Opinião

De escrava a convidada na Cidade Alta

Filipe Zau

Jornalista

O percurso de sucesso de D. Ana Francisca Ferreira Ubertali difere, em alguns aspectos, do de D. Ana Joaquina dos Santos Silva. Inicialmente escrava, nascida no interior de Angola e posteriormente traficante de escravos, a história de vida de Ana Ubertali foi descrita pelo investigador do Centro de História de Além-Mar, da Universidade Nova de Lisboa, Arlindo Manuel Caldeira, em "Escravos e Traficantes no Império Português".

24/02/2021  Última atualização 07H36
 Este historiador cita George Tams, em "Visita às possessões portuguezas na costa Ocidental d’África", sendo o mesmo apresentado como "um alemão licenciado em Medicina, curioso de mundos exóticos e homem dado às letras com preocupações abolicionistas.”
George Tams esteve em Angola em 1841-1842, integrado em uma grande expedição organizada por José Ribeiro dos Santos, negociante português estabelecido em Hamburgo, após o fim oficial do tráfico de escravos, em 1836, por decreto exarado por Sá da Bandeira. Depois de ter passado por Benguela e ter sido bem recebido em Luanda, George Tams participou de várias festas e surpreendendo-se com o carácter "matizado” dos participantes. Numa festa realizada no Palácio do Governador, sobressaia "entre uma multidão de brancos, pretos e mulatos, uma mulher ricamente adornada de ouro e jóias”, que, poucos anos antes, tinha sido escrava, mas conseguiu a sua liberdade e a sua riqueza, graças à sua beleza e astúcia.

D. Ana Francisca Ferreira Ubertali dirigia um poderoso negócio de escravatura e vivia com pompa e luxúria, em Luanda. Foi alforriada em condições desconhecidas, casou com o médico sardo Carlos Ubertali, que chegou a Luanda como degredado, ao abrigo de um acordo estabelecido, em 1819, entre D. João VI e o Reino das Duas Sicílias. "Em sociedades escravistas, a sexualidade das escravas era vista como uma extensão dos serviços que as mesmas deveriam prestar aos seus senhores”, veja-se a propósito Mariana P. Cândido, em "Concubinage and Slavery in Benguela, ca. 1750-1850".

Carlos Ubertali exercia, na capital da colónia, as funções de almoxarife dos armazéns nacionais, ao mesmo tempo que levada a cabo uma intensa actividade privada de comerciante de escravos, devido às relações que conseguiu estabelecer com os portos de Cuba e de Pernambuco. Após o seu falecimento, em 1839, para além do apelido, deixou de herança à sua esposa "a experiência, os contactos comerciais e um património apreciável, que incluía vários navios que andavam no tráfego transatlântico.” Contudo, o tráfico de mercadoria humana continuou a ser o principal ramo de negócios de D. Ana Francisca Ferreira Ubertali, que investiu também na produção agrícola, sendo proprietária de grandes arimos, na região do rio Bengo e roças em S. Tomé.

Aida Freudenthal refere, em «Arimos e Fazendas», que, "entre as numerosas centenas de proprietários revelados pela documentação sobressaem varias "donas” de arimos e de escravos pertencentes à sociedade luandense e benguelense, de meados do século, como Ana Ubertali, Apolinária Mattoso e Ana Joaquina dos Santos Silva. Os dados obtidos permitem afirmar que a acumulação de riqueza em suas mãos resultou não apenas dos benefícios alcançados através do tráfico, como da prática do comércio lícito e da exploração das terras que lhes pertenciam por herança ou por doação, recorrendo ao trabalho escravo. Destes casos o mais eloquente no domínio da iniciativa empresarial, materializada em investimentos no tráfico, no comércio e na agricultura e transformação da cana, é o de D. Ana Joaquina, eminente figura da sociedade luandense, traficante e proprietária de arimos no Bengo, curiosa personagem de compromisso entre a economia mercantil, a agricultura ‘tradicional’ e as novas estratégias empresariais. Sendo proprietária de vários prédios urbanos e de numerosos e extensos arimos.”

Entre 1841 e 1843, D. Ana Francisca Ferreira Ubertali associou-se a Bernardino José Brochado no tráfico de mão-de-obra escrava e criou uma feitoria em Moçâmedes, já que esta região era menos controlada pelos antiesclavagistas dos navios de guerra britânicos. Também são conhecidas as suas relações comerciais com os grandes traficantes luso-brasileiros, como Ângelo Carneiro, de quem era, provavelmente, uma das fornecedoras de força de trabalho escravo, no Brasil.

Não tendo sido a primeira esposa de Carlos Ubertali, D. Ana Francisca casou-se, pela quarta (?) vez, com Luís António de Miranda, major do Batalhão de 1ª Linha. Quando faleceu, em 1848, D. Ana Ubertali deixou para os seus herdeiros uma apreciável fortuna. No quadro de uma Educação para o Desenvolvimento, cabe-nos hoje a necessidade de aprendermos a ser solidários:
- Solidários no espaço, na sua dimensão individual (para como as crianças, adolescentes, adultos e idosos, que integram as gerações vivas) e nas dimensões familiar, organizacional, comunitária, nacional e mundial;
- Solidários no tempo, para com as gerações futuras (para com os nossos netos, como fundamento de desenvolvimento sustentado) e também para com as gerações passadas, nomeadamente, com os nossos antepassados (na defesa do património e na assunção da nossa história), em todas as suas facetas positivas e também negativas.

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