Entrevista

Carlos Pedro: “O poeta é um intelectual rebelde, que luta diariamente pela sua liberdade”

Katiana Silva

Jornalista

Hoje assinala-se o Dia Mundial da Poesia, data instituída pela UNESCO. A propósito da efeméride, o poeta Carlos Pedro, actual presidente da Brigada Jovem de Literatura de Angola, aborda em entrevista o valor e a função da poesia nos dias de hoje, bem como faz um balanço do momento da instituição que dirige.

21/03/2023  Última atualização 05H20
© Fotografia por: DR

 Carlos Pedro é autor de várias obras de poesia, sendo a última delas "Poemas de um Tempo de Sensura”, que provocou opiniões no círculo literário. "Nesta altura eu fiquei inspirado e escrevi um conjunto de poemas que analisam essa postura da sociedade anti-democrática, que recorrentemente taxava que emitia a sua opinião por "revu” ou "baju”, e isso causava estigma, por isso escrevi "sensura”, como uma provocação ao leitor e uma busca da própria censura. O poeta é um intelectual rebelde, que luta diariamente pela sua liberdade”, justifica assim a função prática da poesia e a sua absorção a todos os temas da actualidade.


Hoje celebra-se o Dia Internacional da Poesia. O que este género significa para si?

Para mim significa tudo. Porque dos vários géneros literários, eu me destaco e me identifico mais com a poesia. Sou essencialmente um poeta, e a maior parte dos jovens escritores da minha geração são poetas. Porque felizmente nos tivemos bons mestres, a poesia angolana é muito rica do ponto de vista de humanidade, desde escritores da geração 50, começando com o Poeta Maior, Agostinho Neto, numa poesia de engajamento, de intervenção, que se preocupava com a liberdade do homem no seu todo. E prossegue a lista com poetas como António Jacinto, Viriato da Cruz, dos quais sofremos grande influência. Igualmente temos uma outra geração inspiradora, que traz poetas como Manuel Rui Monteiro, autor do livro Ombela. Eu tive no lançamento deste livro e me considero da geração "ombela”. Outros escritores também, como Luís Kanjdimbo, que também é um poeta, João Maiomona , bem referenciado no mundo da poesia, e temos ainda  um dos poetas mais premiados, que e o João Tala , de quem  muitos jovens se inspiram. É um poeta muito lido. Temos ainda Lopito Feijóo, José Luís Mendonça, ou seja, toda essa geração de poetas trouxe à tona boa poesia, e, naturalmente, nós como leitores da geração 80 nos inspiramos nestes poetas e não os largamos. Para mim, dentre os vários géneros literários a poesia e o coração da literatura.

 

Quais foram os seus primeiros contactos decisivos com a poesia, em termos de autores nacionais ou estrangeiros?

Eu comecei com António Agostinho Neto, a partir do livro Sagrada Esperança, através da biblioteca do meu pai. Numa primeira fase, apenas como uma curiosidade, pois quando se é adolescente a ideia é ter mais livros académicos, estudar mais para não levar reguadas ou não ficar para trás em relação aos amigos. Obviamente quando se tem uma biblioteca à disposição, de repente o livro aparece à frente de nós, é muito mais fácil. Então comecei a ler Sagrada Esperança, depois tive contacto também com a obra Trajectória Obliterada, de João Maimona, prémio Sagrada Esperança, dai começa derradeiramente a minha relação com a poesia, muito embora já em alguns livros da primária havia alguns poemas, de autores como Jorge Macedo ou Manuel Rui. Estes textos eram lidos de forma ignorante, ainda sem muita percepção do fenómeno poético, mas percebíamos que eram diferentes dos outros textos, porque provocavam algum efeito, algo como uma sensação ou estranhamento que é da própria poesia, e isso sempre me despertou. Também li bastante Luís de Camões. 

 

Recentemente declamou poesia sob as águas do rio Kwanza. A natureza o inspira?

Sim, inspira. Aliás, a principal fonte de inspiração de qualquer artista, sobretudo poetas, é a natureza. A natureza, com todos os seus elementos, partindo do homem como transformador da natureza até os recantos naturais. Angola é um país muito rico e belo, e eu penso que a literatura, o escritor, o poeta declamador, têm a responsabilidade de pegar nesses encantos naturais para trazê-lo à arte e divulgar ao mundo. Recebi muitas mensagens do exterior, porque Angola, como os outros países africanos, foi colonizada. São países muito jovens ainda,  com quarenta e tal anos, e há gente de grandes nações como o Brasil, e  até mesmo Portugal, que não conhece a Angola actual, porque têm aquela imagem antiga de Angola em guerra.

 

Fale-nos um pouco o que significa a sua passagem pelo grupo Poetas Frustrados. E porquê frustrados?

Nós, a dada altura, enquanto membros da Brigada Jovem de Literatura de Angola (BJLA), pela forma como esta associação estava a ser dirigida, ou melhor, a sua inoperância, fez com que criássemos um clube, que primeiro foi simplesmente de leitura para depois passar a ser um clube poetas e trovadores. Deste clube emergiram nomes como os músico s Kyaku Kyadaffi, já consagrados, Júlio Gil, Costa Mawese, Lito Gomes, e nós, os poetas, éramos na maior parte estudantes da então Faculdade de Letras e Ciências Sociais, e assim decidimos formar esse clube. Como gostávamos da poesia de Neto, a uma das passagens de um dos poemas de Agostinho Neto, que diz: "meu pobre cajocolo poeta frustrado de uma invasão” , então achamos muito interessante essa questão de ser poeta frustrado,  essa questão da não realização, porque o poeta tem o ideal de uma sociedade justa, e essa sociedade idealista por vezes está cada vez mais distante,  diante das guerras que terminam aqui , começam ali,  e outros conflitos sociais. Esse  trauma social que nos persegue por toda  a vida , então esse ideal do poeta de uma sociedade justa, igualitária,  é uma utopia, e é da utopia que naturalmente vem a nossa inspiração, dai ser poeta frustrado. Por outro lado,  é mesmo pela insatisfação de ser parte da BJLA , que não  realizava naquela altura os nossos sonhos enquanto jovens poetas. Isso causou muitas frustrações.

 

Sabemos que tem formação em literatura . Faz mais de uma década que o país produz licenciados e mestres em literatura, tanto em línguas portuguesa como africanas. Acredita que tem jogado um papel fundamental para a popularização da poesia africana?

Felicito a ideia da implementação da Faculdade de Letras e Humanidades, antes unida à de Ciências Sociais, porque trouxe um conjunto de angolanos em matérias ligadas à literatura. Nós passamos por lá, muito embora o nosso talento pela literatura seja de criação e não de estudos. Foi muito bom porque a nossa literatura começou a ser mais falada, mais analisada. Mas, se podermos fazer um balanço, eu dou nota negativa porque a faculdade já existe por ai há dez anos e ainda assim são muito poucos os estudantes especialistas, licenciados ou mestres, que publicam ensaios literários. Uma obra literária é muito mais reconhecida e mais lida e valorizada quando a esse olhar crítico dos estudiosos, por via do ensaio.

Eu penso que a geração de angolanos que vai para a Faculdade de Letras e Humanidades vai apenas à busca de um diploma para outros fins e não naturalmente para terem a produção literária como instrumento de trabalho e acompanhar atentamente o universo literário. É preciso pegar na obra montar e desmontar e assim a literatura angolana vai crescendo do ponto de vista da criação. A Faculdade de Letras e Humanidades e a Faculdade de Ciências Sociais são bem-vindas, mas é necessário que todos aqueles formados por essas faculdades comecem a trabalhar naturalmente naquilo que estudaram, aplicando os conhecimentos na vida real.

 

Parece que o entrave da língua é o primeiro a ser apontado, quando se justifica a ausência do intercâmbio com países vizinhos e irmãos, como os Congos, Namíbia , Zâmbia. É um argumento que se justifica?

Sim, porque a língua é o principal instrumento de comunicação, quer oral, quer escrita. Portanto, a língua tem muito a ver com a identidade cultural, mas e necessário que um escritor por mais que ele seja nacional de um certo país tenha sensibilidade universal, naturalmente deve fazer algum esforço em dominar pelo menos a possibilidade de entender as principais línguas, como o inglês e o francês, não na tentativa de diminuir outras. Isso é uma realidade, porque é muito mais fácil as nossas obras circularem em Portugal no Brasil, do que em relação aos Congos. Na Nigéria ou Namíbia. Na Nigéria há prémio Nobel de literatura, são literaturas muito ricas, tal como a nossa, porque somos de literatura oral, com uma riqueza cultural muito forte. Traduzindo essas obras para o inglês, francês ou espanhol, o mundo consegue nos perceber naturalmente do que nos perceber conforme eles escreveram através do acidente histórico que foi a colonização. Acho muito importante que as editoras, pelo imperativo comercial, naturalmente devem contratar tradutores especialistas para traduzirem as obras e as obras circularem e vice-versa.

Quem sabe assim surja um colóquio ou um congresso de escritores africanos, e não só como costuma haver, limitados pela língua portuguesa. Acho que seria bom um congresso de escritores africanos e depois convidarmos alguns países para as devidas abordagens. O jovem escritor nigeriano quando está a escrever, ele escreve a pensar que não esta a escrever para si, como nigeriano, mas sim para o jovem angolano , para o jovem congolês, jovem de Cabo-Verde e assim a literatura vai se desenvolvendo, a desempenhar a sua função de humanizar, de informar e formar e não excluir, aliás os escritores escrevemos para isso, para quebrar essas barreiras. Quando digo a não exclusão refiro-me só às línguas estrangeiras, nas nossas próprias línguas também, porque o escritor tem essa responsabilidade de valorizar, preservar as línguas nacionais

 

Como olha para o legado da poesia africana?

É boa. Porque a poesia tem essa função de deleitar e automaticamente de despertar. E saindo da oralidade, que é dali onde começa a nossa literatura, se considerarmos que um provérbio é um poema sintético ou as epopeias que são poemas longos. Mas a nossa literatura considerada moderna, escrita muito antes também do surgimento da obra de José da Silva Ferreira, com "Espontaneidades da Minha Alma” que procurou exaltar mais a beleza da sua terra, ser muito mais intimista do que olhar para a realidade do seu povo, como por exemplo Agostinho Neto e outros da geração 50, que olharam para seu povo como um elemento principal para produzirem as suas literaturas para o despertar da consciência e revindicação da liberdade até ao alcance da independência. Então, penso que é uma literatura muito rica por se preocupar com o homem. A literatura tem essa função de humanizar, de denunciar algumas atrocidades, algumas mazelas e a nossa literatura por estar rica com esses elementos todos eu considero uma das poesias que toca mas a sensibilidade universal. É quase impossível ler Agostinho Neto e não sentir-se comovido pela carga de humanidade que ele colocava nos seus poemas. Temos uma poesia muito rica.


"Vamos aprovar o manifesto da BJLA, que até agora nunca existiu”

A BJL tem abraçado esse ideal poético?

Sim, porque Agostinho Neto é o patrono da BJL. Aliás, nós brevemente estaremos no Huambo no segundo encontro do Brigadismo Literário, e vamos aprovar o manifesto da BJLA, que até agora nunca existiu, mas que naturalmente é baseado no pensamento literário de Agostinho Neto. Ou seja, as linhas serão aquelas de acordo com o ideário da poesia de Neto, que invoca a justiça, o despertar da consciência e a promoção de um mundo cada vez melhor.

 

Lançou recentemente um ensaio sobre a dimensão anticolonialista da poesia de Agostinho Neto…

Eu me considero um netista. Como já tenho obras poéticas inspiradas em Neto, então decidi fazer este ensaio, para demonstrar que toda a poesia de Agostinho Neto foi voltada a uma causa, que tinha como base a independência de Angola, de África e a liberdade de todos os povos oprimidos. Isso é uma literatura de combate. É muito notório encontrar o apelo à luta, a revolta e a valorização cultural em toda a poesia de Neto. O livro começa a partir da África pré-colonial, passa pelos primeiros contactos e a instalação do catolicismo, o drama da escravatura, o maior genocídio da história da Humanidade e a revolta anti-colonial.

 

Assume-se um seguidor da poesia panafricanista. A poesia ainda luta?

Luta, e deveria lutar mais. Cada sociedade produz as suas próprias mazelas. Poeta e sociedade devem caminhar juntos, que fala por aqueles que não têm voz, como bem dizia o poeta Arlindo Barbeitos. É necessário que os poetas coloquem a sua inspiração a favor de causas nobres. Escritor é livre de escrever o que quer, isso é verdade. Mas a poesia tem de ter voz, para desempenhar a sua verdadeira função. Deve questionar a condição humana, independentemente de ser poesia lírica ou amorosa, onde também há os desencantos da vida.

 

Escreveu "Poemas de um Tempo de Sensura”. Há liberdade na literatura, sobretudo na poesia?

Poemas de um Tempo de Sensura porque houve uma altura em que a sociedade angolana parecia dividida entre os chamados "revus” e "bajus”. Uma crítica ou uma exaltação já era taxada, e nós, enquanto intelectuais, enquanto poetas, como temos sempre alguma coisa a dizer, nos víamos sufocados dentro desta sociedade. Nesta altura eu fiquei inspirado e escrevi um conjunto de poemas que analisam essa postura da sociedade anti-democrática. Revus e bajus causava estigma, por isso escrevi "sensura”, como uma provocação ao leitor e uma busca da própria censura. O poeta é um intelectual rebelde, que luta diariamente pela sua liberdade.

 

Que tipo de poesia tem estado escrever nestes dias?

Ainda é segredo. Neste período estou a ler mais. Mas já tenho idealizado um livro, que talvez venha a ser um diário. Porque sinto que a minha vida está a mudar de fase, e o diário será em homenagem a um grupo de amigos que hoje já não se encontram no mundo dos vivos mas que contribuíram bastante para dar um outro olhar à juventude angolana. 

 

Um dos grandes empecilhos dos novos autores prende-se com a falta de patrocínio. Como está a Brigada Jovem de Literatura neste capítulo?

A falta de patrocínio para dinamização das actividades literárias, bem como para publicação de obras literárias é um facto. Existe a Lei do Mecenato e parece-me que já está regulamentada, mas há ainda um cepticismo por parte das grandes empresas potenciais patrocinadoras em olhar ou servir-se desse instrumento legal quando recebem solicitação de apoio. Em termos de publicação de obras literárias, aconselhamos os nossos membros a concorrem nos prémios que o Estado criou para o incentivo da criação literária, mas não é suficiente devido à demanda e nem sempre os escritores querem fazer da sua habilidade uma conquista de prémio, mas passar apenas a sua visão do mundo através da escrita criativa. A Brigada Jovem de Literatura de Angola sobrevive através de si própria, obviamente, do esforço dos seus membros, já que é uma Instituição literária com personalidade jurídica ligada à filantropia. O ano passado no âmbito das festividades do centenário do poeta maior e fundador da nação angolana, Dr. Agostinho Neto, patrono da BJLA, tivémos o respectivo e apoio e todos verificaram que doponto de vista do impacto cultural da BJLA na sociedade foi muito notório, de Cabinda ao Cunene e de Benguela ao Moxico. Aliados aos nossos próprios esforços como instituição literária sem fins lucrativos e um pequeno apoio permanente do Estado ou das instituições públicas e privadas, obviamente que serviremos melhor.

 

Enquanto presidente da Brigada Jovem de Literatura, que balanço faz do seu tempo a conduzir os destinos desta instituição literária? Há desafios a serem cumpridos? Há entraves? Há metas anuais?

Um balanço positivo, porque conseguimos primeiramente legalizar uma Instituição que se constituiu como Brigada Jovem de Literatura de Angola em 1987, mais vivia sem bilhete de identidade e com uma pobreza de publicação de livros com a sua própria chancela. Foi Brigada Jovem de Literatura de Angola mais não era funcional em todas as províncias e no nosso mandato fizémos a ligação das 18 províncias e hoje somos de facto Brigada Jovem de Literatura de Angola. Em menos de dois anos produzimos oito títulos. Uma Colectânea de Poesia Geração que lê - poetas da Nova Angola, Ressurreição Poética, Voos, Dedos - um canto as aves africanas, Lábio da Alma e outros que serão publicados ainda esse ano. Esse é o verdadeiro papel da BJLA emancipar actividades literárias no seio de jovens e publicar as suas obras literárias.

Há desafios a serem continuamente cumpridos e estamos preparados para tal. As dificuldades são próprias de existirem no exercício das nossas funções, mas elas nos tornam grandes, por isso, os entraves nos fortalecem. Sim, há metas anuais. Temos um Plano de Mandato essa é a nossa bússola orientadora.

 

A Brigada Jovem de Literatura tem vindo a realizar homenagens, e a última edição teve como convidado o escritor Carmo Neto. Fale-nos um pouco desse projecto…

Sim. Devemos homenagear sempre aqueles que contribuem positivamente no crescimento dos jovens. Nós criamos o Projecto Encontro Intergeracional entre escritores da nova e velha geração com esse propósito. Reconhecer os nossos precursores e beber deles a experiência. No I Encontro nós homenageamos presencialmente os nossos fundadores do brigadismo literário, como Conceição Cristóvão, António Fonseca, Luís Kandjimbo, Irene Neto e ainda José Luís Mendonça.

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