Cultura

Carlos Lamartine confirma o seu lado de pesquisador

Analtino Santos

Jornalista

Carlos Lamartine, no ano em que completou 80 anos, depois do reconhecimento como investigador e pesquisador cultural, mostra a sua veia de senhor das letras fora da composição musical. O seu primeiro livro, “Ser Poeta em Harmonia e Silêncio”, foi lançado na Liga Africana a 29 de Março, sob a chancela da Editora Mayamba.

17/09/2023  Última atualização 09H22
© Fotografia por: Luís Damião | Edições Novembro

"Semba: Perfil Histórico” é o resultado de um protocolo entre a Imprensa Nacional e a UNAC¬-SA (União Nacional dos Artistas e Compositores - Sociedade de Autores) assinado a 18 de Outubro de 2022. Setembro foi escolhido por unanimidade pelas duas partes para o lançamento do livro porque no dia 13 a Imprensa Nacional comemorou 178 anos e a UNAC-SA, no dia 9, assinalou o seu aniversário.  

O evento foi muito concorrido. Contou com a comparência de membros das duas instituições, músicos, escritores, pesquisadores, estudantes, amigos, familiares e outros interessados. Zeca Moreno, presidente cessante da Comissão Directiva da UNAC-SA, e Manuel António, administrador executivo da Imprensa Nacional, falaram em representação das duas instituições e foram unânimes quanto à importância do protocolo para um maior conhecimento e contributo à cultura angolana.

Zeca Moreno frisou que "as obras de Carlos Lamartine, quer na música, quer na escrita, servem de ferramentas para ajudar a preservar a cultura angolana”.  Manuel António   afirmou que a Imprensa Nacional quer ajudar no desenvolvimento da cultura, com um plano editorial para a produção de obras literárias e científicas.

Coube a Óscar Guimarães, presidente da Liga Africana, associação cultural e política, fazer a apresentação do livro, depois de ter sido convidado a ser o revisor do mesmo. "É uma obra profunda (...). Ler esta obra de Carlos Lamartine é fazer uma incursão ao passado longínquo e recente da música e da História, no geral, e em particular da cidade capital que o viu crescer e que ele viveu”.

Ao longo do pronunciamento, Óscar Guimarães provocou a plateia ao evocar nomes de antigos bairros de Luanda, nomeadamente, Musseque Braga, Musseque Burity, Bairro do Café (actual Maculusso), Bairro da Viúva, Zona dos Eucaliptos, e de personagens como Arara Cuara, Epilanjip Pereira ou Santos Quipexe, e outros. No final felicitou a Imprensa Nacional pelo patrocínio tão necessário aos nossos escritores, jovens e consagrados, e incentivou Lamartine a continuar a escrever para que não se perca o espírito inovador dos angolanos nesta era que considerou "da desleitura”.

Para Eliseu Major, secretário-geral da UNAC-SA, o protocolo surge no âmbito da responsabilidade social da Imprensa Nacional, que apostou na edição de obras relacionadas às artes e à cultura nacional. Eliseu Major viu um simbolismo no facto de Carlos Lamartine ser a primeira aposta, porque é um dos membros fundadores da UNAC-SA, e, aos 80 anos de idade, pode servir de motivação para outros cantores, compositores e amantes das artes escreverem e apresentarem obras com conteúdos de qualidade.

Pertença exclusiva do povo angolano

Na sessão de perguntas e respostas, Carlos Lamartine assumiu que o Semba "é uma particularidade artística que é pertença exclusiva do povo angolano”. Defendeu uma maior e melhor inventariação do Semba, assim como lamentou a falta de estudos e de maior valorização desse estilo musical.

Ao longo das 345 páginas de "Semba: O Perfil Histórico”, o autor apresenta as principais características do Semba como música, dança, canto, ritmo e género, assim como elemento de várias representações artísticas. Por outro lado, Lamartine defende que existem factores sociais, culturais e aspectos sociológicos, históricos e geográficos que definem o que é o Semba. 

Com a obra, o autor pretende homenagear os grandes artistas, os criadores e executantes dos ritmos e cantares do Semba, assim como apresentar desafios para a compreensão e o reconhecimento do seu passado e a sua valorização na modernidade. Por esta razão, Carlos Lamartine apresenta cinco capítulos "com os quais se demonstram as variantes e finalidades de cada uma das variantes e as finalidades de cada uma das vertentes do Semba, para a sua contemporaneidade”.

O livro abre com "Ideias gerais sobre as primeiras relações entre ngolanos e portugueses, no âmbito cultural”, capítulo em que se apresenta uma abordagem historiográfica sobre o movimento cultural e artístico entre os dois lados e faz-se uma incursão ao carnaval do passado. Os capítulos seguintes versam sobre "Semba: definição, classificação e estruturas. Danças e cantares. A Massemba e a Rebita. Os movimentos dos Kilapangas e as danças de Cabinda”; "Tempos das turmas. Definição, denominações e referenciais”; "As variantes rítmicas do Semba. Os principais conjuntos e artistas. Alguns temas e os principais locais de dinamização cultural e artística deste período” e encerra com "O Semba: Estádio actual de desenvolvimento, correntes de influências”.

Carlos Lamartine revelou que a maior motivação para a obra surgiu quando a cantora e advogada Patrícia Faria o convidou para um simpósio sobre o Semba, realizado na Casa de Cultura Njinga a Mbande, no Rangel. "A preparação tem mais de cinco anos, (período) em que venho discutindo sobre o Semba, mas foi com o workshop realizado no Centro Cultural Njinga a Mbande que comecei a estruturar o esboço. Depois entreguei  ao Zeca Moreno e ao Eliseu Major que apreciaram, e, de seguida, apresentaram e estabeleceram uma parceria com a Imprensa Nacional”, assim detalhou o autor os contornos da publicação do livro.

Do e sobre o livro

"Segundo narrativas históricas, o Semba tem origens nas manifestações recreativas realizadas pelas tribos de Samba e Tangu, comunidades populacionais oriundas dos povos Kinzary Nzary e Reino de Matamba”.

"O estatuto social do Semba foi obra de expansão com a sua generalização pelas migrações das populações, indígenas e assimilados, para os territórios comunitários de Angola (actual) nas suas mais diversas intermediações sociológicas e culturais”. (In  "Semba: Perfil Histórico”, de Carlos Lamartine).

"Para mim, o Semba é a mãe do cancioneiro popular luandense. Tracejado no ‘Kuboca’, canto dolente intercalado com o adocicado assobio do pescador. Definido pela cadência rítmica dos conjuntos nos salões dos bairros de Luanda, incluindo o Marítimo da Ilha. Ouve-se... sente-se no frenético canto: batuque do xinguilamento axiluanda. Na percussão carnavalesca do União Mundo. O sublime da exibição nas marginais, fora delas. O meu Semba cobra toques coreográficos ao passista Ilhéu nas sentadas familiares. Este é o meu Semba”.  (Texto de exaltação ao Semba, de Tonicha Miranda para Carlos Lamartine).

 
Rico percurso

Carlos Lamartine Santos Costa nasceu em Benguela a 29 de Março de 1943, mas foi no Marçal, em Luanda, onde deu os primeiros passos musicais. Foi o regente principal do Grupo Coral Gigante do acto da proclamação da Independência de Angola, no dia 11 de Novembro de 1975, e do Coral no acto da tomada de posse do 1º. Governo da República Popular de Angola, que teve lugar na Câmara Municipal de Luanda. Antigo adido cultural na República Federativa do Brasil, Carlos Lamartine é quadro reformado do Ministério da Cultura.

Teve várias distinções, como o Prémio Nacional de Cultura e Artes na categoria de Música, em 2017, e Prémio Carreira no AMA (Angola Music Awards). Foi ainda homenageado no Festival da Canção de Luanda da LAC, em 2013, numa edição onde os concorrentes interpretaram temas de sua autoria. Em Abril deste ano (2023), lançou o álbum onde constam os discos "Memórias” (1997), "Histórias da Casa Velha” (2001), "Cidrália” (2001), "Frutos do Chão São Coisas Nossas” (2005) e "Caminhos Longos” (2007). O artista e compositor marcou a época da canção revolucionária, tendo então gravado "Um single”, em 1970, com a etiqueta "Ngola”, onde constam as canções "Bazooka” e "Jesus dialá diá kidi”. Em 1974 gravou o LP "Angola Nº. 1”, com o conjunto "Os Merengues”.

Tem temas intemporais como "Pala ku uabesa ó muxima”, "Cidrália”, "Guia Para a Libertação de África”, "Zuatenu Milele ya Xikelela”, "Caravana para Delfina”, "Semba do Prenda”, "Kamuine”, entre outros. Fez parte de algumas turmas, com destaque para os "Kissueias” com Barceló de Carvalho (Bonga), Nelito Soares, Nando Kajibota e outros jovens do Marçal. Mais tarde teve passagens pelos "Águias Reais”, "Os Merengues”, "Os Kiezos”, "Coração de Angola”, entre outros conjuntos sonantes da música angolana.


Na origem da edição de livros em Angola

A Imprensa Nacional é actualmente uma empresa pública tutelada pelo Secretariado do Conselho de Ministros que tem na publicação do Diário da República o seu principal objecto social.  A Imprensa Nacional, com a publicação do primeiro Boletim Oficial de Angola em 1845, está na origem da imprensa em Angola. De acordo com os investigadores António Hohlfeldt e Caroline Corso de Carvalho, num artigo publicado, em 2012, na Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, "O Boletim Oficial de Angola, como de resto se verificou com alguns dos publicados em outras províncias, com excepção de Goa, foi, no início, o único órgão de Comunicação Social existente. Além das disposições legais, divulgava também notícias e anúncios (LOPO, 1964), que se exteriorizavam em prosa literária e em versos de maior ou menor inspiração, ou de ideais sonhados”.

Citando Júlio Castro Lopo (1964), os citados investigadores referem que no Boletim Oficial se "divulgavam  avisos de rifas de objectos que, entre si, organizavam os moradores de Luanda; declarações de credores a ameaçarem os devedores (..); participações de casamentos, nascimentos e óbitos; declarações de comércio ao público geral, etc.; avisos de partidas e chegadas de navios e outras embarcações; avisos de pessoas partindo para o Reino ou para o Brasil, que assim se despediam de conhecidos e amigos, constituíam também o seu conteúdo”.

Em 1847 a Imprensa Nacional volta a fazer história com a publicação do primeiro livro em Angola: "Espontaneidades da Minha Alma: Às Senhoras Africanas”, de José da Silva Maia Ferreira. Logo a seguir surgiriam no território de Angola toda uma variedade de publicações que deram substância a uma das fases mais dinâmicas e inspiradoras do jornalismo então dito angolense.

Em 10 de Novembro de 1975, a Imprensa Nacional deixou de editar o Boletim Oficial para no dia seguinte, 11 de Novembro, publicar o primeiro Diário da República Popular de Angola.

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