Especial

A voz dos camponeses ecoa pela liberdade

O ano de 1960 é conhecido como o «Ano das independências africanas». A Europa colonizadora cessou, com esta reviravolta, de alimentar gratuitamente as suas economias a partir de matérias-primas africanas. Angola, ainda sob colonização portuguesa, viu dois países vizinhos acederem à independência, a República do Congo e a República Democrática do Congo (adiante RDC). Novas configurações se desenhavam no mapa económico europeu, tanto quanto novas realidades consequenciais na fronteira entre Angola e a RDC.

04/01/2023  Última atualização 08H07
© Fotografia por: Desenho de Henrique Abranches

Desde o final do século XVII, o Reino de Kasanji providenciava incalculável riqueza à economia portuguesa, de modo que foi criada uma "feira de Kasanji” para fornecer escravizados, marfim, borracha, ferro e outras matérias-primas.

 Com a Conferência de Berlim, o Reino de Kasanji ficou duplamente dividido: (i) primeiro, por pertencer doravante aos Reinos da Bélgica e Portugal; (ii) segundo, as etnias integrantes de Kasanji dividiram-se: Mbangala, Mbûndu, Njinga, Suku/Kôngo, Holo e Bondo.

Entre 1885 e 1939, Portugal instalou forças militares em Malanje, que era a sede distrital da Lunda, para proteger o seu interesse económico: (i) mercado livre de diversas matérias-primas; (b) empresas luso-belgas como a COTONANG e a DIAMANG, criadas nos anos 1920.

Nesta data, havia 5.300 europeus na região. Depois da crise mundial de 1939, Portugal notou que as receitas oriundas desta zona eram valiosas. Daí, os europeus na zona aumentaram para 9.437. Com o fim do Reino de Kasanji, o desentendimento entre as etnias integrantes quebrou a sua unidade.

A população negra era estimada em 170.000. Cerca de 63% desta população adulta era camponesa e a COTONANG contava com 31.652 produtores de algodão. Também as mulheres e crianças trabalhavam, em condições deploráveis, devido à grande procura. No total, cerca de 110.000 pessoas estiveram envolvidas na produção compulsiva de algodão.

Com a independência da RDC, muitos belgas fugiram para aquela zona. Em Malanje a Missão Metodista do Quéssua, entre 1940 e 1960, formava jovens angolanos que ganharam consciência da opressão racial colonialista e integraram os primeiros grupos nacionalistas.

Entre 18 de Maio e 28 de Outubro de 1960, as populações viram os belgas fugirem do Congo de Lumumba, e muitos aderiram ao "culto de Maria” que exortava à desobediência ao poder colonial e à recusa de trabalhar para brancos.

Entre 1953 e 1957, a indústria têxtil tinha subido 18% no mercado português, e 29% no mercado franco-belga, alcançando os Países Baixos e a Alemanha. No orçamento previsto para 1958, Portugal tinha a previsão de arrecadar (inicialmente) cerca de 29% do seu orçamento geral. Isso deveu-se ao volume do investimento americano em Portugal.

Os camponeses começam a ser pressionados pelo poder colonial local a intensificarem a produção de algodão e a abandonarem as suas lavras, sob pena de serem presos e deportados.

Vários intelectuais e pastores religiosos inclinaram-se, na altura, directa ou indirectamente, para o "culto a Maria”, um messianismo que encorajava os africanos a boicotarem o cultivo de algodão. O profeta (mesene) António Mariano dizia que a «deusa Maria vinha libertar os angolanos dos brancos e dar boa vida aos negros». Com a independência da RDC, o soba Kulaxingu,  líder étnico dos Bangala ficou convencido, ao ver os belgas foragidos e desesperados a fugirem do Congo, e empenhou-se na «guerra de Maria» que contou com o apoio de cristãos (católicos e metodistas), Os movimentos nacionalistas da altura  MPLA e UPA  , apesar da carência de informação, tentavam integrar-se nesse movimento, pelo menos desde Agosto de 1960, tal como o notou o reverendo metodista Edwin LeMaster que trabalhou no Quéssua entre 1952 e 1961, como director da estação central de formação de jovens angolanos, formando igualmente professores para as aldeias. Em Setembro de 1961, ele e mais três missionários foram presos pelas autoridades coloniais, acusados de "actividades subversivas” em cadeias de Malanje, Luanda e Lisboa.

As primeiras resistências

As primeiras resistências datam de Dezembro de 1959, nos postos de Tembo’a Luma, Milando, Nkela, Xandela e Luwi. Em Janeiro, alcançou Xamuteba. Uma carta (capturada pela PIDE) circulava dizendo: «Lumumba, a mulher Maria e o filho Pessa mandam que ninguém trabalhe e que só as mulheres podem cozinhar» (PIDE/AOS/COL/UL-32A2, p.41).

Rosário Neto esteve por detrás dessa missiva. No dia 2 de Janeiro, os sobas Nkunda e Kawuka reuniram com o seu povo e deram orientações. Daí, os camponeses queimaram as sementes e enfrentaram as ordens quer dos sipaios quer dos sobas coniventes com os colonos. Depois, seguiram-se outras mensagens a manifestar-se contra a administração colonial e a pregar a sabotagem das lojas dos comerciantes.

Armados de canhangulos, cerca de 400 habitantes de Nkunda dya Mbazi liderados por Joveta (oriundo de Kituxi) e Sousa (oriundo de Kixingu Mbambe) cantavam: "Mwene Mputu tunji’a njila (Colono português é caca de pássaro”). Essas manifestações alastraram para Kiria e Kinzenga. Os revoltosos destruiram viaturas, arriaram a bandeira portuguesa (símbolo do poder colonial), fizeram assalto às instalações públicas e privadas, derrubaram pontes, além de queimarem alguns armazéns da COTONANG.

Foi assim que os camponeses se insurgiram sem, no entanto, causarem vítimas mortais.

A COTONANG percebeu que havia razão para o descontentamento, mas o fim da empresa era o lucro máximo à custa de trabalho forçado dos camponeses. Em contrapartida, os comerciantes apelaram à protecção militar.

Os insurrectos negaram apresentar-se nos postos de Nkunda dya Mbazi. Em reacção, Mário Henrique da Silva (administrador de Kambo) requisitou a 3.ª companhia de caçadores especiais de Malanje.

O poder colonial enviou forças militares para fazerem a repressão, autorizadas a usar a bomba de napalm, que queimava tudo. Entre 5.000 e 10.000 pessoas foram mortas naqueles dias. Os colonos abriram a "caça” generalizada aos supeitos de "rebelião”, muitas mulheres foram violadas, intelectuais de Malanje foram presos. Citamos os principais:

João Rosário (pai de Rosário Neto), o reverendo Geraldo Manuel Xavier, Sebastião Cardoso, Moises Kamabaya.

A história do 4 de Janeiro continua ainda hoje mal conhecida, é mesmo a menos conhecida entre os três levantamentos nacionalistas, talvez por estar "confinada” a áreas rurais sem veículos de informação para o exterior.

É preciso reconstrui-la com muita responsabilidade. Tarefa de historiadores com deontologia. Não é para qualquer curioso. A «História de 4 de Janeiro» inspirou a bravura do 4 de Fevereiro e a determinação do 15 de Março de 1961, o início e a expansão da luta de libertação nacional em Angola.

A sublevação só terminaria em Março com a captura do profeta António Mariano e do soba Culaxingo, rei dos Bângalas.

A primeira gesta da libertação de Angola foi feita pelos camponeses. A mesma voz clama pelo desenvolvimento sustentável: encorajar o angolano a cultivar o que ele consome e exportar para potenciar as suas receitas seria a gesta da dignidade.



Patrício Batsîkama

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Especial