Entrevista

“Cooperação com a Coreia do Sul ainda tem muitos bons frutos para dar”

Augusto Cuteta | Seul

Jornalista

No quadro do convite que recebeu do Serviço de Cultura e Informação da Coreia (KOCIS), o Jornal de Angola aproveitou a ocasião para realizar uma visita à Embaixada de Angola neste país do Oriente. Numa conversa descontraída, mas profunda, o diplomata apresentou o diagnóstico da comunidade angolana, fez um balanço da cooperação entre os dois países e apontou as perspectivas de Angola em relação aos acordos que tem assinado com este país. Neste quesito, considerou que as relações são boas, mas precisam de novo impulso, uma vez que existem, ainda, muitas oportunidades de reforço da relação bilateral.

29/06/2023  Última atualização 07H10
Embaixador de Angola Edgar Gaspar Martins © Fotografia por: DR
Angola e Coreia do Sul têm relações diplomáticas desde 1992 e o Estado angolano possui uma Embaixada instalada neste país asiático desde 2008. Como é que o senhor embaixador avalia o grau de cooperação entre os dois países?

As relações diplomáticas entre os nossos dois Estados são boas, mas deveriam ser muito melhores.

 

Quando o senhor afirma que deveriam ser melhores, significa que existem aspectos que não estão a correr bem?

A ideia é que as relações melhorem e se elevem sempre. É o que queremos. E, se isso acontecer, vai ser bom para ambos os países. E disse bem que nós estabelecemos relações desde 1992 e o nosso primeiro embaixador residente na Coreia foi acreditado em 2011. No ano passado, comemoramos 30 anos dessa relação amigável, mas precisamos de dar outro impulso nela, porque as nossas parcerias ainda podem dar muito mais frutos.

O nosso primeiro Acordo Geral de Cooperação Económica, Técnica e Científica foi assinado há 30 anos. E isso fez com que criássemos um mecanismo de troca de consultas, que é a Comissão Bilateral, que é, no fundo, a Comissão Técnica e Económica.

 

Mas, senhor embaixador, que influência tem a comissão no reforço da cooperação entre os dois países?

Entenda que essa comissão é tão importante quanto os próprios acordos. É esse mecanismo que avalia o grau de implementação dos compromissos já assumidos entre os dois Estados. E, desde que estabelecemos as relações bilaterais, reunimos essa comissão, em 2004, em Luanda. E a segunda foi em 2009. De lá para cá, não conseguimos realizar essas consultas, quando esse mecanismo deveria reunir periodicamente, para corrigir o que está mal e melhorar o que está bem.

 

Sente que essa situação esteja a esfriar as relações ou o cumprimento dos compromissos assumidos entre as partes?

Não é neste sentido de esfriar as relações. O que precisamos é de realizar a terceira Comissão Bilateral. Só para ter uma ideia, devo dizer que nós assinámos 12 instrumentos jurídicos com a Coreia e precisamos de analisar o grau de implementação desses acordos! Aliás, atendendo a própria conjuntura internacional, a situação específica de cada país vai se alterando, o que exige que façamos adaptações às coisas. Há acordos que são assinados, mas não executados, por uma ou outra razão. Daí a importância dessas comissões para avaliar os constrangimentos e superá-los.

 

Entre os acordos assinados, há alguns que não tiveram implementação?

Dos 12 documentos jurídicos, pelo menos 60 por cento, ou seja, sete são funcionais, enquanto cinco nunca saíram do papel. Deixa-me referir que se trata de quatro acordos de cooperação, um protocolo de cooperação, cinco memorandos de entendimento e dois ajustes complementares, destes últimos resultam os empréstimos do Fundo de Cooperação para o Desenvolvimento Económico para os financiamentos ao nível do Korea Eximbank para projectos a executar em Angola.

E, quais os acordos que estão a ser implementados, senhor embaixador?

Temos acordos em várias áreas, mas, estes dependem do acordo geral. Ou seja, todos os outros acordos surgem em função deste. Dos acordos assinados com a Coreia, temos um relativo ao empréstimo do Fundo de Cooperação para o De-senvolvimento Económico. Este fundo, administrado pelo Ministério das Finanças coreano, é que dá lugar a que aqueles ajustes tenham financiamento por via do Eximbank. Em termos de projecto, neste momento, está em curso o da Moni-torização da Segurança Pública. Está também a decorrer a construção do Centro de Indústria Avançada, com obras prestes a terminar na Zona Económica Especial. Estes projectos financiados pelo Eximbank enquadram-se naquilo que o nosso Governo definiu, actualmente, na sua filosofia para financiamentos de projectos em Angola. Com isso, quero esclarecer que quando surgiram restrições, o nosso Governo, na altura da redução de despesas em consequência da baixa do preço do petróleo, da dívida elevada e da Covid-19, estabeleceu alguns princípios, no sentido de que todos os financiamentos negociados entre Angola e instituições financeiras tinham de observar algumas regras. Estas regras, na aprovação dos financiamentos com o Korea Eximbank, foram rigorosamente observadas. Refiro-me à maturidade de 15 a 20 anos (ou seja, o tempo para que se comece a pagar a dívida), taxas de juro abaixo dos 2 a 3% e as comissões que seriam recebidas ficariam entre 1 a 2%. Por essas questões terem sido favoráveis com a Coreia, estes e outros projectos foram e serão negociados e, eventualmente, assinados.

 

Em que se baseia este projecto relacionado ao Centro de Indústria Avançada?

Vai ter um grande foco, sobretudo, na formação de quadros. Como sabe, nós temos um grande défice neste aspecto. Não estamos a falar de técnicos de nível superior, mas de formação estruturada em vários domínios, para direccionar a juventude, uma vez que não se pode só pensar nas licenciaturas, mestrados e doutoramentos em letras, mas para os ramos mais técnicos. Por exemplo, há dias, fui à Hyundai Heavy Industries, que produz grandes navios tanques. Esta grande companhia sul coreana assinou um contrato com a Sonangol e estão previstos a entrega de dois navios petroleiros. Um desses petroleiros já foi entregue em Maio deste ano. E, dentro desta perspectiva, solicitei uma parceria para a formação, nas suas instalações, de alguns nossos quadros que terminam os seus estudos na Coreia do Sul e pudessem arranjar estágios nesta companhia. Seria bom porque, futuramente, poderiam funcionar como embaixadores da tecnologia sul coreana em Angola e no exterior. Por exemplo, situações ou problemas nesses barcos em Angola seriam os nossos jovens a intervir e só, em casos mais complexos, chamávamos sul coreanos mais especializados. E nessa conversa com o chairman desta empresa, para pedir apoio para os nossos jovens que estão na Universidade ou já formados, ele deixou claro que não precisa de homens com formação em áreas sociais. E, hoje, as opções formativas dos jovens recaem para o Direito, Relações Internacionais, Sociologia, Psicologia, etc., quando a nossa prioridade deveria apontar às áreas técnicas, como as Engenharias!

 

 Quer dizer que se está a direccionar mal os jovens quanto à formação, se se tem em conta as necessidades actuais do país?

Vamos só entender juntos um cenário. O país tem recursos minerais como diamante, petróleo, cobre, ferro, terras aráveis e mais. Em contrapartida, tem escassez de técnicos para explorá-los. Vamos continuar sempre a recorrer à mão-de-obra estrangeira? É preciso que comecemos a realinhar as estratégias de actuação das nossas Universidades para apostarem na criação de Faculdades ou institutos de ramos técnicos. E o Centro de Tecnologia Avançada vai procurar materializar parte deste desafio da formação de quadros técnicos.

 

Antes desta abordagem sobre a necessidade de mais cursos técnicos, o embaixador fazia uma incursão sobre os acordos. Além do acordo do empréstimo do Fundo de Cooperação para o Desenvolvimento Económico, quais foram os outros?

Posso apontar os acordos não funcionais. Na área da Comunicação Social temos um, assinado, há muitos anos. Primeiro, não há intercâmbio entre as agências dos dois países nem no seio dos jornalistas. Agora, há uma luz no fundo do túnel, mas no quadro das iniciativas que o Governo coreano gizou para receber jornalistas estrangeiros para a promoção do seu país. Mas, este acordo deveria ser melhor aproveitado. Temos um Memorando de Entendimento para a Protecção Ambiental e um outro das Telecomunicações e Tecnologias de Informação, que, também, não arranca. Deixa esclarecer que os dois projectos em fase conclusiva de que fiz referência são financiamentos, o que significa que o Estado angolano terá de pagar. É uma dívida. Mas, há acordos bilaterais que precisam de andar, como no domínio dos Antigos Combatentes e Veteranos da Pátria e outros.

 

A Coreia é um grande produtor de veículos. Que ganhos é que o país tira da cooperação com este país, principalmente para máquinas de suporte do sector agrícola, como tractores e camiões para o escoamento de bens cultivados?

Ainda não atingimos o que queremos nesta matéria. Infelizmente, ainda não. Por exemplo, quando cheguei aqui à Embaixada para assumir o cargo, havia um projecto que seria financiado pelo Korea Eximbank, mas não avançou, na medida em que o Governo angolano declinou porque encontrou uma outra opção. Agora, estamos a distribuir carrinhas para escoar os produtos. Não funcionou com a Coreia, mas houve outras soluções. Porém, a Coreia continua a ser uma dessas "casas” onde podemos bater a porta a qualquer altura. Falando nisso, deixa-me dizer que a Edipesca começou a ser montada pelos coreanos. Devemos retomar este projecto, porque os financiamentos dos coreanos são muito bons. O que temos de fazer é que, além de recebermos financiamentos e comprar navios e outra maquinaria para a Sonangol, devemos associar a isso à formação de quadros. Enquanto o projecto está a ser desenvolvido, que eles formem, também, os nossos quadros. Pode-se enviar aqui os formadores ou os formadores deles irem a Angola.

 

Que cursos mais estimulam os estudantes angolanos cá na Coreia?

Temos estudantes na Coreia a fazer cursos em várias áreas. Boa parte deles não vem por via do mecanismo do Instituto Nacional de Gestão de Bolsas de Estudos (INAGBE), mas por conta e risco próprios ou pelas bolsas oferecidas pelo Governo coreano ou bolsas partilhadas, depois de apurados em concursos ou promoções feitas pela Embaixada da Coreia em Angola. Neste caso, mesmo que quiséssemos encaminhar, as coisas ficariam complicadas. Mas, temos alguns engenheiros informáticos. Mas, lamentavelmente, também estamos a assistir a jovens que saem de Angola para vir estudar Relações Internacionais, quando o país já tem muitas Universidades a formar nesta área!

 

Quantos estudantes frequentam as Universidades da Coreia?

Antes deixa-me referir que há 67 angolanos na Coreia, sem contar com os funcionários da Missão Diplomática e seus filhos. Dos 67, 52 são do sexo feminino e 15 do masculino. Pelo menos 19 são estudantes universitários e 48 residentes. Temos ainda quatro recém-licenciados, 20 trabalhadores e sete desempregados, além de 14 menores. Com excepção de três, sendo um de 54, quatro e outro de dois anos, a maioria desses angolanos nasceram entre 1977 a 2016, o que representa uma migração nova. São pessoas que chegaram aqui depois de 2002, altura em que o país já tinha alcançado a paz efectiva. Esses vêm à procura de melhores condições sociais ou outras oportunidades.

 

Voltando à questão dos acordos, em que falou da necessidade da realização da Terceira Comissão Bilateral. O que está na base da não efectivação deste encontro?

Em poucas palavras, devo afirmar que se trata de uma questão de agenda e de um pouco mais de boa vontade das partes. Não é que os Estados não queiram se reunir. Mas, é imperiosa a realização da Terceira Comissão Bilateral.

 

Além da avaliação dos acordos, o que mais a realização dessa Terceira Comissão Bilateral traria para os dois países e para Angola, em particular?

Como disse anteriormente, esse encontro permitiria fazermos um balanço do grau de cumprimento das nossas acções, desde a primeira Comissão, mas, acima de tudo, representaria o relançar da cooperação. Também serviria para avaliar e reavaliar os documentos jurídicos assinados e não implementados, negociar

e finalizar a Proposta de Acordo Sobre a Promoção e Protecção Recíproca de Investimentos, que tem já passos bem firmados. Sublinho a importância deste último acordo. É um instrumento legal fundamental que dá segurança aos empresários e operadores económicos dos nossos países. Por exemplo, se houver qualquer risco, este acordo os protege. Os empresários sentir-se-iam mais à vontade para investir aqui. Na verdade, este documento dá confiança aos nossos dois tecidos económicos. E devemos ser honestos em reconhecer que são mais os empresários coreanos, porque, normalmente, este movimento é feito da Coreia para Angola, porque os coreanos têm capacidade económica e Know-How. A reunião ajudaria, ainda, a avaliar a possibilidade de negociar novas propostas dos instrumentos jurídicos e de cooperação submetidos à análise de ambas as partes. Por exemplo, submetemos propostas de acordos nos domínios do Interior e da Saúde e aguarda-se, a todo o momento, por alguma resposta. E os coreanos têm um grande Know-How nestes dois sectores. Ver a possibilidade de acordos na formação qualificada e profissional, transportes, entre outras. Havia um projecto de construção de um hospital de referência para os militares. Podíamos, nessa reunião, retomar a discussão e se providenciar o alargamento da continuidade de projectos previstos até 2024, que podiam ser prorrogados para o ano 2027. No quadro da ajuda pública ao desenvolvimento, existem projectos superintendidos pela Agência de Cooperação Internacional da Coreia (KOICA) que podiam terminar e iniciar outros. Esta instituição ajuda em muitos projectos de forma não reembolsável em países em vias de desenvolvimento. Angola gostaria de beneficiar mais para melhorar a sua capacidade e qualificação institucional, na educação e outras áreas.


Senhor embaixador, em função dessas oportunidades para Angola, não acha que seria da vossa parte fazer maior pressão à Coreia?

As questões político-diplomáticas nem sempre são assim muito fáceis de perceber pelo senso-comum. Mas, tem razão quando se refere a isso, porque Angola precisa mais da Coreia. Por exemplo, se tivermos a ajuda da KOICA, podemos dar avanços em projectos no domínio da formação de professores, reforço da capacidade institucional, cursos de inglês, acordos de geminação, entre outros. Mas, ainda assim, será necessário mais disponibilidade por parte da Coreia do Sul. E sobre isso, devo referir que, em Maio, esteve cá o governador provincial de Luanda e assinou um acordo de geminação com a cidade de Busan, quando veio para assistir à Exposição Mundial sobre o Clima. Esses acordos de geminação são bons porque permitem que as cidades ou províncias interajam e resolvam directamente os projectos sem necessidade de anuência dos ministérios ou instituições de tutela. Um outro objectivo importante e urgente a materializar é a institucionalização da Câmara de Comércio Angola/Coreia, para garantir que os empresários abordem os seus problemas sem dificuldades de grande vulto. E como os países, como o nosso, movem-se com os empresários, temos de ter a Câmara.

 

Na lista de angolanos que citou, o senhor não faz referência a qualquer empresário angolano aqui na Coreia…

Não temos! Em abono da verdade, ainda não há essa capacidade. Há casos de pequenos negócios, como pessoas que compram carros ou equipamentos electrónicos na Coreia e vão revender em Angola. Investidor na Coreia, na verdadeira essência da palavra, não temos.

 

Pelo que se sabe, a Coreia é um país com rigidez no cumprimento das leis. Por causa disso, a Embaixada tem registo de casos de angolanos em processos judiciais, por infringirem regras coreanas?

Infelizmente, temos. A justiça coreana é rigorosa e exigente. A Coreia é um país que não tem muita experiência e convivência com a África. Por isso, não são  condescendentes com à indisciplina. Ele falhou, vai para a cadeia.

 

Quais são os crimes mais comuns entre os angolanos em processos judiciais?

São os golpes com falsos perfis ou personalidade, os conhecidos "pix”, em que se visa invadir a privacidade de alguém para extorquir dinheiro. Um ou outro está preso por causa disso. Há angolanos que chegam aqui, trazidos por supostos empresários, que prometem uma série de benesses e quando o jovem chega à Coreia é envolvido em situações menos dignas. Resultado é a cadeia. Nós, Embaixada, damos o apoio na medida do possível. Mas, já repatriámos alguns. Outros têm problemas com a justiça por condução sob efeito de álcool. Esse indivíduo, se levar uma multa e não pagar, é caso sério com as autoridades coreanas.

 

Fora essa questão dos crimes, quais os outros problemas que a comunidade angolana reporta à Embaixada?

A nossa comunidade não dá muito trabalho. Boa parte dessas pessoas é estudante e se ocupa com questões da formação. Aqui, aparecem mais quando têm passaporte caducado, renovar o Bilhete de Identidade ou troca da Carta de Condução. Aqui, a tranquilidade reina a tal ponto que nós juntamos os compatriotas quando há datas comemorativas de grande relevo, como o Dia da Paz ou da Independência Nacional e fazemos a nossa festa por cá. De resto, é uma comunidade pacífica, muito tranquila.

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