Entrevista

Boaventura Cardoso: “A missão do escritor é escrever sobre aquilo que o inquieta e desestabiliza”

Isaquiel Cori

Jornalista

Um dos escritores angolanos mais bem referenciados pela crítica em Angola e no estrangeiro, Boaventura Cardoso acaba de ver reeditado o seu romance “Maio, Mês de Maria” (Mayamba), sendo que a sua mais nova obra publicada é “Margens e Travessias”, romance publicado pela mesma editora. (“Margens e Travessias” conta desde a semana passada com edição brasileira, com chancela da Kapulana).

28/05/2023  Última atualização 05H57
© Fotografia por: Dombele Bernardo | Edições Novembro

Entrevistado pelo Jornal de Angola, o escritor fala detalhadamente sobre a sua obra, incluindo as estratégias narrativas. Interpelado sobre o 27 de Maio de 1977, que teve tanto impacto na sua família e na sua obra romanesca, Boaventura Cardoso afirmou: "Pessoalmente, fui considerado em certos meios como suspeito não  só por conta do meu irmão (Luís dos Passos), mas também porque me dava, antes do dia 27  de Maio, com pessoas que viriam a ser consideradas fraccionistas”.  Questionado se tem contactos com outros escritores de países africanos, disse: "Nós estamos  em África mas às vezes parece que não estamos. Não sabemos nada do que  se passa no continente em matéria de cultura e artes”


A sua obra romanesca abarca praticamente a história de  Angola desde antes da independência até períodos mais recentes, com um  pendor acentuado de crítica política e social. Entretanto fez carreira política nos escalões mais altos do poder. Como é que conseguiu  sobreviver politicamente num sistema que desnudou, às vezes  impiedosamente, nos seus romances?

Exerci vários cargos na hierarquia do Governo. Tudo isso  passa, mas o escritor permanece. O meu estatuto de dirigente político  influenciou a minha escrita literária, na medida em que, por esse facto,  passei a dominar melhor certos aspectos da vida social e económica do país. Mas a  política não corrompeu o escritor. Antes pelo contrário; se há algo que, enquanto político, não posso dizer, como escritor digo-o, não diria  sem qualquer constrangimento, mas utilizando os  artifícios  que a narrativa literária me oferece. A missão do escritor é escrever sobre aquilo que o inquieta e desestabiliza. Só escrevo sobre o que, de  um ou outro modo, me dói. De qualquer modo, se escrever é exprimir algo  também implica deixar de exprimir alguma coisa. E nunca fui incomodado  por quem quer que seja pela crítica social que faço nas minhas  obras. Essa liberdade ninguém ma pode tirar, só mesmo a morte. De  qualquer modo, interrogo-me sobre se a nossa classe política lê os  livros que os escritores escrevem. Não sei. Tenho muitas dúvidas.

 

Como é que concebe a ficção? Narrativa de presentes e/ou  futuros possíveis? Ou de passados que não tendo acontecido bem poderiam ter acontecido?

Quanto ao presente, por um lado, não me sinto motivado a  escrever sobre ele. Careço de um certo distanciamento em relação aos  factos sobre os quais quero abordar literariamente. Por outro, não me  interessa o relato o mais real possível dos factos. Às vezes questiono a  própria história ou tento mesmo corrigi-la ou enriquecê-la com novos  dados. Por exemplo, em "Noites de Vigília” desconstruo a narrativa  oficial sobre os opositores ao regime; os personagens Quinito e Saiundo,  apesar de um ser do MPLA e o outro da UNITA, são amigos de longa data e  dialogam sobre os erros do passado, ou seja, sobre as posições que os  políticos assumiram antes do alcance da paz e o consequente fim da  guerra em 2002.

 

A sua obra desfruta de uma confortável fortuna crítica,  sobretudo nos meios académicos. Sente-se criativamente influenciado pela  crítica que é feita a respeito da sua obra?

De certo modo, tendo sempre em conta o perfil do crítico ou ensaísta.

 

O seus últimos romances, incluindo "Margens e Travessias”  revelam, a par da linguagem reelaborada, estruturação complexa, de  difícil leitura para um leitor comum. Pode explicar essa estratégia de  escrita?

Nos meus últimos romances - "Noites de Vigília” e "Margens  e Travessias” - tenho vindo a enunciar mais ou menos uma escrita "desordenada” ou "sonâmbula” ditada pelo "fluxo de consciência”. É uma  estratégia narrativa na senda do que procedeu, por exemplo, James Joyce,  William Faulkner e Virgínia Woolf.

Os seus primeiros livros, essencialmente de contos,  chamaram atenção sobretudo pelo trabalho estético de recriação da  linguagem, que, por exemplo, em "A morte do velho Kipacaça”, atingiu  contornos radicais de corte com o português comum. Nos romances continua  o trabalho de recriação da linguagem mas, diríamos, de modo mais  moderado.

O que o fez "recuar” no caminho que tomava em "A morte do  velho Kipacaça”? Percebeu que iria para um beco sem saída em termos de  comunicabilidadecom o leitor?

Não, não houve recuo. O que houve foi uma mudança de  abordagem estética. Hoje estou mais atento às rupturas estruturantes do  português falado entre nós. O que mais me prende a atenção é a  construção frásica que se sedimentou por via do contacto entre a língua  portuguesa e o kimbundu, que se consubstancia em transformações no plano  vocabular, semântico e morfo-sintático no modo como falamos e até  escrevemos. Para além disso, uso recorrentemente expressões fáticas,  processos pessoais de contar estórias, como a entoação e interjeição. Na  narrativa emprego cada vez menos vocábulos e expressões em kimbundu.

Quanto à comunicabilidade com o leitor, o assunto é complexo  porque traz à colação a competência linguística do leitor. A questão é: o  leitor tem competência para interpretar textos literários? O leitor é  preguiçoso? Quem compreende, por exemplo, "Nós os do Makulusu”, de  Luandino Vieira? O leitor desiste da leitura logo nas primeiras páginas?  Porquê? Acha que o escritor devia simplificar esta ou aquela passagem?  Pois é, e aqui chegamos ao problema. Entendo que o escritor não deve  baixar a linguagem, se me permite a expressão, para ser compreendido.  Qual a solução? A resposta é: temos que elevar a competência do leitor  para que seja capaz de ler e compreender os textos de difícil leitura.

Já li três vezes "Ulisses” de James Joyce. Confesso que vou ter  que voltar a lê-lo para melhor apreender o seu conteúdo. Contudo, Joyce  é a excelência da renovação linguística que busco incessantemente.

 

Sendo um escritor bastante atento aos fenómenos linguísticos dos dias de  hoje,  acha que já se pode falar numa variante da língua portuguesa, sobretudo em Luanda?

Sim, estou muito atento. Procuro estudar e compreender  esses fenómenos que vão construindo o que poderá vir a ser considerado  como a variante da língua portuguesa falada em Luanda. Há quem defenda  que estamos já em presença de um "português angolano”, certamente para  escamotear o seu fraco ou nenhum domínio da língua portuguesa. É  prematuro fazermos esse tipo de afirmações sem que linguistas e  sociolinguistas tenham elaborado estudos científicos sobre a matéria. De  qualquer modo, acho que estão a emergir variantes do português falado  em Angola, não só em Luanda como no resto do País.

 

As evocações ou alusões alegóricas aos acontecimentos do 27  de Maio de 1977, são recorrentes na sua obra, nomeadamente em "Maio,  Mês de Maria” e, com nota mais autobiográfica, em "Margens e  Travessias”. Sente o 27 de Maio ainda como uma ferida aberta?

Sim. Há alguns receios, dúvidas, um certo retraimento das  pessoas em tocar neste tema ainda tabu. Mas compreendo que isso é um  processo que vai durar ainda algum tempo. De qualquer modo, acho que a  catarse já se está a operar mercê do gesto magnânimo do Presidente João  Lourenço em relação às vítimas e respectivos familiares. Há hoje um  ambiente mais propício a abordagem desse "dossier”. De outro modo, não  aceitaria conceder-lhe esta entrevista.

 

Agradeço e aproveito para fazer-lhe uma pergunta muito pessoal. Tem um irmão, Luís dos  Passos, que teve de viver durante anos escondido por causa da  perseguição decorrente do 27 de Maio. Como isso afectou a sua família e a  si, pessoalmente?

Foi dramático. A minha mãe sofreu muito com essa situação;  ela adoeceu para nunca mais voltar a ser a mulher que fora noutros tempos  - enérgica e sempre em movimento. Convivemos com essa situação durante o  tempo de ausência do meu irmão - longos doze anos e sete meses! Uma  eternidade.

Pessoalmente, fui considerado em certos meios como suspeito não  só por conta do meu irmão, mas também porque me dava, antes do dia 27  de Maio, com pessoas que viriam a ser consideradas fraccionistas. Cito,  de entre os que já não estão entre nós, o próprio Nito Alves, o Juca Valentim,  o Betinho e o Mbala Neto. Para além desses, uma dezena de amigos que  tinham sido presos. Só por isso, esperava ser preso a qualquer momento.  Aliás, naquele tempo, para ser preso bastava ser parente de um declarado  fraccionista, ter tido alguma desavença com um membro da Segurança ou  possuir um bem - um carro, uma boa casa, por exemplo - que fosse cobiçado  por um elemento da secreta. Tive por isso muita sorte.

A foto do meu irmão aparecia em vários pontos da cidade nos cartazes que apelavam a que ele, Nito Alves, Bakalof e outros fossem imediatamente apanhados. Quando chegasse ao serviço (Conselho Nacional  de Cultura, órgão mais tarde substituído pela Secretaria de Estado da  Cultura), deparava-me logo à entrada com o Jornal de Parede que  estampava o referido cartaz. Sofria em silêncio.

A minha proposta para nomeação como Director do INALD  (inicialmente designava-se por Instituto Angolano do Livro), datada de  Janeiro de 1977, ficou em "banho-maria” na direcção do Partido durante  muito tempo, por conta de uma denúncia. Um camarada que foi meu vizinho  no Bairro Kassenda, informara ao Partido que eu mantinha ligações  estreitas com os fraccionistas Galiano, Nado, Juca Valentim, Nito Alves e  outros. Tudo mentira. Nunca participei de reuniões conspirativas contra  o Governo, muito menos de acções preparatórias para o que viria a ser a  tentativa de golpe de Estado de Maio de 1977.

Entretanto, só em 1980 a minha nomeação como director do INALD  viria a ser publicada em Diário da República, após ter trabalhado  efectivamente como director dessa instituição durante três anos, com a  categoria de Técnico Principal.

Em 1991, quando o espectro do fraccionismo parecia estar  definitivamente enterrado, um alto dirigente do Partido, conhecido pelas  suas diatribes, insinuou que eu estaria por detrás da formação do PRD,  liderado pelo meu irmão, Luís dos Passos. A verdade é que continuo  até hoje fiel ao meu Partido MPLA, em que, aliás, fui membro do seu Comité Central, agraciado com a Medalha de Militante de Vanguarda, de entre  outras.

 

A Mãe e as suas cartas, do romance "Margens e Travessias”, é a mãe do autor? É uma homenagem ficcional à sua mãe?

Sim, é a minha mãe. Mas a homenagem é extensiva a todas as  mães que perderam os seus filhos como consequência do que ocorreu  depois daquele fatídico dia. Aliás, ela, minha mãe, diz exactamente o  seguinte: "... levo comigo a dor das mães sofredoras, embora a dor delas  seja maior; Fátima trouxe-me de volta o meu filho”.

 A obra  de Boaventura Cardoso trabalha e promove muito a ideia de identidade  nacional angolana, seja ao nível da linguagem seja das abordagens  temáticas.

O que tem a dizer relativamente aos que defendem o fimdas  identidades?

Acho que pensar no fim das identidades é uma utopia. É  certo que o processo de globalização traz benefícios incomensuráveis,  mas também tende a uniformizar e a homogeneizar as culturas em geral; o  impacto sobre as culturas ditas periféricas é arrasador. Temos de estar  atentos e vigilantes para que não percamos a nossa identidade cultural.  Em Estocolmo, em 1998, numa Conferência sobre Políticas Culturais, foi  dito que "não podemos lutar contra a mundialização, mas podemos guiá-la e  reduzir o seu impacto negativo”. Como? Eu responderei recorrendo a uma  frase simples do grande escritor russo, Leão Toltstoi, que faleceu no  distante ano de 1910, muito antes, portanto, da era da globalização.  Dizia, então, o autor do mundialmente conhecido romance "Guerra e Paz”:  "Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia” . É o que cada  povo tem que fazer para a salvaguarda da sua identidade cultural.

 

De que outros escritores se considera, de uma maneira ou  de outra, tributário ou pelos quais, pelo menos, manifesta uma grande  admiração?

A lista é extensa quanto aos estrangeiros. De entre  vários, destacaria os seguintes: Gabriel Garcia Marquez, Mário Vargas  Llosa, João Guimarães Rosa, James Joyce, William Faulkner, Marcel  Proust, Herman Melville e Julio Cortázar. Dos nacionais, apenas um: o  mestre Luandino Vieira.

 

Os jovens escritores queixam-se que os escritores mais velhos não fazem questão de os ler.
É o seu caso?

Confesso que sim mas no que toca apenas à prosa. É que&nb

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