Opinião

Angelina Vunge - “nossa deputada” em Montevideu, Uruguai

Sousa Jamba

Jornalista

Se um romancista inventasse um personagem com a vida e trajectória da deputada uruguaia Angelina Manuel Vunge, de origem angolana, ele teria que ter muito talento para tornar isso credível. No nosso intercâmbio virtual havia momentos em que a própria Angelina Vunge parecia não acreditar na sua vida tão extraordinária.

21/05/2021  Última atualização 07H55
© Fotografia por: DR
Nascida numa aldeia no Kwanza-Sul, em 1978, tendo sofrido a guerra — andar de aldeia a aldeia, violação aos quatro e dezasseis anos — imensa pobreza, ela pertence hoje à elite daquele país da América Latina.
A Angelina Vunge emigrou para o Uruguai em 1999, quando tinha vinte e dois anos. No dia 14 de Abril, ela fez história ao ser eleita a primeira deputada vinda recentemente de África. Angelina Vunge não é uma afrodescente; ela se define como uma uruguaia vinda de Angola.

O português da deputada Angelina tem marcadamente uma influência espanhola; mas o seu sorriso retém aquele timbre Bantu. Quando falamos da comida angolana (kabwenha, kizaka, tortulho), assim como da música (Bonga, Irmãos Almeida, Waldemar Bastos), a deputada uruguaia fica, de repente, transformada numa Mana do Kwanza- Sul. E logo passa a falar-me do maté, ou chimarrão — uma espécie de chá especial uruguaio.

Angelina Vunge é, verdadeiramente, uma extraordinária fusão de culturas.
Angelina Manuel Vunge não se tornou uma celebridade no Uruguai por ter sido eleita deputada. Tudo começou em 2014, quando a história da sua vida foi publicada em espanhol com o título "Las Huellas que Dejó Angola.” Certamente que a vida da Angelina não foi fácil. Ela passou a ser uma figura altamente querida em vários programas de televisão em parte por ser muito inteligente e articulada. Não obstante tudo que a Angelina Vunge sofreu, ela não expressa qualquer amargura. Numa entrevista, a jornalista pergunta o que sentia pelos homens que a tinham violado. Ela responde, prontamente, que já os tinha perdoado.

A Angelina Vunge fala dos horrores da sociedade tradicional; do pai com quatro mulheres que espancava a mãe; da sociedade que não respeitava as mulheres ou então os pobres. Eu perguntei à deputada se não se sentia um pouco desconfortável ter que revelar aquilo tudo. A roupa suja, eu sugeri, não deveria ser lavada dentro de casa? A resposta dela é que a violência doméstica e sexual não é apenas um fenómeno angolano ou africano — este é um fenómeno universal!  Quando não se denunciam estes males então ajudamos a sua perpetuação.

Um dos aspectos que sobressai no carácter da Angelina Vunge é aquela coragem e resiliência profunda, típica de gente que aprendeu cedo na vida a suportar muito sofrimento. Angelina Vunge parece ser indestrutível. Perguntei-lhe o que estará por trás desta resiliência. Será que é cristã? Ela respondeu que não é particularmente religiosa. Quando era mais jovem visitou, por uma questão de curiosidade, a Igreja Universal, em São Paulo, Luanda. Durante a guerra, ela disse-me que foi apanhada numa armadilha para animais, o que lhe causou várias feridas; ela foi, também, atingida por um estilhaço de bala. Ter sobrevivido a tudo isso fez com que ela pudesse enfrentar muitos outros desafios.

A deputada Angelina Vunge fala com muita nostalgia da sua infância no Kwanza-Sul. Nem tudo foi tão nefasto. Havia as amigas com quem brincava e os livros que lia de meninas brancas em países lá fora onde não havia guerra.  A menina Angelina sonhava sempre sair de Angola. Em 1992, ela começou a trabalhar no bairro das Nações Unidas, onde fez amizades que viriam facilitar a sua ida para o Uruguai.

Foi no Uruguai que a Angelina Vunge descobriu a sua veia filantrópica, que resultou no seu envolvimento na vida política. Cheia de orgulho do seu trabalho, ela fala como ajuda os menos favorecidos a obter alimentação e satisfazer outras necessidades. A deputada fica profundamente triste quando fala da família, em Luanda, que ela visitou em 2017, depois de dezoito anos. A mãe vivia numa casa de chapas numa área de Cacuaco chamada Sequele; ela fez tudo para construírem uma casa de adobes, o que não foi feito até agora por várias razões. A deputada uruguaia estava em lágrimas quando me falou da ilha de Luanda; havia, segundo ela, os arranha-céus de Luanda, mas também muita pobreza.

Angelina Vunge nunca se desligou de Angola. O Uruguai é um país com um passado turbulento, também com alguma violência, mas que passou hoje a ser um dos mais estáveis na América Latina. O sucesso da Angelina Vunge deve, também, nos fazer reflectir sobre a nossa realidade. Há muitas "Angelinas Vunges” em Angola que acabam por ser casadas, discriminadas, maltratadas e o que não lhes permite avançar com os seus estudos ou mesmo com as suas carreiras. Uma das pessoas que a Angelina Vunge muito admira é a Francisca Van-Dúnem, ministra da Justiça de Portugal, que também tem as suas raízes em solo angolano. Tivemos que interromper a conversa porque a deputada tinha que irrigar as suas plantas. Espero que um dia ela venha a partilhar a sua experiência às meninas e aos meninos que sonham com um futuro melhor em várias partes de Angola...

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