Opinião

A longa história das dissidências

O A recente deserção de Fernando Heitor das hostes da UNITA conduz-nos à longa história das dissidências, das deserções, das defecções, das desilusões num partido também ele criado por um político transfuga da UPA de Holden Roberto, Jonas Savimbi.

01/04/2017  Última atualização 06H40

O primeiro grande abalo no seio da UNITA de que nos recordámos reporta-nos aos anos 1988-89. As mortes misteriosas do responsável pelas relações exteriores Jorge Sangumba e António Vakulukuta, um filho do Cunene, andavam no ar, a perseguição impiedosa à família Chingunji era um tema apenas balbuciado.
Um grupo de estudantes da UNITA no exterior visita a Jamba e sai de lá “horrorizado” com o que viu, nomeadamente a violação dos direitos humanos contra alguns dirigentes e suas famílias.
Almerindo Candjungu “Lindo”, André Yamba Yamba, Dias Kanombo e Alipio Paulo Parreirão Gomes, Sousa Jamba e Dinho Jonatão Chingunji fazem parte do grupo, a que mais tarde se juntou George Chikoti e Manuel Adão Domingos.
A UNITA sofreu o seu primeiro grande abalo, os média de todo o mundo começaram a falar da violação dos direitos humanos na Jamba e Jonas Savimbi enviou Abel Chivukuvuku à Europa para acalmar os ânimos, mas o processo estava desencadeado.
Num repente tudo vem a público. Em 1979, foi assassinado o patriarca dos Chingunji, Estêvão Jonatão Chingunji, a esposa Violeta Jamba, os seus dois filhos Dino Chingunji (também foi morta Aida Henda - sua esposa, a irmã desta, Vande, e o seu filho mais novo Eduardinho) e Alice Chingunji (Lulu). Em 1991, o mundo  soube pela boca de dois dirigentes fundadores fugidos da Jamba, Nzau Puna e Tony da Costa Fernandes, o inimaginável: tinham sido mortos Tito Chingunji, sua esposa Raquel (Romy) e os três filhos, dois dos quais eram gémeos. A par disso, Wilson Santos, Helena Chingunji e os seus filhos (Koly, Rady e Paizinho) tiveram a mesma sorte.
A contestação a Jonas Savimbi não parava e os dissidentes, cada vez em maior número, concertavam-se para lutar contra o presidente da organização.
Fórum Democrático Angolano (FDA), Tendência de Reflexão Democrática (TDR), UNITA Renovada, eram siglas que reflectiam o desânimo e a desilusão de muitos militantes que não se reviam na UNITA de Savimbi. Georges Chicoti liderava o FDA, o seu adjunto era Assis Malaquias e Dinho Chingunji era secretário para os Direitos Humanos. O líder da TRD era Tony Fernandes coadjuvado por Paulo Tjipilica e Zau Puna. Depois das eleições de 1992 o TRD foi legalizado e ficou como líder Raul Danda (hoje vice de Samakuva) e o general Eugénio Manuvakola igualmente andava por estas paragens a contestar Jonas Savimbi mas a sua esposa Bela Malaquias permanecia na Jamba ou no Bailundo como refém.

Savimbi regressa à guerra

Jonas Savimbi não aceita os resultados das primeiras eleições multipartidárias, que remeteram para uma segunda volta das presidenciais, e como medida adequada regressou à guerra de terror e extermínio, o que provoca novas fissuras na UNITA, com muitos dirigentes a defenderem a via pacífica e democrática do processo político, em sintonia com a liderança de José Eduardo dos Santos.
O Presidente da República, José Eduardo dos Santos, consciente de que só um quadro de paz efectiva permitia salvar a nação, promove uma diplomacia virada para a reconciliação nacional e estende mais uma vez a mão a Jonas Savimbi.
Em Lusaka, contra a vontade de Savimbi, são assinados acordos que incluem um Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (GURN) com todos os partidos angolanos com assento parlamentar.
Jonas Savimbi demorou três anos a digerir o acordo de paz  e em Janeiro de 1997  não deixa os representantes da UNITA embarcarem para Luanda para a tomada de posse.
A África do Sul intervém para pressionar Jonas Savimbi, o Vice-Presidente Thabo Mbeki vem a Luanda e finalmente a 11 de Abril o Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (GURN) toma posse perante o Secretário-Geral da ONU Kofi Annan.
O GURN partiu a UNITA ao meio. Uma parte aceitou a via democrática e integrou-se na vida política civil, a outra parte continuou a guerra de terror contra a população.

Desilusão

Já havia paz e a UNITA continuava  dividida, a ala interna, educada na guerra, estava cansada e queria a paz imediata. A ala externa, habituada ao conforto das capitais ocidentais, entrou por atitudes radicais contra a paz, os generais venceram e a guerra acabou. Mas as feridas permaneceram.
Jorge Valentim, um dos pais-fundadores da UNITA, rompia com Isaías Samakuva e uma “ala” Lukamba Gato-Jorge Valentim parecia pretender tomar o poder.
Dois anos depois da paz de Abril de 2002, Dinho Chingunji, o único sobrevivente do extermínio da sua família a mando de Jonas Savimbi, toma posição pública: “Anuncio a minha demarcação definitiva da UNITA.”
Quatro anos depois da paz efectiva a UNITA continua com sérios problemas internos. Isaías Samakuva tem dificuldades acrescidas com Lukamba Gato, Kamalata Numa, com os mais-velhos, com os mais-novos, a disputa da liderança parece um vulcão em actividade.
Samakuva quer tirar do Parlamento um grupo de dezasseis deputados que pareciam não seguir os seus ditames e substitui-los por outros da sua confiança. Os deputados recusam-se a sair e abre-se nova cisão no seio da UNITA. O Parlamento toma posição e recusa a substituição. Samakuva ameaça: a UNITA pode abandonar o Parlamento.   

Mais um Grupo de Reflexão

A crise continua instalada com força no seio do maior partido da oposição  no segundo trimestre de 2011. Um Grupo de Reflexão forma-se para contestar a continuação de Isaías Samakuva à frente do partido. O Grupo  acusa o presidente e o secretário-geral do partido de falta de argumentos políticos credíveis e de serem incapazes  de organizar o XI Congresso.
A confusão instala-se, fala-se dos históricos Abel Chivukuvuku, Lukamba Gato, Samuel Chiwale, com Kamalata Numa a demarcar-se aparentemente do grupo para apoiar Samakuva. O grupo reúne-se regularmente, à revelia da direcção da UNITA e acusa Isaías Samakuva de “continuar a recusar-se a receber as preocupações de um número considerável de dirigentes, quadros e militantes da UNITA”. A não realização do XI Congresso do partido torna, diz o Grupo de Reflexão, “ilegítimos todos os órgãos saídos do X Congresso do partido”. 
A situação   tornou-se tão grave que levou à constituição do Grupo dos Mais Velhos - veteranos da luta de libertação e antigos secretários-gerais  do partido -   como mediador e decide “auscultar Isaías Samakuva e o Grupo de Reflexão”. O porta-voz do Grupo dos Mais Velhos, Carlos Candanda, disse que “quando os estatutos não são respeitados, há um senão negativo”.
Um partido dividido com uma liderança fragilizada, eis a UNITA  em 2011.  Isaías Samakuva  promove um processo disciplinar contra o Grupo de Reflexão  e contra Marques Ntiama e Joaquim Icuma Muafumba. Um comunicado do Comité Permanente da UNITA condena as “tentativas de implosão da direcção do partido”.
Esse grupo, que integrava ou contava com o apoio de históricos como Samuel Chiwale, Abel Chivukuvuku e Paulo Lukamba Gato, foi crítico do presidente do partido Isaías Samakuva, por este não ter convocado um congresso antes do termo do seu mandato na chefia da UNITA. Abel Chivukuvuku disse  à Voz da América que “só a pressão dos mais velhos e dos jovens do Grupo de Reflexão levou Samakuva, a anunciar a sua proposta para a realização de um congresso”.
A comissão nacional de jurisdição da UNITA reuniu e suspendeu, por um período de 45 dias, os integrantes do grupo de reflexão do partido, onde se incluem Abel Chivukuvuku e Lukamba Gato. A suspensão é  extensiva ao deputado José Samuel Chiwale  e  a  Rafael Aguar, Américo Colónia Chivukuvuku, Xavier Jaime, Ernesto Tadeu, Joaquim Kuamatumba e Evaristo Tchicolomuenho.
 
Katchiungo à espreita

Em Dezembro de 2011 a UNITA realiza o seu XI Congresso e Estêvão José Pedro Katchiungo, de 47 anos, candidata-se contra Isaías Samakuva. Derrotado,  reafirma a sua visão crítica: “O problema do partido está na cabeça, a UNITA não está a corresponder às expectativas, a UNITA parece um jogador que sabe fazer todos os dribles , mas diante da baliza escancarada atira a bola ao lado, isto não pode continuar assim.”

Sousa Jamba: Savimbi
nunca me perdoou

Alguns meses depois do XI Congresso, já em 2012, o intelectual histórico da UNITA Sousa Jamba fala longamente da organização e também sobre Savimbi. Mais uma vez Isaías Samakuva perdeu o sono. “A UNITA tem cisões.  As saídas vêm de há algum tempo, NZau Puna, Tony Fernandes, depois veio a UNITA Renovada que desapareceu, mas saíram figuras como Dinho Chingunji, Jorge Valentim … agora saiu Abel Chivukuvuku e com ele vários quadros. Isto é um processo de descasque, representam forças, ideias, pessoas.”
E Sousa Jamba acrescenta: “A UNITA não é um projecto de Samakuva e se esta for a sua ideia não irá a lado algum, porque o próprio Dr. Savimbi, que a um certo momento, suspeito, via aquilo como um projecto pessoal, não conseguiu. Foi por isso que surgiram essas divisões. Eu pertenço ao primeiro grupo de dissidentes da UNITA. Eu, o Dinho, o Candjungo, o Yamba Yamba, o Chicoti, nos anos 1980, não estávamos de acordo com certas práticas dentro da UNITA e manifestámo-nos.”
Mas Sousa Jamba retractou-se e houve “uma certa reconciliaçãozinha”. Mas eu estava muito consciente de que o Dr. Savimbi não perdoa e nunca iria me perdoar.”

Mfuka Muzemba

Em 2015 chegou a vez da organização juvenil da UNITA tremer. Mfuka Muzemba, líder da JURA, é acusado pela Direcção do partido de corrupção e alvo de um processo que levou à sua demissão. 
No ano seguinte finalmente a UNITA realiza o seu XII Congresso Ordinário e, quando se esperava que as águas acalmassem, os militantes olham, estupefactos, para a nomeação de Raul Danda para vice-presidente do partido. Nova ferida é aberta, a contestação é silenciosa como uma aranha que tece a sua teia.
No 51.º aniversário da fundação da UNITA, Isaías Samakuva, no município de Viana, fez um discurso  ainda sem nomes para apresentar à massa militante como candidatos a deputados e para cabeça-de-lista. Alguma peça está emperrada na máquina do partido? A ascensão de Rafael Savimbi, filho de Jonas Savimbi, é para valer? E se valer é consensual? Os “pesos-pesados “ vão aceitar?
Dinho Chingunji disse, em 2015, que o presidente da UNITA “controla a máquina toda da UNITA”. Controla?