Dossier

Uma doença esquecida

Uma simples comichão, após um banho no rio, chega para se considerar portador de hematúria. Os sintomas da doença, vulgarmente conhecida por "doença dos rios", são sangue na urina e é causada por um agente patológico chamado "schistosomíase". O sangue pode ser visível ou não, e é um dos motivos de consultas frequentes em serviços de urologia.

26/09/2011  Última atualização 08H58
DR © Fotografia por: Uma ida ao rio seguida de uma comichão pode revelar uma doença que é ignorada em Kaxicane

Uma simples comichão, após um banho no rio, chega para se considerar portador de hematúria. Os sintomas da doença, vulgarmente conhecida por "doença dos rios", são sangue na urina e é causada por um agente patológico chamado "schistosomíase". O sangue pode ser visível ou não, e é um dos motivos de consultas frequentes em serviços de urologia.
Kaxicane, 14 de Setembro. Passam 30 minutos das 10 horas quando um grupo de médicos do Comité de Especialidade do MPLA chega à localidade para prestar assistência médico-medicamentosa a alguns doentes. Os especialistas em urologia, depois de "entrevistas médicas", concluem que a zona é endémica em hematúria. Em seis horas de trabalho, dos 491 pacientes, 42 são diagnosticados com os sintomas. Sangue na urina.
O urologista Simão Bom-Ano fica assustado com o número e compara-os aos que são diagnosticados por semana no Américo Boavida. "O caso é crítico", diz o médico.
Numa média de 15 pessoas em consulta de urologia no Américo Boavida, refere, apenas dois chegam a apresentar essa anomalia. Em Kaxicane, município de Icolo e Bengo, o número triplica.
Os 42 indivíduos diagnosticados com hematúria são todos crianças, com idade entre os quatro e os 12 anos. O urologista Bom-Ano considera a localidade propícia à propagação do parasita, por se localizar à beira do rio, e por não existir água canalizada. A higiene pessoal, tanto de adultos como crianças, é feita no rio. "O parasita causador do hematúria vive nas águas paradas dos rios, lagoas ou até na água das chuvas. As pessoas em contacto com esta água acabam por ser contaminadas e num período não determinado fazem urina com sangue", explica o médico.
As mulheres, por estarem em contacto permanente com a água, devido às suas actividades diárias – precisa Bom-Ano – acabam também por ser portadoras do "schistosomíase". "O parasita da hematúria vive na zona do rio e ataca o ser humano quando nasce o sol. Quando o sol é brando o 'schistosoma' não ataca o ser humano. Daí os mais velhos terem o hábito de tomar banho pelas cinco e seis horas da manhã, para evitar que esse agente os ataque", realça.

Doença desconhecida

Normal ou não, a hematúria existe e pode até causar mortes, caso não seja detectada precocemente. Ainda assim, urinar sangue parece normal para as famílias de Kaxicane. Tão normal que nem mesmo a criança que faz urina com sangue é levada ao médico. É considerado natural.
Marcelino Chivango, sete anos, urina com sangue desde os três anos. Franzino e meio assustado, pelo aglomerado de pessoas, foi levado a uma das mesas do consultório móvel criado pelo Comité de Especialidade dos Médicos do MPLA.
Segundo a irmã, Vivi, Marcelino tem tido febres altas todas as noites. À reportagem do Jornal de Angola, Vivi diz: "nunca procurámos um médico!". De estatura média, Vivi, descontraída e sem saber do perigo da doença, acrescenta, à vontade: "em casa, Marcelino não é o único que faz chichi com sangue". A senhora Eva Manuel da Cunha tem dois filhos a urinar sangue. Um com cinco e o outro com três anos. Apesar de isso nunca ter acontecido consigo, a jovem, de 21 anos, desconhece as causas da doença. Moradora nos arredores de Kaxicane diz que muitas crianças da região fazem urina com sangue.Os dois filhos – pontualiza – começaram a urinar com sangue aos dois anos de idade e até ao passado dia 15 não tinha recorrido ao hospital. "Sempre pensei que fosse normal, porque mesmo quando vivia com os meus pais, muitas crianças daqui faziam chichi com sangue", revela.
Esperança João Luís, 28 anos, é mãe de cinco filhos. Residentes em Cubaza, além do marido, duas das suas crianças também urinam sangue. Para além da micção, a menina de cinco anos tem muita comichão no sexo. Mesmo diante de todas essas anomalias, Esperança nunca levou as crianças ao médico. "É normal, porque aqui não são só elas!", atira.
O director do Hospital de Catete, António Manuel da Costa, informa-nos que algumas das pessoas diagnosticadas com hematúria recorrem ao serviço de saúde já em fase terminal da doença. "São pacientes com cancro, muitos dos quais não conseguimos tratar por falta de um bloco operatório, o que obriga à transferência para Luanda a fim de receberem tratamento", reforça.
O médico refere que o hospital tem medicamentos para essa doença. "Infelizmente, os doentes com essa patologia não comparecem às consultas", lamenta.
Questionado sobre a hipótese de haver desconhecimento da doença, António Manuel da Costa considera isso possível, uma vez que muitos têm o problema mas não recorrem ao hospital. "Há uma necessidade de ser fazer um trabalho pedagógico e de sensibilização sobre essa doença, porque é uma doença grave – e falo com uma certa tristeza", reconhece.
O Hospital de Catete, em colaboração com a Repartição de Saúde, decidiu realizar nas próximas semanas um rastreio para diagnosticar casos de hematúria na região. "Será um trabalho conjunto, porque vimos notando o aumento de casos de pessoas com micção com sangue", afirma Manuel da Costa.

Sinais dos sintomas

O grau da hematúria, de acordo com o director hospitalar, não se correlaciona com a gravidade da doença que lhe dá origem. Mas deve ser considerado sintoma de doença grave, até prova em contrário. Os sintomas acompanhantes e a história relatada pelo doente podem fazer suspeitar de uma ou de outra causa. Se a hematúria não for evidente, deve efectuar-se um teste comprovativo da presença de sangue com o microscópio. "Deve ter-se em atenção a proveniência do sangue e confirmar que surge juntamente com a urina. É importante distinguir a hematúria de outras fontes de sangramento próximas – da pele, vagina, recto e ânus."
Simão Bom-Ano sublinha que o efeito do vírus não é imediato e pode levar anos. "O vírus pode-se apanhar durante a infância e se manifestar na vida adulta. O vírus aloja-se a nível da bexiga e leva muito tempo para se manifestar", elucida o médico, para quem é importante, sempre que alguém sentir alguma alteração na urina, ou ainda dores de bexiga ou peso de baixo-ventre, procurar pelo médico.
"Durante a consulta, o médico deve avaliar o tipo de sangramento, se é no início ou no final da micção. A cor da urina é importante, se é vermelho-vivo o sangramento é baixo, se for castanho o sangramento é alto. A presença de coágulos indica uma lesão extra-glomerular. Também deve ser avaliada a periodicidade, se for próximo da menstruação pode indicar endometriose", salienta o médico.
Quando a hematúria é associada a exercícios, explica o médico, geralmente ocorre após uma actividade física mais intensa e desaparece em quarenta e oito horas.

Como prevenir e tratar

A prevenção da hematúria deve ser dirigida ao combate das causas que lhe dão origem. De um modo geral, recomenda-se a ingestão de uma quantidade diária suficiente de água, acima dos 1,5 a 2 litros por dia, dieta saudável, boa higiene genital, não fumar e evitar o contacto directo com agentes químicos, como tintas e corantes.
"A hematúria tem cura, mas para que os medicamentos tenham efeito é importante que seja precocemente detectada, e não deixar que evolua para outras anomalias, como é o caso do cancro", esclarece o director do Hospital de Catete.
Em Angola, as províncias de Luanda, Bengo, Kwanza-Norte e Malange são endémicas e motivo de transferência de casos avançados para os hospitais de Luanda.
Voltamos a falar com o urologista do Comité de Especialidade do MPLA. Simão Bom-Ano considera a presença de sangue na urina um sinal de alarme. Nesse caso, "impõe-se uma consulta médica urgente. Esta urgência é tanto maior quanto mais significativo for o grau de hematúria ou a presença de coágulos. Os doentes com hematúria de causa não esclarecida devem manter consultas regulares com os seus médicos ou recorrer ao urologista, dado o risco futuro de uma doença clinicamente significativa".

Dados mundiais

Segundo dados da OMS, as causas de hematúria são mais de 80. Globalmente, 20 por cento dos doentes com hematúria têm um cancro e o mais frequente é o cancro da bexiga, 25 por cento têm uma infecção urinária e 20 por cento têm cálculo urinário.
A idade e sexo são indicadores importantes da causa mais provável do sangramento na urina. Numa mulher jovem, suspeita-se principalmente de uma infecção da bexiga. Os homens com mais de 60 anos têm maior probabilidade de ter hiperplasia benigna da próstata ou um cancro da bexiga. Nas crianças, as causas mais comuns são a infecção urinária, glomerulonefrite aguda e tumor do rim.
No mundo há 200 milhões de pessoas infectadas por "schistosoma", o que causa 200 mil mortes por ano.

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