Sociedade

Crianças com as vidas “embargadas” por queimaduras

Madalena Quissanga

Jornalista

Como todo o menino da sua idade, Lukeny, de oito anos, gosta muito de brincar. Porém, na última vez, as coisas não correram bem. Ao divertir-se com a irmã, pegou em alguns palitos de fósforo, acendeu e os colocou no colchão. Em poucos minutos, o quarto ficou todo em chamas.

26/09/2023  Última atualização 09H10
© Fotografia por: Edições Novembro

A irmã conseguiu correr para fora e pediu ajuda. O Lukeny foi levado ao Hospital Geral Especializado em Queimaduras "Neves Bendinha”, localizado no Zango II, em Viana. O médico em serviço, no banco de urgência, sugeriu o internamento e para minimizar as marcas das queimaduras, o menino foi submetido, dias depois, a uma cirurgia reparadora, com recurso a enxertia (retirada da pele de uma parte sã do corpo para cobrir as queimadas).

"Caso não fosse feito esse procedimento cirúrgico, o pequeno teria de conviver com as cicatrizes para o resto da vida”, disse o médico.

A mãe de Lukeny, Luzia Domingos, até hoje não acredita no sucedido. "Nunca iria me perdoar, caso o pior acontecesse.  Sei que uma criança não deve ter a responsabilidade de cuidar de outras crianças. Mas, às vezes, não tenho escolha”.

Lukeny teve de ficar um ano internado, devido à profundidade da queimadura. O corpo do menino apresenta muitas marcas e sinais da lesão. O trauma já é coisa do passado. A cirurgia foi um sucesso.

Causas e vítimas

O médico cirurgião plástico Nsingi António disse que, entre as principais causas de queimaduras, com base nos registos do hospital, estão as provocadas por líquidos quentes como o chá, alimentos como o feijão e as papas, as velas acesas, curto-circuitos e acidentes nos locais de trabalho.

"Por isso, pedimos aos pais que não peçam nenhuma criança para preparar as refeições. Geralmente, pela média registada, os menores são os mais afectados pelas queimaduras”, explicou.

A maioria das queimaduras em crianças, avançou, está relacionada com as condições sociais e financeiras dos pais. "Os pacientes que chegam ao hospital são, geralmente, oriundos de famílias com condições sociais e financeiras desfavorecidas”, disse.

O cirurgião plástico informou que a maioria das queimaduras ocorrem nos lares, em consequência de acidentes com água e óleo quente, vazamento de gás, mau manuseamento de velas acesas e de problemas eléctricos nas residências.

As queimaduras mais frequentes, explicou, são sempre as do primeiro grau, que atingem apenas a camada superficial da pele, e, na maioria das vezes, levam de cinco a sete dias para cicatrizarem. As do segundo grau, disse, dependendo muito da parte do corpo, podem levar de sete a 20 dias de internamento, enquanto as do terceiro grau levam os pacientes a ficarem 20 a 45, ou mais dias internados.

"O tempo que o paciente fica internado envolve muitos custos, desde a alimentação, recuperação nutricional e a própria estabilização deste. As vítimas de queimaduras do segundo e terceiro graus, geralmente precisam de tratamento cirúrgico de reparação ou de reconstituição da zona afectada, para facilitar o processo de cicatrização e ter de volta a autoestima. É uma forma de minimizar o sofrimento deste”, esclareceu.

"Lesões profundas na pele”

Segundo o médico, as queimaduras, quanto à profundidade, classificam-se em queimaduras do primeiro, segundo e terceiro grau. As do primeiro grau atingem as camadas superficiais da pele. Apresentam vermelhidão, inchaço e dor local suportável, sem a formação de bolhas. Ao passo que, as do segundo grau atingem as camadas mais profundas da pele.

Apresentam bolhas, pele avermelhada, manchada ou com coloração variável, dor, inchaço, desprendimento de camadas da pele e possível estado de choque, e por fim, as do terceiro grau atingem todas as camadas da pele e podem chegar aos ossos. Manifestam pouca ou nenhuma dor e a pele fica esbranquiçada ou carbonizada.

Em comparação com as queimaduras de primeiro e segundo grau, as queimaduras do terceiro grau são as que mostram um maior risco de complicações devido às infecções. Por isso, é importante tratar as lesões de forma célere independentemente do grau, de formas a se evitar possíveis consequências.

O Hospital dos Queimados "Neves Bendinha” atende, em média diária, 15 a 20 doentes, sendo que cinco a seis pacientes acabam por internar e outros vão parar na área de Cuidados Intensivos, para efeitos de estabilização.

O médico Nsingi António reconhece que o número de pacientes é muito alto, quando comparado com o de outros países do mundo. "Quase ninguém regista este número de pacientes queimados todos os dias”, referiu.

Para estabilizar uma pessoa vítima de queimadura, o médico intensivista pode levar de quatro a cinco horas ou mais, porque envolve muito equipamento e muita técnica para manter o paciente estável. "De acordo com as regras, um médico devia controlar apenas dois a três doentes”, explica.

Enquanto o paciente não estiver estabilizado, o intensivista não pode ausentar-se. Neste caso, como ficam os demais pacientes, quando nós só contamos com dois especialistas nesta área?”, questiona o responsável.

Cirurgia plástica ou de construção

A cirurgia plástica é indicada quando há perda estética ou alterações na região da queimadura, especialmente nas de segundo e terceiro grau. Além disso, lesões em locais específicos podem causar acometimento funcional, prejudicando a mobilidade do corpo.

O médico lembra que existem dois tipos de cirurgia plástica ou de reconstrução da pele. Avançou que na cirurgia com enxertos são utilizadas fatias finas de pele saudável do próprio paciente, que são aplicadas sobre a área afectada. Enquanto isso, na cirurgia com retalhos são transferidas partes da pele e tecido irrigados por artérias para a região acometida.

O exemplo de um bom trabalho de cirurgia plástica realizado no país pode ser visto no corpo de Josefa Valéria, a menina de seis anos que entrou no Hospital Neves Bendinha, no dia 7 de Julho do corrente ano, depois de sofrer queimaduras do primeiro e terceiro grau, afectando o pescoço e os seus membros inferiores e superiores. Após a cicatrização das feridas, foi feita uma cirurgia de enxertia na pele.

Sobre este pormenor, o médico fez saber que por questões de estética, após a recuperação e cicatrização das feridas, alguns pacientes são submetidos a cirurgias plásticas ou de reconstrução, para a correção das lesões causadas por queimaduras.

Nsingi António explicou que a cirurgia plástica estética é aquela que é feita em pacientes saudáveis e que não tiveram nenhuma lesão por queimadura ou por outras causas e, "por não estarem satisfeitas com determinadas partes do seu corpo, optam por esta via para a correcção”.

O médico avança que a cirurgia reparadora é a que mais se realiza no hospital Neves Bendinha, em função do nível e tipo de queimaduras apresentadas pelos pacientes, de acordo com a profundidade e a extensão da lesão, em que é feito o autoenxerto cutâneo (retirada da pele de um lado e colocada na área lesada para fechar a afectada).

Erros mais comuns

Geralmente, muitas vítimas de queimaduras recorrem a práticas antigas para atenuar a dor ou minimizar a gravidade do ferimento, como colocar açúcar, manteiga e, às vezes, fezes de cabrito. "Muitos dizem que cura, mas essa prática deve ser evitada para acautelar eventuais infecções ou complicações graves”, aconselhou o médico Nsingi António.

Recomendou que, ao invés destes produtos, os pacientes devem lavar a área com água e sabão ou usar uma toalha molhada para cobrir as partes afectadas pela queimadura e levar o paciente à unidade hospitalar mais próxima. "Seja qual for o estado do paciente, os familiares devem procurar, primeiro, a unidade hospitalar mais próxima e evitar qualquer intervenção longe das normas convencionais”, esclareceu.

As queimaduras, disse, normalmente destroem a estrutura primária do corpo, no caso a pele, e depois seguem-se as outras camadas, com base na extensão da queimadura. Nsingi António revelou que, apesar da escassez de médicos especializados, as vítimas de queimaduras já não precisam de ir ao estrangeiro para fazer uma cirurgia plástica. "A prática é comum agora no país”, disse.

Estresse pós-traumático

Segundo o psicólogo clínico Hélio Mutunda, os danos causados por uma queimadura são extensos e além das sequelas físicas, há os danos psicológicos, consideravelmente preocupantes. Para o psicólogo, é possível conhecer os tipos de transtornos psicológicos que acometem os pacientes que sofrem de queimaduras.

"A depressão e os transtornos de ansiedade encontram-se entre as patologias mais notadas. O transtorno de estresse pós-traumático aparece com o de ansiedade mais comum, com uma prevalência significativa”, acrescenta.

Hélio Mutunda sugere que sejam realizadas mais palestras sobre a recuperação de pacientes vítimas de queimaduras, com intuito de minimizar as sequelas emocionais.

Necessidade de médicos

O director-geral do Hospital Geral Especializado em Queimaduras "Neves Bendinha”, Dadi Bucusso Netemo, disse que o número de efectivos, principalmente médicos e enfermeiros é insuficiente.

Segundo o responsável, actualmente a unidade de saúde conta com dois médicos especialistas em cirurgia plástica, uma anestesista, dois intensivistas, dois pediatras e dez especialistas em medicina interna. "Os restantes são clínicos gerais, e muitos deles em idade de reforma”, sublinha.

Além dos médicos, a única unidade sanitária do país especializada no tratamento de queimaduras é assegurada por 156 enfermeiros, 86 técnicos de diagnóstico e terapêutica, quatro psicólogos clínicos, 34 trabalhadores para os serviços de apoio hospitalar e 55 do regime geral.

Para satisfazer a procura, acrescenta, o hospital precisa de mais 14 médicos intensivistas, igual número de pediatras, dois cirurgiões plásticos, dois ortopedistas, sete anestesistas, dois nefrologistas e dois pneumologistas.

Dadi Bucusso Netemo defende a necessidade de enquadramento urgente desses especialistas, porque além das queimaduras os pacientes sofrem de outras patologias. "A unidade sanitária conta com um total de 156 enfermeiros. Apesar de receber estagiários voluntários que ajudam nas necessidades mais básicas, o hospital continua a necessitar de muito mais, porque este ano mais de 20 técnicos de enfermagem irão à reforma”, disse.

O Hospital dos Queimados é de carácter provincial, mas atende, todos os dias, pacientes oriundos de várias localidades do país. Sobre o assunto, Dadi Bucusso Netemo avançou que a instituição que dirige "tem uma missão importantíssima a nível nacional, daí a grande necessidade de ser bem servida em termos de profissionais”.

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