Sociedade

Artesãos ponderam abandonar o Centro de Artes

Pelo menos 150 dos 400 artesãos que ocupam o espaço semiaberto do Centro de Artes do Museu da Escravatura resistem ao tempo.

11/02/2021  Última atualização 15H35
Artífices que idealizavam um futuro melhor © Fotografia por: DR
A maioria já desistiu e procura por outros locais, na cidade de Luanda, para comercializar as peças de arte. Uns adoptaram o sistema de dormitório no local, uma das soluções encontrada para evitar os gastos com os táxis. 
Além da distância, que constitui um dos vários obstáculos para os criadores, apreciadores de artes, compradores e turistas, surge outro problema relacionado com o aparecimento constante de cobras, que invadem o local e se escondem entre as obras e bancadas.A falta de balneários públicos obriga os artesãos a fazer as necessidades biológicas no matagal, nos arredores do Centro de Artes. Apesar de ser uma zona turística instalada ao longo do litoral, os artesãos reclamam da forma como a mesma foi projectada para o tipo de actividade por eles desenvolvida.
Contrariamente ao Centro de Artes, que se encontra às moscas, a zona balnear do embarcadouro do Mussulo e as barracas de comes e bebes são muito frequentadas. Segundo a maioria dos entrevistados, em Luanda há toda a necessidade de alargamento das zonas de realização de feiras permanentes, como a da antiga Feira do Benfica, transferida para o Centro de Artes, um espaço sem condições situado junto à zona de protecção do Museu da Escravatura, bem como as da Ilha de Luanda, localizada no bairro Lelo, e o Mercado dos Artistas, denominado "Dona Xepa”, no Patriota. Projectos promessas
O mestre Peter Mbuende Mapeloka recorda com tristeza as dificuldades que passam nas actuais instalações. Do passado restam as melhores lembranças do antigo Mercado de Artesanato de Benfica. O artesão lamenta o facto de os vários projectos anunciados no passado, sobre  a edificação de um grande mercado no Benfica, em benefício dos artesãos, não passarem de promessas. A mágoa do mestre Peter sente-se no desabafo melancólico, bastante expressivo no seu semblante triste.
Os artesãos desejam regressar ao antigo espaço, supostamente vendido a um particular, ou na pior das hipóteses abandonarem o local onde se encontram, se não forem melhoradas as condições para o exercício da sua actividade, afirmou o artesão, visivelmente agastado com a situação, que em tom de desabafo exprimiu-se nos seguintes termos: "somos os enteados das artes”.Hoje, os mesmos artesãos que idealizavam um futuro melhor para as suas famílias lutam pela sobrevivência, num quotidiano de amarguras, lamentações, tristeza e sofrimento. Vendas Baixas
A venda de artefactos, no Centro de Artes do Museu da Escravatura, em Luanda, baixou muito, em comparação com o movimento comercial que havia na antiga praça do artesanato do Benfica, reconheceu o artesão Paulo José, também conhecido como "Mestre Nzau”.
"A arte feita pelo artesão é a mais prejudicada e abandalhada. No antigo local, era muito mais fácil os turistas nacionais e estrangeiros chegarem até lá”, referiu Nzau, que prefere dormir no local para economizar o pouco dinheiro que ganha.
"Estou há um mês a dormir aqui. Vivo no Kikolo. O dinheiro do táxi não chega para fazer o percurso todos os dias”, justificou, para de seguida sublinhar que a arte feita no século XXI, fora do centro da cidade, não existe. "Isso é matar a cultura de um povo, a sua essência, a sua originalidade, criatividade e identidade cultural”, disse.
Atirados para o buraco da cobra
Pelas condições de que dispõem hoje, o mestre José Nkosi manifesta desagrado e fala em falta de respeito à classe artística. "Tudo isso que estão a fazer com os artesãos, é prova de que ainda estamos longe de valorizar as matrizes da cultura nacional. Os interesses individuais continuam a sobrepor-se aos colectivos, o que tem ajudado a aniquilar as mais variadas manifestações culturais e artísticas no país. Os próprios turistas reclamam”, desabafou.
"Fomos atirados para o buraco da cobra, onde cada um safa-se como pode. Isso não se faz. Estamos agastados e já não sabemos mais a quem recorrer para nos ajudar a resolver esse problema, que se arrasta há anos”, lamentou.O sol e a chuva também provocam dores de cabeça aos artífices, que têm a missão de transformar a madeira em objectos de arte. "Temos peças que quando apanham chuva e sol, somos obrigados a repintar para manter o brilho. São prejuízos incalculáveis que as autoridades não têm noção”, indiciou. 
José Nkosi acrescentou que a realidade actual, no Museu da Escravatura, é contrária ao do antigo espaço (Praça do Artesanato de Benfica) cuja localização facilitava o acesso dos clientes ao local, com destaque para os portugueses, brasileiros e chineses. "Contamos a história através da arte, por este motivo deve existir uma maior protecção desta classe artística, porque a marca de um povo reflecte-se na sua cultura”, destacou. 
O artesão assegurou que, actualmente, muitos colegas abandonam o Centro de Artes do Museu da Escravatura. Devido à distância, a maioria prefere regressar às antigas instalações do Benfica. "O local continua encerrado e ninguém sabe dizer, até hoje, a finalidade  daquele espaço. Mas porquê não podemos voltar para lá se continua desocupado?”, questiona. Turismo cultural

As criações expostas no local despertam a curiosidade de duas crianças venezuelanas. Acompanhadas pelos seus progenitores, estavam visivelmente animados. Tocavam a marimba e o batuque em exposição numa das bancadas do Centro de Artes do Museu da Escravatura. Naquele dia, o pai, Deubert Zabela, e a mãe, passaram um dia diferente ao lado dos pequenos.

Em Angola, desde 2019, por motivos de trabalho, Deubert Zabela deslocava-se pela primeira vez ao mercado do artesanato, onde comprou uma peça do pensador, um embondeiro e uma zebra como recordação. O cidadão de nacionalidade venezuelana reconheceu que na feira há coisas muito bonitas, apesar de lamentar o facto de o mercado estar muito distante do centro da cidade, o que dificulta o acesso ao mesmo. De acordo com o turista, locais como o Centro de Artes deviam ficar mais próximos do centro da cidade ou em zonas como aeroportos e áreas comerciais de referência, para permitir que os visitantes nacionais e estrangeiros adquiram as peças de artes, com maior facilidade. Na Ilha de Luanda

Matumona António, coordenador da Feira de Artesanato localizada no triângulo, à entrada do bairro Lelo, na Ilha de Luanda, disse que os artesãos expõem uma grande diversidade de peças de artes, como bustos, embondeiros, pensadores, estatuetas com imagens da palanca negra gigante, rinocerontes, elefantes, caçadores, e quadros que representam a fauna e flora de Angola.

 Em relação aos preços das obras, disse, variam de 500 kwanzas a 200 mil kwanzas. Matumona António disse que os artesãos que comercializam peças de artes, desde 2006, naquele local, já foram colocados em locais próximos do Hotel Panorama, da Marinha de Guerra e do Jango Veleiro. "Estavam a decorrer obras de alargamento da estrada e houve toda a necessidade de saírem daqui. Neste momento, estamos à espera de um local definitivo. Às vezes ficamos uma semana sem vender nada por culpa da Covid-19”, disse. 

De acordo com o mestre Matumona, a ideia de que apenas os estrangeiros compram peças de arte faz parte do passado, uma vez que são os cidadãos nacionais que mais compram. "Antes da Covid-19, podia sair daqui com cem mil kwanzas por dia. Mas agora, há dias que só levamos 10 mil kwanzas para casa. O espaço abre ao público, de terça-feira a sábado. Valorizar os criadores

Em declarações ao Jornal de Angola, o secretário-geral da Associação Provincial dos Artesãos de Luanda (APAL), Nlandu Job, explicou que nos últimos tempos os associados sentem-se "excluídos”, apesar de a sua arte servir de referência na divulgação do acervo cultural do país, através da produção de peças que retratam o modo de vida dos povos, fauna e flora. 

De acordo com o secretário-geral da APAL, a criação de um Prémio Nacional do Artesanato ou a inclusão como disciplina no Prémio Nacional de Cultura e Artes é uma reivindicação manifestada há anos pelos artesãos da capital do país.Nlandu Job sugere a realização anual de uma Feira Nacional das Indústrias Artesanais, que podia fomentar o artesanato no país, através de exposições, oficinas demonstrativas, venda e troca de experiências com outras realidades socioculturais. Os artesãos, prosseguiu ele, estão cada vez mais preocupados com a falta de políticas concretas e eficazes, que possam promover a actividade e criar maior intercâmbio entre todos os fabricantes de peças de arte. Mercado dos Artistas

No entroncamento da rua Dona Xepa, que dá acesso ao bairro Patriota, no Talatona, está localizado o Mercado dos Artistas, espaço cedido provisoriamente pela Administração local do Estado. Ali a situação é bem diferente. Segundo o coordenador da feira, Zola Noé, no local não faltam clientes e as obras de arte são comercializadas sem dificuldades, porque o acesso facilita os turistas e os preços variam de 10 a 50 mil kwanzas. 

Zola Noé garante que, actualmente, os maiores compradores das obras são cidadãos angolanos, e explicou que há promessas da Administração para que a feira passe a ser realizada no antigo Mercado dos Escravos, no Cabolombo, como forma de preservar a história do local onde era feita a rota dos escravos capturados no interior do país, concentrados ali e posteriormente levados para as Américas e para a Europa. 

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Sociedade