Sociedade

Alice Conga: “Sem saúde mental a sociedade não avança”

Omar Prata

Alice Conga, 27 anos, é psicóloga clínica e defende que "sem saúde mental a sociedade não avança", num país que, ainda, se depara com alguns tabus em relação à profissão.

28/09/2023  Última atualização 11H28
© Fotografia por: Cedida
O primeiro contacto de Alice Conga com a psicologia foi com a irmã mais velha, quando ainda estava no ensino básico. "Ela já estudava psicologia, e uma vez pediu-me ajuda para uma tarefa estranha (fazer um desenho), desde aquele dia, achei curiosa a ideia dela fazer a leitura de comportamento ou pensamento sobre e pelo desenho", contou ao JA Online.

Questionada se ainda se lembrava sobre o desenho, respondeu, entre risos, que "nem pensar". Licenciou-se na Universidade Católica de Angola, de 2014 a 2018, onde recebeu as bases para desempenhar psicologia. "A Universidade preparou-me para aquilo que faço hoje. Foi muito importante, ajudou-me a amadurecer e a compreender conceitos muito genéricos sobre o mundo e sobre a psicologia".

Porém, o Ensino Superior não lhe deu tudo aquilo que necessitava. O restante adquiriu no mercado de trabalho e na YALI (A Iniciativa de Jovens Líderes Africanos), criada em 2010, por Barack Obama. Foi em Maputo que obteve uma graduação em Liderança Cívica "A YALI foi a cereja no topo do bolo para a minha formação, enquanto pessoa. Acordou a líder que sempre existiu em mim, fez-me compreender a importância do meu papel na sociedade". 

Foi, igualmente, nessa altura em que se apercebeu de que podia ser "uma influência positiva" para sua geração e para a sua comunidade e aprendeu a abraçar as responsabilidades para com o seu país, do qual ainda não saiu e de momento não pretende. 

É por isso que leva a saúde mental "para todos os cantos" e ajuda Angola a tornar-se num lugar são e desenvolvido, procurando dar resposta aos inúmeros problemas sociais com o conhecimento que tem à disposição.
Foto: Facebook de Alice Conga

 "Preocupo-me em estudar soluções para tais problemas e ajudar a resolvê-los de acordo com aquilo que são as minhas possibilidades e o meu conhecimento". Alice Conga lida com "todos os tipos de casos" desde ansiedade, a muitos transtornos depressivos, de uso e abuso de substância, vícios e "também muita instabilidade emocional/pessoas muito despreparadas emocionalmente". 

Relata que a sua especialização clínica permite com que esteja mais inclinada para "o contexto clínico, a análise, a avaliação, o diagnóstico e o tratamento de psicopatalogias e desenvolvimento humano". Além de psicóloga, considera-se uma educadora social porque "falo para o público sobre saúde", formadora "porque me preocupo com o desenvolvimento humano" e tudo que faz é "de forma autónoma e independente sem grandes apoios". 

Reconhece a condição social das pessoas de diferentes estratos sociais, por isso sabendo que nem todas podem pagar as consultas, faz questão de "encaminhá-las para os serviços que temos em Angola disponíveis sem custo (linhas de apoio psicológico gratuitas), hospitais públicos, grupos de colegas que façam atendimento gratuito ou com custos reduzidos". 

Para já, os seus serviços estão disponíveis apenas online, tendo tido pacientes de "Benguela, Lunda-Sul, Huambo" e também de "Moçambique, Portugal e Cuba", mas a longo prazo pretende "ter uma rede de consultórios acessíveis para todos os grupos sociais" que venha a evoluir para uma clínica. 

Ainda assim, assegura que ninguém que chega até si "saí sem atendimento psicológico por não ter dinheiro" e que "muita gente consegue pagar normalmente as consultas", embora não possa adiantar os preços que cada paciente paga, porque o código de ética não permite que sejam divulgados. 

No entanto, a trajectória que teve de viver até se tornar psicóloga é um testemunho de resiliência e de perseverança face às adversidades encontradas. 

Lidar com o Bullying e a importância do suporte familiar
"A minha história de vida foi a minha inspiração para estudar psicologia, algumas situações na infância/adolescência ajudaram-me a amadurecer emocionalmente e consigo lidar com situações parecidas de forma estratégica e profissional. Um exemplo foi o bullying que sofri por ser tímida, hoje, compreendo melhor pacientes com fobia social e/ou introversão, claro, baseando-me, principalmente, nas questões científicas com o reforço da minha experiência, respeitando sempre a subjectividade", confessa. 

Pensa ter sido resiliente "desde muito cedo", mas aclara que "o bullying tem vários factores e causas" e que "as suas consequências vão depender de pessoa para pessoa". Este mecanismo de intimidação tende a "afectar o desempenho académico ou profissional de quem é vítima" e há quem seja mais vulnerável do que outros, por isso é importante o suporte familiar e instruções pedagógicas. 

"Os progenitores têm um papel muito importante no desenvolvimento psicológico, cognitivo e intelectual dos filhos. Se não souberem passar instruções, de modo a que a criança cresça de forma saudável, poderá ser problemático a curto, médio ou longo prazo". 

Sublinha que "a formação da personalidade dos filhos depende também do que lhes é passado pelos pais e aquilo que lhes for ensinado eles podem tornar como absoluto e exteriorizarem de uma forma agressiva na sociedade ou não", reitera que "a subjectividade dos factos" deve ser sempre tida em conta e que "ensinar a reagir não é errado, o errado é o tipo de reacção que é ensinado", porque "se for agressiva temos de desaconselhar porque a violência ou a agressividade não são opções assertivas". 

Crê que o apoio é fundamental, mas no seu caso não pôde contar com este empurrão vivencial a 100%, sobretudo em termos da escolha de carreira que fez. "É fundamental o apoio da família em todas as nossas decisões, mas não tive apoio a 100% de todos. Meu pai (em memória) foi o que mais me apoiou e acreditou em mim, a minha mãe e as minhas irmãs mais velhas fizeram resistência pelo medo de não conseguir ter sucesso pela fraca procura dos serviços de psicologia em Angola". 

Exercer Psicologia Clínica no país é um desafioFoto: Cedida

Alice Conga que exerce a profissão no país, explicou que, actualmente, "os serviços já são mais requisitados que há alguns anos, mas ainda existe uma certa resistência por conta da natureza da profissão que é delicada e sensível", sobretudo "pelas nossas crenças culturais e sociais (feiticismo, medo de ser vistos como incapazes, orgulho) que colocam limitações nas pessoas sobre a busca pela ajuda psicológica". 

Por outro lado, frisa, também, que as entidades responsáveis pela divulgação e organização dos serviços de saúde mental não se têm empenhado o suficiente para a melhoria desse quadro, particularmente, "o Ministério de Saúde que é o órgão responsável pela saúde em geral, onde temos a Direcção de Saúde Mental". 

Como forma de colmatar este cenário, a psicóloga clínica sugere uma aposta na "educação e na consciencialização", no "acesso equitativo aos serviços de saúde mental", na "construção de hospitais psiquiátricos", no investimento e na capacitação dos técnicos", na "inserção de profissionais de saúde mental em todos os serviços e órgãos onde tenham pessoas" e nos "serviços comunitários", de entre outras acções que poderiam ser aplicadas para melhorar o quadro vigente. 

Sente que Angola caminha a "passos muito lentos" para o modelo desejável na sua área de formação, contudo deposita fé "na nova geração de profissionais de saúde mental", da qual faz parte, que "têm feito um rico trabalho" e que conseguirá "influenciar quem toma decisões e assim mudar muita coisa" se mantiver o foco e persistir. 

No meio de tabus, crenças e tradições
Para quem exerce a actividade de psicologia clínica, há que ter em mente "aspectos muito delicados", um deles "é o entrar no mundo mais íntimo do outro e ter de deixá-lo livre e confortável sem interferir com as suas crenças pessoais", vinca. 

Por outra, "é o desafio de se manter sã e equilibrada para poder estar disponível para fazer aquilo que a que nos propusermos ser e fazer e acima de tudo amamos". 
Como um óptimo escape, recorre à actividade física que pratica com "regularidade", recomendando-a a qualquer pessoa porque há a "liberação de neurotransmissores aquando da prática da actividade", há "uma sensação de leveza e bem-estar", essencialmente "quando a actividade que praticamos é prazerosa (quando gostamos) " e gera um efeito "sobre o corpo e a mente ajudando a relaxar e não só". 

Menciona que lê e assiste séries e não dispensa "por nada" os momentos de lazer com família e amigos, pois procura "trazer equilíbrio" em tudo aquilo que faz. No entanto, assume que todos têm as suas fragilidades, mesmo enquanto profissionais da área, afinal de contas "somos humanos", ainda que sejamos ensinados a ter "uma postura diferenciada".

A Importância do Setembro Amarelo e a luta contra o Suicídio
Foto: Facebook de Alice Conga

Esta entrevista ocorre no mês do Setembro Amarelo que é dedicado à prevenção e a consciencialização do suicídio, "a ideia de é falar sobre os cuidados que devemos ter com a saúde mental" e "vem exactamente trabalhar no combate à desinformação, visto que a melhor forma de reduzir o problema é com informação e com acções de prevenção que visam valorizar a vida e criar estratégias com o cuidado com saúde". 

De acordo com Alice Conga, "o suicídio sempre existiu, só não era tão noticiado e não havia acesso à informação tão fácil como hoje, mas sempre existiu". Não obstante, lamenta que se vê uma constante desinformação sobre o assunto e uma abordagem em relação ao tema que é feita de qualquer maneira colocando em perigo a vida das pessoas "em situação de vulnerabilidade". 

Desmistifica que "as pessoas não morrem por suicídio simplesmente porque tiveram uma decepção, é uma expressão final de um processo de crise vivido pela pessoa que raramente saberemos o real motivo, principalmente se antes não estava a ser acompanhada por um profissional de saúde mental". 

Elucida que na verdade "é um fenómeno multifactorial", por isso envolve muitas questões familiares envolvidas de foro "biológico, cultural, social, psicológico", sendo assim não pode ser apenas abordado a partir de um "factor", pese que seja verdade que "a maior parte dos casos estão associados ao adoecimento psicológico (transtornos de humor, de ansiedade, de personalidade, de uso e abuso de substâncias ou até de psicoses). 

O relacionamento entre a Fé e a Psicologia 
Foto: Cedida

Para a psicóloga clínica, "somos seres humanos com muitas dimensões: Bio-Psico-Socio e Espiritual", e todas essas bases "definem e interferem no nosso desenvolvimento, enquanto pessoas". Sustenta que "acreditamos sim que as nossas crenças espirituais têm a sua relevância e função, mas também temos a mente que é parte integrante fundamental no homem, que adoece tal como o corpo e desenvolve uma série de transtornos psicológicos e não só". 

Considera que "a psicologia não precisava conflituar com a igreja porque são dimensões diferentes e com funções diferentes, mas que muitas vezes chocam pela semelhança no factor subjectividade. Tanto na fé espiritual como na psicologia existe subjectividade, tudo o que é subjectivo leva o indivíduo a questionar ou a desacreditar". 

Avança que o que "vemos acontecer na maior parte dos casos é o indivíduo a sobrepor a sua crença religiosa aos fundamentos psicológicos, mas também a falta de informação e coerência de muitos religiosos. Porque a espiritualidade é um aliado da psicologia, então elas não precisam andar separadas, mas se o indivíduo em causa não perceber isso, pouco podemos fazer".

Por fim, Alice Conga defende que o que acontece em muitos casos "é uma confusão de conceitos sobre o que é a fé e a espiritualidade e também sobre o que é a psicologia" e "onde a espiritualidade não puder entrar e resolver a psicologia (ciência) responde e vice-versa". 

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