Cultura

Contextos, conceitos e problemas

Luís Kandjimbo |*

Escritor

Os contextos e conceitos de poder tradicional, bem como a sua justificação, estão na ordem do dia entre nós, se tivermos em atenção as recorrências do debate político mediatizado.

11/04/2021  Última atualização 07H17
© Fotografia por: DR
Chega-se rapidamente à conclusão de que a tematização do poder tradicional e do poder local constitui o centro de uma certa, muitas vezes fraca e assimétrica, dialéctica argumentativa. O pecado mortal das pretensas dialécticas argumentativas reside no facto de não se atribuir qualquer importância à segurança enunciativa de quem opera com os conceitos e seus sentidos nas línguas que são usadas pelas diversas comunidades angolanas.

Tal fragilidade decorre de uma simples constatação. Entre nós, não são conhecidos os problemas debatidos em África sobre as realidades comuns. Contrariamente ao que sucede em muitos países africanos, alguns independentes há cerca de seis décadas, outros com menos tempo, no contexto angolano o  poder tradicional e as autoridades tradicionais não suscitaram ainda o debate que se deseja. Quando se fala da governação descentralizada, o centro das atenções é o poder local, no sentido eurocêntrico do conceito, na medida em que a sua conceptualização exclui o  poder tradicional e as suas fontes de legitimação. Como compreender que em certo domínio do saber jurídico, não se tenha pleno conhecimento dos modos de legitimação do poder tradicional?


Poder tradicional e o debate

Para ilustrar a ideia enunciada, segundo a qual o poder tradicional ainda não suscitou ainda o debate que se deseja, pode ser útil acompanhar dois filósofos africanos, Albert Kasanda e Olufemi Taiwo (na imagem), a que se juntam cientistas políticos e especialistas de relações internacionais, cujas obras e ideias são mal conhecidas em Angola. Além daqueles dois, estou a referir-me ao ugandês Mahmood Mamdani, nigeriano Eghosa E. Osaghae e democrata-congolês Tukumbi Lumumba-Kasongo.

Esta ignorância epistémica é uma consequência da glossobalcanização que já aqui denunciei em outras ocasiões. Aliás, não é exclusivamente angolana. Dele têm a perfeita consciência outros cidadãos africanos lúcidos. A minha experiência mais recente a este respeito ocorreu nos últimos oitos anos, durante as sessões de trabalho do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redacção da História Geral de África (volumes IX, X e XI). Dos seus quinze membros, apenas seis eram verdadeiros poliglotas, por serem igualmente falantes da língua portuguesa. De resto, a comunicação não era nunca realizada em qualquer língua africana. Por conseguinte, sobre as cabeças africanas paira sempre o espectro do empréstimo cognitivo desprovido da sua dimensão cultural.

Portanto, a glossobalcanização é um problema que merece ser tópico de conversa para aqueles que atribuem algum valor às culturas, às línguas e aos conceitos elaborados através da sua mediação. Pode dizer-se que é uma problemática relevante da geopolítica das línguas. Mas, na verdade, deve especialmente ser considerado como um problema susceptível de mobilizar a atenção dos que se ocupam do exame racional e crítico do aparato teórico e conceptual que sustenta a política. Mesmo assim não abundam. Por isso, há que reconhecer a escassez de publicações no domínio da filosofia política.

Mas, tanto quanto julgo saber, não é apenas esse problema que solicita a atenção do congolês-democrata Albert Kasanda e do nigeriano Olufemi Taiwo ou de outros que mencionei. Todos manifestam um interesse particular por problemas respeitantes à justificação do poder, à renovação e reconceptualização dos fundamentos da filosofia africana, bem como à filosofia política do período pós-independência. Como questão preliminar estes autores introduzem uma reflexão acerca das fontes negligenciadas da filosofia política africana, entre as quais se incluem a música, as artes visuais e a literatura. A este propósito, Albert Kasanda vai mais longe. Considera mesmo que a marginalização das literaturas africanas constitui uma grave atitude preconceituosa.

Para o que interessa ao tópico da conversa, Albert Kasanda identifica três preocupações essenciais para a filosofia política africana, nomeadamente, (1) o bem-estar dos cidadãos africanos, (2)natureza e justificação do poder e (3) o modelo adequado de organização social e política.
Por força da articulação destas três perspectivas analíticas propostas, Olufemi Taiwo vem dizer que nesse sentido qualquer concepção da natureza humana, por mais grosseira que seja, pode ser pertinente relativamente ao fins que se prossegue em qualquer ordem política. Em seu entender, nenhuma ordem política pode escapar suposições sobre o tipo de seres humanos que beneficiam das articulações resultantes de tal concepção. É indispensável considerar os princípios metafísicos relativos à natureza humana defendidos por vários filósofos políticos africanos no período pós-independência. Por isso, para Olufemi Taiwo a uma outra questão central da filosofia política à qual os pensadores africanos devem continuar a dar respostas é a seguinte: se nem todos podem, governar, quem pode governar?


Legitimação
As respostas a semelhantes questões conduz-nos a nossa conversa às fontes negligenciadas da legitimação do poder tradicional que, entre nós, alguns os juristas qualificam como autocrático, representativo, mas sem base democrática. Tais qualificações  constituem formas de marginalização que, como autodefesa, permitem que as autoridades tradicionais reajam através de mecanismos endógenos que escapam ao domínio do Estado e ao conhecimento dos seus agentes. O cientista político nigeriano Eghosa E. Osaghae trata desta matéria quando, ilustrando com exemplos da Nigéria, se debruçou sobre estratégia de "afastamento" dos cidadãos do campo dominado pelo Estado, sendo as relações de  parentesco o mecanismo fundamental de tal atitude e outras formas de solidariedade e ajuda mútua. Mas isso revela apenas o fracasso dos Estado independentes, que é semelhante ao fracasso do Estado colonial.

Na mesma senda, Tukumbi Lumumba-Kasongo aborda a necessidade de reconceptualização do Estado em África, enquanto agente do desenvolvimento. Tal esforço tem em vista a elaboração de  novas definições de cidadania e novos conceitos de territorialidade em termos jurídicos, políticos e económicos. Lumumba-Kasongo entende que prevalece, no nosso continente, uma confusão multidimensional sobre uma agenda de progresso social. Por essa razão, defende a revisão dos conceitos de Estado e desenvolvimento, à luz das lutas actuais que devem dar lugar à multipolaridade nas relações internacionais.

Portanto, tal como em outros continentes, o bem-estar dos cidadãos africanos é também o fim último da política em África. Mas revela-se necessário igualmente reflectir sobre a natureza e justificação do exercício do poder e os modelos adequados de organização social e política. Resumem-se aí as grandes linhas em que se pode analisar as tarefas que ao nível do pensamento devem ser levadas a cabo, permanentemente.

Como se pode calcular, o problema subjacente à definição do conceito de poder tradicional deve ser levado a sério para que ao Estado, aos seus agentes e às elites políticas angolanas não se impute a responsabilidade de impotência perante a importância de organizações politicas comunitárias cuja resiliência tem outros fundamentos. Na verdade, a "retradicionalização" ou "ressurgimento das autoridades tradicionais", como alguns especialistas pretendem denominar o fenómeno, não pode ser mérito do Estado, sob pena de se reduzir a história de Angola à exclusiva narrativa produzida sobre o triunfo do Estado moderno de tipo ocidental. O reconhecimento formal das instituições do poder tradicional, nos termos do artigo 223º da Constituição da República de Angola, deveria dar lugar ao abandono do positivismo jurídico dominante na análise do fenómeno. O que parece defensável é a advocacia de estudos interdisciplinares urgentes. Se for conferida a devida importância à conflitualidade histórica entre a antropologia missionária protestante  e a antropologia colonial em Angola, compreender-se-á a razão por que ainda hoje subsistem ignorâncias epistémicas sobre os processos de legitimação do poder tradicional. Talvez fosse interessante trazer à conversa uma questão já muito debatida em África. Estou a referir-me à formulação do filósofo ganense Kwasi Wiredu acerca da "democracia consensual" ou "democracia deliberativa". Entre nós, o tema, ou seja, a "democracia do ondjango", foi tratado pela filósofa Arminda Fernando Filipe. Por isso, faz sentido a leitura ou releitura do seu livro.

No dizer de Arminda Filipe,  a democracia tradicional significa poder participativo de todos os cidadãos cuja autoridade é exercida por aqueles que a comunidade designa. Assim, a democracia contemporânea em África deve ter em conta a singularidade e o contexto cultural dos povos africanos. Há aqui uma proposta interessante para debate no âmbito da filosofia cultural e da filosofia social. O relativismo cognitivo deve ser trazido à mesa da conversa. A este propósito, seria sugestivo dialogar com Polycarp Ikuenobe que encontra virtualidades no relativismo. Não podendo ser apenas autorefutante, o relativismo, no seu entender, permite descortinar uma variante moderada do relativismo cognitivo segundo o qual a justificação do conhecimento, enquanto crença, é sempre contextual. Depende de alternativas relevantes cuja adequação realiza-se através de conexões de carácter cultural, social, pragmático. Seria caso para dizer que a operacionalização do conceito de poder tradicional, no contexto do Estado moderno, implica uma crítica e um diálogo sobre crenças dominantes a seu respeito, entre diferentes pessoas, em diferentes culturas e contextos.

 * Ensaísta e professor universitário

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