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De místico palco de futebol à… lavra e aterro sanitário

Na verdade, os camponeses, que hoje por hoje, alteraram o “objecto social” daquele recinto desportivo, nas encostas do Bairro Bom Pastor, município do Huambo, estão, decerto, isentos de qualquer responsabilidade, a julgar pelas palavras dos homens que, em tempos idos, espalharam talento futebolístico no relvado do Estádio das Cacilhas.

07/03/2021  Última atualização 10H05
Estádio das Cacilhas um verdadeiro campo de produção agrícola © Fotografia por: Francisco Lopes |Edições Novembro
Os laboriosos lavradores, aparentemente fiéis ao refrão da música de Dom Caetano, de que "o meu chão tem tudo / o meu chão dá tudo”, nada mais fizeram senão aproveitar a incompetência de quem, no arroto da grandeza e do modernismo, decidiu em 2011 deitar abaixo – sem previsão de reconstrução – todo um passado de brilhantismo e glória.  
 "Se o meu chão tem tudo / o meu chão dá tudo / o meu povo é capaz / porque ele é camponês /”, porque não aproveitar o recinto abandonado e em escombros do estádio e transformá-lo em lavoura? Até porque, em tempo de seca, a fome abunda? Ter-se-á, decerto, perguntado o "povo camponês”, que todos os dias busca neste mesmo chão o pouco do sustento que ainda produz.

Uma realidade, até certo ponto compreensível e legítima – quando o assunto é alimentação – no desabafo de Hugo Castel-branco, guarda-redes do Mambrôa do Huambo, na década de noventa, ao lado dos notáveis, na mesma posição, Carnaval, Augusto, Hossi e Geraldo.
"É desoladora e triste a realidade actual do Estádio das Cacilhas. Estão, lentamente, a ‘matar’ a história de um clube importante da província”, lamenta o antigo guarda-redes. Sem dar "espaçamento” para uma outra pergunta, o relato prossegue, melancólico:
"Esse estádio viu nascer e crescer tantas estrelas! A sua destruição é um duro golpe à alma de quem, como eu, fez-se homem e chefe de família a treinar e a jogar neste estádio. É mesmo triste. Os jogadores e o clube Mambrôa não mereciam essa desvalorização”, desabafa.

Hugo Castel-branco assegura que, ao longo da carreira futebolística, representou unicamente o Mambrôa do Huambo, pelo que diz ter vivido "momentos marcantes” nas Cacilhas, um estádio "cercado de eucaliptos, onde se respirava ar puro” mesmo em dias de algum sol. "Os jogos, naquele tempo, eram disputados ao fim-de-semana. Quando jogávamos em casa, o Estádio das Cacilhas ficava completamente cheio. Não havia lugar ‘nem para uma mosca’, como dizia um relator de futebol”.
O ex-atleta, que se estreou na categoria de sénior em 1987, num jogo diante do Inter de Luanda, actual Inter de Angola, no Estádio dos Coqueiros, em que os Planálticos venceram por 4-5, aponta que a decisão de derruir o estádio acelerou, também, a desestruturação do Clube Mambrôa do Huambo. "O clube só existe de nome!”, atira e sentencia: "é o fim da vida de um clube histórico de Angola”.

Cláudio Morais, ferrenho adepto do Mambrôa, do tempo em que tinha talentosos jogadores, como afirma, de "dimensão mundial”, como eram os casos de Carnaval, "Pequeno-e-Grande Maria”, os irmãos Arlindo e Manecas Leitão, Eduardo Machado, Lutucuta, Ralph, Julião, Chimalanga, Figueiredo, entre outros, é outra das vozes que se junta ao coro de indignação pelo derrube do estádio.
"Há dias em que, quando vou ao mercado das Cacilhas, dói-me a alma ver como ficou o estádio. Lembro, às vezes, das ‘porradas’ que apanhámos só para poder entrar e ver o nosso Mambrôa a evoluir em campo. Essa situação prova que, ainda, não valorizamos o nosso património histórico. O Estádio das Cacilhas é história. É património!”, desanca.

Avanços e recuos
Os eucaliptos frondosos continuam a conferir ao "inexistente” Estádio das Cacilhas e arredores uma paisagem deslumbrante. Os estudantes têm o local como ponto de referência para os tempos livres. "Sentávamos nas bancas do estádio para estudar, mas, com a destruição da estrutura, agora ficamos debaixo das árvores”, diz Américo Sabino, morador do Bom Pastor, entrada da Trapa, nas cercanias do estádio.
Em 2011, relembra, sem precisar o mês, assistiu ao momento em que a infra-estrutura começou a ser demolida. "Juro que estava feliz, com a esperança de que teríamos uma nova casa”, desvela o jovem Américo, com idade a rondar os 45 anos, porque "estiveram pessoas pesadas”, do governo, na consignação da obra. Mas, diz, até agora tudo continua na mesma. "Nada avançou. Há mais recuos, ao ponto de se tornar lavra e lugar de marginais”.
 
De cinco a dez mil espectadores
A intenção e sonho de Gonçalves Muandumba, à época ministro da Juventude e Desportos, era transformar as Cacilhas num estádio moderno. Na altura, segundo uma notícia da Angop, ficara acordado aumentar a capacidade de espectadores, passando de cinco para  dez mil aficcionados da bola.
A construção, que incluía no projecto uma pista de tartan para atletismo, tinha uma previsão de nove meses, num investimento de mais de 844 milhões de kwanzas, cerca de 85 milhões de dólares ao câmbio de 2011, co-financiado pelos ministérios da Construção e da Juventude e Desportos. A Omatapalo, a construtora encarregue das obras, tirou, em 2013, os seus meios de trabalho e o pessoal. Estavam, assim, as portas escancaradas para que os populares tornassem o Estádio das Cacilhas de místico e autêntico recinto de futebol à lavra, aterro sanitário e abrigo de marginais.
Quem conhece a história do Estádio das Cacilhas chora!   

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