Cultura

Companhia Palasa “dança” a guerra civil angolana

Matadi Makola

Nos dias 29 e 30, deste mês, estreia o espectáculo de dança contemporânea “Se Esses Pés Falassem”, na Casa das Artes, em Talatona. Produzido pela Palasa Dance Company, tem o bailarino Miguel Carlos na coreografia e direcção artística e a dramaturga Sara Lopes na direcção de ensaios.

25/04/2021  Última atualização 10H12
Se esses pés falassem © Fotografia por: DR
A ser pensado minuciosamente desde Agosto do ano passado, "Se Esses Pés Falassem” é um título que surgiu depois de uma prolongada conversa entre o coreógrafo Miguel Carlos e o seu tio, um militar que esteve presente no teatro da guerra, com o fito maior de compreender como era a vida deste militar durante a guerra civil.

Do resumo da conversa, mais do que a simples conclusão de uma maior necessidade de valorização dos ex-combatentes, em Miguel Carlos nasceu no momento a ideia de criar um espectáculo que fosse mais uma fonte de debate desta questão dentro da sociedade civil. Desenhou trazer em palco o papel destes membros da sociedade civil que suportam o ónus da nossa história recente. O título surge precisamente em consequência da vontade de contar a história de pessoas que viveram a guerra e que têm muitas coisas para contar.

"Os pés são a metáfora de caminho, de movimento durante o processo de guerra. Poderia ser a boca, mas nós como vamos dançar tinham de ser os pés a contar essa história”, sustenta Miguel Carlos.  
Se a mais vaga ideia do que se pode ter do drama da guerra conduz sempre a um "final trágico”, Miguel garante ser seu conceito particular terminar as peças sempre em tom de felicidade. "Gosto de encerrá-las com alguma imagem feliz, e acho que a Palasa, por significar esperança, acaba traduzindo esse espírito nas suas peças. É um conceito meu. Por sermos uma companhia jovem, queremos sempre finalizar trazendo esperança ao público que nos assiste. Por mais que aconteçam coisas negativas na nossa vida, há sempre algo que nos dá razão para viver”, defende.

Sara Lopes avança que o espectáculo será composto em três actos, dentro de uma narrativa contínua, envolvendo vários momentos que se deslocam no pré-guerra, durante a guerra e no pós-guerra. Cada acto terá histórias diferentes a serem contadas, com personagens arquétipos desse processo. "Trazemos um pouco de tudo, desde coisas que podem ter se passado com mulheres, crianças, famílias ou amigos. Todas essas situações que vão acontecendo em contextos de guerra, em que se perde gente e nos perdemos dos nossos locais originais, a lutar pela sobrevivência”, detalha.

Naturalmente, Sara reconhece que o espectáculo não toma a presunção de assumir como garantido ter em palco todas as experiências de um povo que passou por um processo de guerra, mas sim criar personagens que possam representar os momentos mais marcantes.

Ouvir testemunhas
Com um grupo de bailarinos e direcção artística jovem, sem memórias pessoais da guerra, Miguel Carlos recorreu a testemunhos de pessoas que estiveram na guerra, que se disponibilizaram a passar por um processo de entrevistas.
"Ouvimos coisas muito interessantes. Coisas que nos marcaram a nós e aos bailarinos também. Isso foi muito importante, por sermos uma geração que não passou por essa fase de guerra. Foi fundamental ouvir isso na primeira pessoa de quem viveu isso na pele, visões que foram incorporadas no espectáculo”, sustenta. 

De outro modo, com sinais que aguçam a imaginação de criadores jovens que queiram explorar esse tema para além da sisudez de toda a documentação histórica e bibliográfica a ser construída, Sara opina que a guerra parece ainda muito presente nos discursos e na forma de estar no dia-a-dia de muita gente. Para si, independentemente dos bailarinos serem bastante jovens e não terem passado pelo contexto de guerra, sempre há um pós-guerra que não é feliz de todo, dentro de uma sociedade onde a geração pós-guerra civil é parte integrante.

"Vivemos o stress, a ansiedade de estar ainda a viver numa mentalidade de sobrevivência, em vez de estarmos descansados. É como se nós ainda continuássemos a lutar pela sobrevivência num afã que é ainda do tempo de guerra. Por mais que eles não tenham vivido o tempo de guerra, é uma geração que é criada por pessoas que passaram por um processo de guerra. Então, o reflexo de toda a mentalidade e todos os sistemas de defesa e trauma ainda são muito presentes”, observa. 

Aponta Miguel Carlos que o processo de criação resulta, em parte, de um modo de observação constante do ser humano. Como coreógrafo, observa muito a movimentação das pessoas, de onde resulta, em muitos casos, os movimentos da dança, suportados por gestos muito simples, reproduzidos numa espécie de reinvenção de actos e tiques que as pessoas criam no dia-a-dia. Incorporar a guerra não foi muito difícil. "A guerra é triste e ainda está muito presente”.

Para Sara, no processo de passar essa história para os bailarinos, foi muito importante que estes se conectassem às histórias com emoção, para assim representarem tudo com o movimento do corpo. Sara Lopes destaca o processo criativo de Miguel Carlos como sendo bastante intuitivo ao lhe conferir uma dimensão espiritual, mas que, garante, procura ser bastante directo.
"Eu sou um pensador obsessivo. Penso minuciosamente em tudo, isso implica uma reavaliação constante”, confirma Miguel Carlos.


A música do espectáculo
Miguel preparou uma selecção de músicas clássicas e temas de artistas africanos. Inicialmente, pensava montar o espectáculo com uma música totalmente angolana. "Mas tudo foi se alterando no processo de construção até sobrar apenas um tema musical angolano que muito me tocou, que por sinal será a primeira música do espectáculo”.
Sobre a possibilidade de recorrer a temas da música clássica estrangeira, Miguel enfatizou que o cardápio musical angolano dispõe de sugestões que satisfazem as possibilidades do seu discurso estético, embora sinta que ainda faltam mais opções para a satisfazer as diferentes linguagens corporais que podem vir a ser criadas.   

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