Política

Defendida a revisão do quadro criminal da violência doméstica

Yara Simão

Jornalista

A presidente da Assembleia Nacional, Carolina Cerqueira, defendeu, esta segunda-feira, em Luanda, a necessidade de revisão do quadro criminal e verificar se o crime de violência doméstica existe, de facto, como autónomo, tipo de ilícito, uma vez que o novo Código Penal não lhe faz referência alguma e a Lei Contra a Violência Doméstica não prevê de modo suficientemente preciso.

28/03/2023  Última atualização 06H59
Presidente da Assembleia Nacional aponta desafios para o combate à violência do género © Fotografia por: Maria Augusta | Edições Novembro

Carolina Cerqueira, que discursou na abertura da conferência sobre "Violência contra a Mulher e Direitos Humanos, o Papel da Assembleia Nacional”, disse que é necessário olhar mais além, para as acções de au-mento da eficácia de actuação das autoridades, tais como o aumento de prisões preventivas e de prisões efectivas para os agressores de violência doméstica, bem como equacionar-se a criação de uma equipa multidisciplinar que tenha como responsabilidade de melhorar a qualidade e a comunicação de informação entre as várias entidades públicas.

Acrescentou que urge a necessidade dos organismos definirem medidas para uma resposta imediata, após a apresentação de queixa ou de denúncia, criar guias de actuação funcional dos agentes, guias de prevenção integrada e destinada a crianças e jovens, bem como melhorar a formação dos profissionais de vários sectores, para que se consiga dar uma resposta mais célere e eficaz às vítimas, evitando-se a designada "vitimização secundária” ou o desincentivo nas esquadras às mulheres que tenham coragem de apresentar queixa, nem a pouca vergonha de verem mulheres a queixarem-se de terem sido vítimas de crimes.

Carolina Cerqueira disse que o país tem enormes desafios nessa matéria e exortou os presentes a debaterem sobre a regulação paternal com os processos criminais, porque enquanto os processos de violência doméstica correm os seus trâmites nas salas dos crimes, os de regulação da autoridade paternal correm nas salas da família e dos menores, gerando situações absurdas de estas poderem atribuir regulação das responsabilidades parentais a agressores.

"É verdade que se pode ser um péssimo marido, mas ser-se um bom pai, mas ninguém pode ser um bom pai se for um covarde agressor!”, vincou.

Apelou para a importância e prioridade de reforço dos meios de apoio à vida e protecção à vítima, em particular nas zonas da periferia, nas zonas isoladas e nas zonas rurais, reforçando a parceria entre municípios, OING e demais agentes.

"No nosso país, apenas existem 14 salas de aconselhamento familiar e cerca de 9 casas de abrigo para vítimas, isso é muito pouco, pois, independentemente das dificuldades financeiras, cada vez que o sistema falha, pode morrer mais uma mulher. E nós não podemos aceitar sermos apenas mais uma estatística. Não podemos aceitar termos em pleno século XIX mulheres que morrem em casa, pelas mãos dos seus parceiros, em quem um dia confiaram numa comunhão e aceitaram traçar uma vida em comum de respeito, companheirismo e afectos”, alertou a presidente da Assembleia Nacional.

"Actualmente, cinco é o número de mulheres mortas pelo parceiro ou familiares a cada hora, em todo o mundo. 11 por cento dos homicídios masculinos ocorrem na esfera privada. Nas mulheres são 56 por cento, cinco vezes mais do que os homens, tornando o lar o lugar mais perigoso para as mulheres e meninas. Infelizmente, em termos percentuais, é no continente africano que se regista o maior nível de casos de violência”, esclareceu a líder da Casa das Leis.

Carolina Cerqueira afirmou que a violência contra a mulher constitui a principal forma de violação dos seus direitos humanos, atingindo-a no âmago da sua dignidade enquanto ser humano, no seu direito à vida, à integridade física, psicológica, intelectual, sexual e patrimonial, com grande repercussão na estabilidade das famílias, o núcleo sustentador da sociedade, devido às significativas alterações que produz no estado físico e psicossocial da mulher vitimizada.

A violência contra a mulher, continuou, é também um dos principais sintomas da desigualdade social do género, sendo usada como instrumento de controlo e de subalternização, privando-a da possibilidade de alcançar a autonomia que lhe permite crescer, empoderar- se e galgar patamares na vida pública do meio em que está inserida, em igualdade de oportunidades com os homens, apesar de serem as mulheres, em regra, a maioria da população a nível mundial.


 Incentivo ao Executivo

A presidente da Assembleia Nacional realçou os avanços das políticas públicas de igualdade à defesa intransigente de tudo o que tem sido logros e conquistas em termos de direitos das raparigas e das mulheres nos vários domínios, e de intransigente exigência de erradicação das ainda persistentes formas de desigualdade e discriminação.

Carolina Cerqueira incentiva o Executivo à institucionalização de mecanismos de defesa e fiscalização dos direitos humanos, através dos comités locais de direitos humanos, para a implementação do sistema nacional de denúncia de violação dos direitos humanos e do sistema de indicadores de direitos humanos em Angola.

Dessa forma, disse, poderemos todos fazer uma avaliação mais objectiva sobre os números, incidência, causas e medidas de combate à violência contra as mulheres, em particular, e contra todos os direitos humanos, em geral.

A líder do Parlamento angolano realçou, igualmente, o importante papel desempenhado pela sociedade civil na promoção dos direitos humanos, do diálogo institucional e a colaboração entre as ONG’s e as instituições do Estado, devendo constituir uma constante na sua interacção, "uma vez que as organizações da sociedade civil são os olhos e os ouvidos do clamor da sociedade, que permitem ao Governo encontrar as soluções globais mais adequadas para os problemas locais por elas detectados”.

"É incontornável, qual princípio basilar das sociedades modernas, a igualdade entre homens e mulheres, de iure e de facto, de participação na economia, na política e nos diversos sectores da vida do país, em paridade de circunstâncias, onde se possam sentir amplamente realizados como seres humanos, sem discriminação de nenhuma ordem, ou barreiras impostas pela violência”, sublinhou Carolina Cerqueira.

Carolina Cerqueira apelou a sociedade à cultura da denúncia e da promoção do acompanhamento integrado das mulheres vítimas de violência. "Digo, triste, que, entre o início e o fim deste meu discurso, mais duas a três mulheres foram mortas pelos parceiros nalgum canto do mundo. É, pois, tempo de dizer que em assunto de marido e mulher, devemos sim meter a colher. Sim, devemos meter a colher para não sermos cúmplices de um anunciado pacto de silêncio, para mais uma anunciada morte, morte da nossa filha, morte da nossa parente, morte da nossa amiga, da nossa colega, da nossa vizinha, de uma de nós”.


Dados da Organização Mundial da Saúde

Carolina Cerqueira fez saber que, segundo a Organização Mundial da Saúde, a violência contra a mulher é considerada um problema de saúde pública, e, a título de exemplo, disse que 15 por cento das mulheres japonesas e 71 por cento de mulheres etíopes sofreram violência física ou sexual por parte dos seus parceiros.

Acrescentou que nas zonas rurais, 17 por cento das raparigas na Tanzânia e 24 por cento do Peru e 30 por cento em Bangladesh, tiveram a primeira experiência sexual de maneira forçada, enquanto que o Unicef diz que em Angola três em cada dez mulheres foram, em algum momento, vítimas de violência física ou sexual.

São apontados como factores de risco da violência contra a mulher a sua baixa escolaridade, e embora sejam 52 por cento da população angolana, 47 por cento das mulheres não teve acesso à escola ou tem baixo nível de instrução.

"A exposição à violência na infância, a atitude de complacência para com a violência, a falta de cultura de denúncia e a falta de preparo dos órgãos de Polícia e Judiciais para dar tratamento às denúncias são outros dos factores de risco de violência doméstica entre nós”, disse.

Carolina Cerqueira explicou que no mundo actual uma nova forma de violência tem vindo a afectar duramente a vida das mulheres e das meninas, devido a fenómenos que estão ligados à crise climática e quando ocorrem catástrofes. Como tem vindo a acontecer de forma crescente, a ciência mostra que as mulheres e as crianças têm até 14 vezes mais probabilidades de morrer do que os homens.

"Na nossa realidade nacional, os desastres ambientais tornaram-se cada vez mais complexos e o seu impacto é de-

vastador, sobretudo para os mais vulneráveis, que são as crianças e as mulheres. Angola é um país propenso a desastres naturais, tais como secas, desmoronamento de terras, cheias ou inundações, provocando, a migração de comunidades inteiras, e isso levou a um aumento do risco de violência contra as mulheres e crianças, tais como os abusos sexuais, o sexo a troco de dinheiro ou comida e a exploração laboral e sexual, sendo hoje uma realidade o aumento da prostituição e trabalho infantil de meninas que deixam as suas terras e origem e deambulam nas grandes cidades.”, informou a líder do Parlamento.

 

Fenómeno não teve redução

Carolina Cerqueira disse que é preciso promover o diálogo franco, aberto e inclusivo, entre todos os actores sociais, sobre a violência contra a mulher, vantagens da promoção da participação da mulher na tomada de decisões, a vida do meio em que está inserida, os mecanismos de inibição dos actos de violência e, neste quesito, a 10ª Comissão da Assembleia Nacional dos Direitos Humanos, Petições, Reclamações e Sugestões dos Cidadãos desempenha o papel estratégico de plataforma de diálogo e interacção com os cidadãos e demais entidades da sociedade civil.

Fez saber que é dever do Estado a demanda da sociedade abordar, de forma transversal, a violência contra a mulher, diagnosticar as suas causas e consequências para o desenvolvimento do país, com o objectivo de estabelecer mecanismos eficazes de enfrentamento e combate contra tão prejudicial fenómeno.

"É uma tarefa primordial uma vez que, apesar de todo o esforço de produção legislativa que tem sido feito pelos Estados para a protecção dos direitos humanos e a mitigação da violência contra a mulher, o fenómeno não conheceu redução, sendo necessária uma abordagem multidisciplinar e soluções integradas”, denunciou.

A presidente da Assembleia Nacional lembrou aos presentes que, em Angola, por iniciativa legislativa da Assembleia Nacional, foi aprovada a lei 25/11, sobre o regime jurídico de prevenção da violência doméstica, de protecção e assistência às vítimas. "O novo código penal agrava as penas dos crimes de violência doméstica, de modo a desestimular o seu cometimento. Porém, mais do que a vertente punitiva, o combate à violência contra as mulheres deve desconstruí-la na mente da vítima e do agressor por meio da educação”, considerou.

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