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África: Os Desafios da Construção dos Estados-Nação

Como vimos na 1ª parte deste artigo, o Estado é, sem sombra de dúvida, nos países da África sub-sahariana, a única instituição capaz de dirigir o processo de formação da Nação e por isso denominamos esse processo de construção dos Estados/Nação.

10/03/2021  Última atualização 09H40
© Fotografia por: DR
As fronteiras de cada um dos Estados africanos da região sub-sahariana são, na maioria desses países, de grandes distâncias e os controlos das mesmas é um desafio preocupante na defesa da soberania dos mesmos.
Mas apesar das fragilidades das instituições públicas, é o Estado a única entidade que tem a responsabilidade de manter a soberania territorial, a ordem pública e a justiça entre os membros dessas comunidades.

Porém, como vimos na 1ª Parte, a Nação é um sentimento espiritual de identidade cultural de pertença a um determinado país, que além das fronteiras, deve ter na sua história, na sua língua de comunicação, no seu hino nacional, na sua moeda nacional, ou no seu passaporte, o património comum que o deve orgulhar e distinguir os seus cidadãos dos outros povos e países da comunidade internacional.

Porém, essa identidade tem de ser criada e desenvolvida pelo Estado e através das elites políticas nacionais e locais que dão corpo a um sistema de administração pública, visando a integração dos seus habitantes em projectos de cidadania política, cidadania económica e cidadania cultural.

 A dinâmica do processo de construção do Estado/Nação na África sub-sahariana é, antes de tudo, condicionado pela capacidade das instituições públicas de prestarem serviços públicos às suas colectividades, tanto nas áreas urbanas, como nas áreas rurais.
O acesso aos serviços básicos de ensino, saúde, electricidade, água e saneamento, bem como o estado das estradas, são os factores mais sentidos pelas comunidades locais, na avaliação da sua integração no projecto de igualdade de direitos que a constituição desses países reconhecem a todos os cidadãos nacionais.

Com uma população maioritariamente jovem, abaixo dos 20 anos de idade, um crescimento demográfico com taxas acima de 3% ao ano, e uma taxa de aglomeração "urbana” acelerada, as elites políticas têm enormes desafios de criar a dinâmica de integração social e económica desses jovens, no processo de construção de um Estado forte que catalize a criação de uma Nação.
Mas os processos de acelerada e desordenada urbanização, conduziram a um agravamento das assimetrias entre as grandes cidades e o interior do país, ou no caso de países com orla marítima, entre as zonas do litoral e do interior, este último bastante abandonado.

As assimetrias regionais, mesmo quando os Estados se debatem com debilidades financeiras, só os Estados podem intervir para reverter esse perigoso processo, que em regra, dão origem a conflitos étnicos e os processos separatistas, como ocorreu há anos na Etiópia e ameaça a estabilidade da República Democrática do Congo.
A enorme dimensão geográfica da maioria dos países da região sub-sahariana deve levar as elites políticas a repensar na solução do desenvolvimento das infraestruturas, numa base inter-provincial ou regional, decorrente de uma maior autonomia e descentralização politico-administrativa.

A repartição entre as diversas províncias que compõem uma região dos diversos componentes dessas infraestruturas, como educação, saúde, água, electricidade, ajudaria a uma dinâmica de integração e desenvolvimento descentralizado.
Com níveis adequados de infraestruturas (estradas, água e electricidade) e com sistemas de saúde e ensino com qualidade e adequados ao potencial de desenvolvimento das diversas regiões, não será difícil, através de politicas fiscais incentivadoras, atrair o investimento interno ou externo para propiciar o desenvolvimento equilibrado das diferentes regiões dos países.

Os membros das elites políticas (deputados, governantes e outros políticos activos na Administração local ou autarquias) são, na sua maioria, provenientes do interior do país, mas centram as suas atenções nas grandes bases eleitorais, concentradas nas grandes cidades, num efeito oposto ao desejado de desconcentração, baseados na lógica de captação de votos.
A criação de uma Agenda Nacional de Longo Prazo, baseada numa estratégia que seja capaz de unir as principais organizações políticas e partidárias, com assento parlamentar e a concertação com as demais elites representativas da sociedade, parece ser um caminho necessário para se avançar no processo de construção do Estado/Nação nos países africanos sub-saharianos.

As matérias estruturantes dos sistemas de ensino, saúde, justiça, estradas, electricidade, de água e saneamento não deve ser deixado ao sabor de novas elites políticas que, em regra, provocam rupturas e descontinuidade dos avanços já alcançados. Essa realidade é visível nas mudanças de lideres locais, mesmo provenientes do mesmo partido e a situação poderá agravar-se com as autarquias locais.

Nesse processo de construção dos Estados/Nação, as elites políticas que dirigem o Estado têm de criar sinergias com as outras elites nacionais, reconhecidas pela significativa base de aceitação e legitimidade social, junto das comunidades urbanas e rurais.
Desde logo, as igrejas continuam a ter um papel importante no processo de formação da opinião pública, através das mensagens divulgadas nos locais de culto.

De um passado animista, a região sub-sahariana também conhecida por África Negra, foi conhecendo durante a colonização e fruto de algum intercâmbio comercial, outras religiões, particularmente as religiões cristãs e islâmica.
O desaparecimento dos valores animistas, nas áreas urbanas e sobretudo na camada juvenil, vem sendo substituída por jovens excluídos do processo de desenvolvimento económico, lançados no desemprego e que buscam nas igrejas com forte apoio financeiro, particularmente no islamismo, a sua inserção social, criando o fundado receio de que correntes mais radicais possam, a médio prazo, assumir um papel determinante no futuro desses países.

O papel das elites religiosas é fundamental no resgate dos valores éticos e morais que as sociedades africanas vêm perdendo.
Apesar dos Estados africanos serem na sua maioria laicos ou não confessionais, não pode significar uma posição de alheamento à necessidade de espiritualidade religiosa que o ser humano procura, particularmente nos momentos de grave crise económica e social.
As elites políticas negligenciam a necessidade de preencher esse vazio espiritual, supondo que o desejo materialista da vida o possa substituir.

Do mesmo modo que, no passado, os lideres nacionalistas africanos souberam preservar as fronteiras herdadas da ocupação colonial, os lideres actuais deverão saber preservar o legado imaterial e espiritual do passado, do qual herdaram igualmente a língua, sem a qual não poderiam comunicar com os seus eleitores.
Com o agravamento dos conflitos étnicos e as crises económicas e sociais quase permanentes, as elites políticas africanas na sua maioria, nem sempre valorizam as sinergias necessárias que, em áreas como o ensino e a saúde, poderiam obter junto das igrejas históricas que há longo tempo convivem com as populações e lhes prestam assistência.

As elites académicas, que deve incluir todos os professores e não só os do ensino superior, que formam a mente dos jovens nos vários níveis de ensino, são muito importantes sobretudo com a realidade das famílias ausentes e desestruturadas, com forte apelo ao acesso de bens materiais, a qualquer preço.
Mas se ensinar a ler ou contar é a função principal da escola primária, não menos importante é, desde a escola primária, o dever de se difundir os valores espirituais e religiosos dominantes nas respectivas comunidades, no domínio da educação moral e cívica, tão indispensável à consciência futura do ser humano.

As elites políticas africanas deverão avaliar o impacto dessa medida no processo de construção da Nação, como bases de estruturação das sociedades africanas, que, quando acompanhado da prática dessa actividade espiritual pelos membros das diferentes elites, ilustrará o caminho da formação de novo homem e de nova sociedade, baseada no respeito, na verdade e na honestidade.
A corrupção só domina nas sociedades que assentam o seu modo de vida, em particular o funcionamento das instituições públicas, no favorecimento económico, na extorsão, traduzindo pequenos actos de corrupção, que se alastram e corroem toda a sociedade.

As elites desportivas e culturais são elos deveras importantes no processo de construção da Nação. Tal como nos referimos há quase 15 anos, no artigo publicado neste mesmo jornal, aos olhos do cidadão médio, o futebolista, que atingiu o estrelato mundial é o sonho ao alcance de qualquer jovem. Por isso, torna-se um líder dessa camada da sociedade e é reconhecido como tal.
O desporto, em particular o futebol, como desporto rei, também nos países da África sub-sahariana, deveria merecer um pouco mais de atenção no processo de construção do Estado/Nação, por parte das elites políticas.

Não só as estrelas do futebol no país ou no estrangeiro são elites de referência nos seus países de origem, mas o futebol é uma das fontes incentivadoras no processo de construção da Nação. O futebol tem o efeito contagiante de mobilizar milhões de pessoas pelos seus clubes ou pelos seus países, nas provas de competição.

E por isso o desempenho dos clubes nas competições de futebol constitui um elemento catalizador da identidade local ou nacional.
Ocupando a maioria dos países africanos grandes áreas geográficas, não se compreende porque razão as autoridades públicas desportivas organizam competições em todo a extensão do território nacional, o que se torna mais oneroso a sua participação, em especial, dos clubes do interior do país, que não são apoiados por grandes empresas ou instituições públicas.

As referências nacionais das elites desportistas não devem ser abandonadas no período em que deixam de ser praticantes de qualquer modalidade desportiva, em especial do futebol, pelos efeitos negativos que isso transmite às novas estrelas.
Mas para além dos desportistas, não menos importante, são os destacados agentes culturais, em especial os cantores, os escritores que através da sua canção, da sua escrita ou de peça de teatro, transmitem a mensagem e influência aos seus fãs, cuja popularidade, não raras vezes, supera a dos políticos.

A auscultação regular e institucional da classe empresarial pelo poder político é, igualmente um passo importante para adequar os programas do desenvolvimento económico à realidade da actividade económica.
As elites empresariais nacionais, como entidades geradoras de empregado têm, igualmente, um papel importante nesse processo. Se é verdade que os agentes económicos reagem aos estímulos que os Governos criam, não é menos verdade que as ligações afectivas e psicológicas do homem africano à terra onde nasceu, pode ajudar a sensibilizar as elites políticas para os problemas do interior do país.

Para isso, seria importante que, mais cedo que habitualmente, esses empresários fossem desafiados  a contribuir para o desenvolvimento das suas terras de origem e não hostilizados como, não raras vezes, acontece pelas autoridades públicas locais.
Neste processo de concertação pelo desenvolvimento económico, os grandes empresários minimizam a capacidade da produção familiar e dos pequenos empresários, que são abandonados à sua sorte e acabam por engrossar o grupo crescente de desempregados.
Não menos importante e esquecido frequentemente pelas elites políticas da região sub-sahariana, é o papel crucial desempenhado pelo comerciante, na ligação económica entre a produção e o consumo, entre a cidade e o campo.

A importância do pequeno comerciante é, em regra, subestimada pelos políticos, mas não devemos esquecer que é dos comerciantes que saem o maior número de futuros empresários, que irão contribuir para desenvolver o país.
Por isso deixar a rede comercial, sobretudo a retalhista, na mão de cidadãos estrangeiros, constitui um enorme condicionamento para qualquer estratégia de desenvolvimento do empresariado nacional, a médio e longo prazo.

A realidade pode ser constatada na rápida absorção da prática comercial pelos herdeiros de comerciantes e sobretudo no domínio das contas, que leva os seus descendentes a optarem por áreas de conhecimento e formação com maior prevalência da matemática.
Por último, mas não menos importante, surgem as autoridades tradicionais que vêm ganhando mais reconhecimento nas comunidades locais, à medida que se evidenciam as fragilidades institucionais dos Estados.
A necessidade de um diálogo activo com as autoridades tradicionais não se pode reduzir ao pagamento de um subsídio ou o seu enquadramento político administrativo.

Um espaço de concertação, a nível local, pelas autoridades políticas locais parece indispensável para que as autoridades tradicionais continuem a prestar serviços de assistência e informação junto das suas comunidades locais.
Mas à medida que o Estado se torne mais eficiente na administração dos serviços públicos a nível local, as autoridades tradicionais passarão a desempenhar um poder mais simbólico de representação dos costumes e tradições que deve ser respeitado, como realidade histórica e cultural.

Porém, o sentido dos acontecimentos nas últimas décadas do século XX e nas 1ªs do século XXI, parece evidenciar uma preocupante desmobilização do Estado junto das comunidades mais distantes, que vêm nas autoridades tradicionais o suporte que legitima o seu poder e autoridade, criando algumas situações de confronto com o Estado que, em períodos de crise, poderão fragilizar o processo de construção do Estado/Nação na áfrica Subsaariana.
Se em jeito de síntese pudéssemos identificar os principais agentes e factores de construção da Nação nos países africanos da região sub-sahariana , não hesitaria em identificar a autoridade administrativa local, o professor do ensino primário, o enfermeiro, o padre, o comerciante e autoridade tradicional local, pelo impacto das suas acções no substrato espiritual, educativo, físico e económico das comunidades locais.
Mas será o passado histórico comum, na luta pela independência e no processo de desenvolvimento económico e sobretudo cultural desses países, que deve constituir a base fundamental da unidade e do orgulho nacional que urge ser forjada e incentivada pelas autoridades políticas e demais elites desses países.

O reconhecimento internacional de referências ao nível das artes e das ciências, em especial na literatura, na pintura ou no desporto, não pode ser negligenciado ou silenciado pelas respectivas autoridades públicas, por razões político-partidárias.
Antes dos partidos, ou melhor, para além dos partidos deve existir a Nação e esses são activos importantes desse processo de construção do Estado Nação.

A construção do Estado/Nação é um longo e complexo processo que exigirá clarividência das diferentes elites, em particular das elites políticas, em sentido amplo que não se reduz ao Estado, mas que inclui outros actores políticos a nível nacional e local.
Porém, é necessário que as elites políticas e em particular as autoridades públicas centrais e locais identifiquem a necessidade de conceber e realizar programas e acções concretas e concertadas com as demais elites da sociedade, para que o projecto de construção da Nação seja assumido como base da consolidação da Pátria, que todos desejam ver construída, mas que os interesses imediatos perturbam e podem ameaçar a sua concretização.

Rui Cruz |*

*Professor Universitário reformado (fim)


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