórica diz, no entanto, que muito sangue correu nos territórios ocupados por Portugal, em Angola em particular, cujos povos batiam-se pela liberdade. Além disso, não foram poucas as mortes em atentados, na altura, por extremistas de direita e de esquerda em Portugal.

Morte de Pedro Benge

O 25 de Abril de 1974 apanhou toda a gente de supresa em Angola. Passado o momento de susto para uns e expectativa para outros, começaram os problemas. Em Luanda, a 5 de Junho, o nacionalista angolano João Pedro Benge, 39 anos, é assassinado num bar, junto da actual Cidadela Desportiva, por um colono.
Pedro Benge apenas teria dito “Viva Spínola!”. Foi morto com um tiro à queima-roupa. O funeral contou com pessoas de todos os estratos da sociedade e foi descrito, num relatório para Lisboa, como uma “autêntica manifestação política” a favor da  Independência de Angola.
A 11 de Julho, numa acção calculada, é encontrado morto, no Bairro da Cuca, um taxista branco, dentro da sua viatura. As solidariedades entre taxistas portugueses são conhecidas. Ainda em Fevereiro deste ano, sitiaram o Aeroporto de Lisboa, por causa da “Uber”.
O assassinato em 1974 do taxista António Salgado, natural de Bragança, encontrado degolado, foi aproveitado pelos colonos para tentarem travar o rumo da História. No dia seguinte, os taxistas concentram-se no Palácio e pedem “protecção”. Se esperar, “retaliam”.
Nos dias seguintes, rebenta a primeira vaga de atrocidades em Angola após o 25 de Abril. Os muceques de Luanda são invadidos por milícias brancas, integradas por agentes da PSP (Polícia de Segurança Pública). Até, pelo menos, 26 de Julho, os ataques custam a vida a 200 pessoas. O chão da morgue do Hospital Maria Pia estava pejado de corpos. Fazia lembrar os massacres de 61.
Mas desta vez  a população angolana respondeu. Organizou-se e expulsou os agressores dos muceques. Além disso, desencadeou uma greve geral que paralisou fábricas, oficinas, organismos públicos e “de uma maneira geral, os estabelecimentos e obras onde trabalham predominantemente os moradores dos muceques”, escrevia o jornal “Diário de Notícas”, em Lisboa, a 16 de Julho.

Fraco Governador-Geral

A situação em Angola caminhava para o descontrolo.
Em Lisboa, o Conselho do Governo, por causa da tensão em Luanda, decidiu proibir a circulação de viaturas entre as 20.30 e as 05.00 horas.
O governador-geral era o general Silvino Silvério Marques, que perdeu o filho, médico militar em Cabinda, no rebentamento de uma mina durante a guerra colonial. Homem da linha dura, o regresso deste general a Angola, a 15 de Junho de 1974, é mal recebido. À chegada, no Aeroporto de Luanda, está uma manifestação promovida pelo Movimento Democrático de Angola (MDA), de opositores a Salazar, como o grande jurista Eugénio Ferreira.
 Durante a luta de libertação, os guerrilheiros do MPLA tinham ordens para não atacarem nada relacionado com o desenvolvimento de Angola. Barragens e outros objectivos económicos eram poupados. Muitos camionistas não eram atacados, confirmado por muitos deles. Segundo recorda um dirigente do MPLA da guerrilha, a morte do filho do general Silvério Marques “foi um dia de tristeza”. 
A violência em Luanda tinha, no entanto, o timbre da vingança. Os ataques aos muceques começaram no Bairro Mota e espalharam-se: Cazenga, Rangel, Marçal, Lixeira, Golfe, Prenda, eram cenários diários de explosões.
Os desalojados  fugiram para o interior. A lista publicada pelo Governo-Geral, com os nomes de pessoas atingidas com armas de fogo e atendidas no Hospital de S. Paulo, ilustra quem eram as vítimas: crianças, mulheres, serralheiros, empregados, electricistas, marceneiros, pedreiros, funcionários, rádiotécnicos, ajudantes, estudantes, bate-chapas, serventes, estofadores. Esta classe viria a ter um papel importante na viragem.

Patriotas angolanos

Eclode então um acontecimento de alta relevância histórica e humana.
No dia 15 de Julho, fartos da posição ambígua das Forças Armadas Portuguesas (FAP) com os massacres nos muceques, os militares angolanos que cumpriam o serviço obrigatório nas FAP decidiram agir. Nesse dia, soldados, oficiais e sargentos angolanos de diferentes origens concentraram-se na Fortaleza de S. Miguel, onde ficava o Comando-Chefe das FAP. De manhã, em manifestação ordeira, partem do RI-20 (hoje EMG do Exército) 1.500 militares, a pé, para a Fortaleza. São seguidos pelo povo. A tropa portuguesa deixou passar os manifestantes, mas travou os populares que se aglomeravam em grande número. À entrada para a Rua da Misericórdia (hoje 17 de Setembro) o destacamento da Polícia Militar (PM) portuguesa abriu fogo. No asfalto ficam vários mortos e feridos.
A tensão agrava-se, mas não impede que os militares cheguem à Fortaleza, onde avançou uma comissão, chefiada pelo alferes Amércio de Carvalho, para falar com o general Franco Pinheiro, Comandante-Chefe das FAP.
São expostas ao general as condições para acabar com a carnificina. Os patriotas querem a eliminação da discriminação pela PSP e PM no tratamento das manifestações de africanos e europeus, igualdade nas patrulhas aos muceques e expressam descontentamento pela demora no envio de reforços ao Cazenga quando foram atacadas as populações.
Após a leitura das reivindicações por Américo de Carvalho, o furriel Jorge Pessoa quebra o protocolo e declara, alto e bom som, que o objectivo dos angolanos  é, não só proteger o povo, mas também o fim das operações das FAP e a Independência imediata, total e completa de Angola. O general promete satisfazer as reivindicações.
Nesse mesmo dia, já no período da tarde, todo o trajecto do funeral de cinco vítimas do Cazenga, com  3.000 pessoas, a pé e em recolhimento, entre a Liga Nacional Africana e o Cemitério de Sant’Ana, teve nas alas os militares que de manhã se haviam manifestado.
A partir daí, o povo angolano passou a contar com o seu braço armado. Antes da partida do séquito da Liga, um colono ainda puxou de uma pistola. Os populares dominaram-no facilmente.
Na “frente diplomática”, ainda nesse dia, o advogado Diógenes Boavida - que viria a ser ministro da Justiça e Deputado na Angola independente -, chefiava uma delegação de individualidades angolanas que se deslocara a Lisboa para dar conta dos graves incidentes e pedir providências. A comitiva foi recebida pelo general Costa Gomes, membro da Junta de Salvação Nacional (JSN) e chefe do EMG das FAP. O encontro foi “muito útil”.

Independência e paz

A segunda onda de violência antes da Independência ocorre em Novembro de 74.
Nessa ocasião, já todos os três movimentos de libertação (FNLA, MPLA e UNITA) tinham concluído o cessar-fogo com Portugal. A FNLA abriu a sua sede em Luanda a 30 de Outubro, o MPLA a 8 de Novembro e a UNITA a 10 de Novembro.
Num contexto em que, em Angola, os militares portugueses davam sinais de inoperacionalidade, o MFA em Portugal divide-se. Spínola apadrinha a solução neocolonial. Os colonos alimentam sonhos à Rodésia de Ian Smith. Mas o almirante Rosa Coutinho, presidente da Junta Governativa em Angola, mantém-se fiél ao Programa do MFA. No campo angolano, Agostinho Neto pede aos portugueses para ficarem, mas muitos cedem à intimidação e abandonam Angola, debilitando a economia.
A violência, também aproveitada por delinquentes soltos com os presos políticos,  dá lugar a um conflito generalizado, com a maior potência ocidental, os EUA, a procurar saber “qual dos grupos rivais é mais compatível com o interesse nacional americano”.
Após ser assinado o Acordo de Alvor, a 15 de Janeiro de 1975, entre Portugal e os três movimentos, ficou definido o Governo de Transição para a Independência, marcada para 11 de Novembro.
A 10 meses do fim da era colonial, a simpatia pelo MPLA era inegável. O mesmo acontecia em Moçambique com a FRELIMO, na Guiné e Cabo Verde com o PAIGC e em S. Tomé e Príncipe com o MLSTP. Os povos africanos sabiam quem se batera pela sua liberdade. Isso não agradou aos saudosistas, nem aos regimes ditatoriais e separatistas vigentes no Zaire, na África do Sul e na Rodésia.
É então jogada a cartada da invasão territorial. Com a “Operation Savanah”, as SADF penetram  pelo Sul de Angola. Pelo Norte, entram as “Forces Armées Zairoises” (FAZ), reforçadas com mercenários. Fiando-se nestes apoios, as direcções da FNLA e da UNITA, instigadas por Mobutu, Kissinger e Spínola decidem destruir o MPLA em Luanda. Atacam as sedes do Movimento nos bairros. Mas estas já fortificadas.
A 23 de Março de 1975, por iniciativa da FNLA, dá-se a 1ª Batalha de Luanda. Nessa altura, Savimbi já tinha convencido Pretória a iniciar o apoio militar à UNITA. O resultado da batalha seguinte foi a expulsão dos militares da UNITA e FNLA de Luanda e o início de uma guerra que só acabou em 2002.

 

  No embrião das Forças Armadas Angolanas, um dos mais poderosos Exércitos de África

 

Os militares angolanos das FAP que impediram o massacre de populações e a perpetuação do colonialismo, reforçaram as FAPLA. Juntamente com operários, estudantes, enfermeiros, funcionários e intelectuais, e liderados por bons políticos, alguns dos quais garantiram a ligação ao MFA, deram impulso à luta pela liberdade. Antes deles, muitos outros tinham desertado da tropa colonial. Com eles, as FAPLA transformaram-se num Exército Nacional poderoso e, com a ajuda de Cuba e de países africanos, derrotaram os invasores.

Os nomes dos heróis

Foram muitos. Não conseguimos recolher os nomes de todos. Entre os que participaram no 15 de Julho de 1974, estiveram: Américo Júlio de Carvalho, Bravo, Jorge Pessoa, Gomes da Silva, Fernando Vasques Araújo, Manuel da Costa Aragão, José Maria Anapaz, Generoso de Almeida, Mário Bento Catela, Fernando da Piedade Dias dos Santos (Nandó), José Vieira Dias Van-Dúnem, Filomeno Ceita, Dinho Martins, Nito Teixeira, Zé Maria, Mário Sila da Fonseca de Oliveira, Marcelino Dias, Gastão, Luís Faceira, irmãos Bragança, Vidigal, Joaquim António Lopes (Farrusco), Joaquim Anastácio Torres, Cruz Júnior, Félix Matias Neto (Felito), Vicente Matias Félix, António Andrade, Samuel Fernandes de Carvalho, Francisco José, César Barbosa da Silva, Horácio Cruz, Victor Salvaterra, Betinho, Zé Mário, Eduardo Minvu, António Terêncio Vila Santa, Makubanza, Barba de Aço, Tony Pincha, Ilídio Gomes, Júlio José António.

 

  Diálogo e entendimento entre os angolanos tornaram possível a paz e a reconciliação

 

Os incidentes violentos que se verificaram em Luanda após o 25 de Abril de 1974, por inoperacionalidade das autoridades portuguesas e extremismos, atravessaram o período de Independência e degeneraram num conflito  que só terminou em 2002.
Pelo meio ficam muitas lições. A primeira é de que o diálogo e o entendimento devem prevalecer sobre a ruptura e o conflito como solução dos problemas. A opção pela via das armas para resolver diferenças e contradições levou à perda de milhares de vidas humanas e à destruição de infra-estruturas económicas sempre necessárias à vida das populações.
Após as batalhas de Luanda de 1974-1975, o Presidente Neto teve de pedir a ajuda de Cuba para travar a invasão da África do Sul.
Com a morte de Neto, o Presidente José Eduardo dos Santos  liderou o combate contra as tropas do apartheid, que foram derrotadas definitivamente no Triângulo do Tumpo, a 23 de Março de 1988, e em Tchipa e Calueque, a 27 de Junho desse ano. O Acordo de Nova Iorque, assinado a 22 de Dezembro de 1988, deu a Independência à Namíbia, mas  Angola só voltou a sentir o sabor da paz e da reconciliação a 4 de Abril de 2002.

Diversidade e memória

Com a realização, este ano, das quartas eleições gerais, os angolanos elegem os governantes num ambiente de diversidade de opiniões e de inclusão social, mas também de memória. Nunca é demais lembrar quem sempre esteve, verdadeiramente, ao lado do povo.

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