Opinião

A reaproximação entre o Irão e Arábia Saudita um verdadeiro jogo de soma zero

Faustino Henrique

Jornalista

Há dias, a Arábia Saudita, o mais influente e mais poderoso Estado árabe sunita, e a República Islâmica do Irão, o mais poderoso Estado xiita, ambos do Médio Oriente, surpreenderam o mundo com o anúncio conjunto, que envolveu também a China, sobre a reaproximação que deverá levar, em dois meses, ao restabelecimento das relações bilaterais.

15/03/2023  Última atualização 06H20

Completamente imprevisível e fora dos cálculos dos mais apurados analistas e "Think Tanks” que acompanham as dinâmicas que envolvem as alianças, rivalidades, luta pelos espaços de poder, guerras por procuração ao nível da região, este anúncio, além de provocar as ondas semelhantes a um "terramoto diplomático”, está a merecer as mais variadas reacções. Foi um "susto” bom para alguns e mau para outros, mas que para a generalidade dos actores valeu este importante passo para resolver ou ajudar a abrir caminho para solução em muitas frentes. Isto com maior particularidade naqueles espaços de disputa entre o Irão e a Arábia Saudita, dois países que tinham rompido as relações diplomáticas em 2016, por iniciativa daquele último, nomeadamente no Líbano, onde o primeiro apoia o Hezzbollah e a crescente influência xiita, enquanto o segundo apoia o poder maioritariamente sunita.

No Iémen, onde a rebelião armada xiita que, há mais de cinco anos, procurava derrubar o poder pró-saudita, no Iraque, que desde o derrube de Saddam Hussein, o último líder sunita, a balança do poder pendeu a favor dos xiitas, apenas para citar estes campos em que os sauditas e iranianos actua(va)m por procuração em nomes dos interesses divergentes.

As populações xiitas da região, maioritárias no Irão, Iraque, Iémen, Bahrein e minoritárias nos restantes países e reinos do Médio Oriente, encaram o Estado persa como espécie de guardiã dos valores religiosos, culturais, políticos e militares, por um lado. 

As populações sunitas maioritárias na maioria das monarquias, Egipto, Líbano, Oman, entre outros, olham para o mais poderoso entre si, nomeadamente, a Arábia Saudita, como a "sombrinha protectora”, ao lado dos parceiros externos, por outro lado.

Obviamente que este mosaico tenso acaba também por levar as potências mundiais, nomeadamente os Estados Unidos, a China e a Rússia a embarcar na velha política do "dividir para melhor reinar”.

A perspectiva de reaproximação entre os dois blocos ou entre os dois entes mais representativos e tidos aparentemente como os seus líderes vai ser bom para região, embora constitua, igualmente, um choque para algumas realidades.

As análises apontam Israel como um dos lados, alegadamente, prejudicado, na medida em que esperava e se empenhava, com auxílio dos Estados Unidos, para um maior e continuo isolamento do Irão. Daí as reacções inclusive ao nível da imprensa mundial e israelita em particular a culpar a deriva extremista da governação em Israel.   

"As notícias da reaproximação entre os rivais regionais de longa data, Arábia Saudita e Irão, chocaram o Oriente Médio no sábado e representaram um golpe ao Primeiro-Ministro israelita,  Benjamin Netanyahu, que fez da ameaça representada por Teerão uma prioridade da diplomacia pública e uma cruzada pessoal”, escrevia a agência noticiosa Associeted Press, em jeito de editorial.

O The Jerusalem Post, jornal em inglês, numa das peças de opinião, o articulista questionava "onde estavam os Estados Unidos enquanto o Irão e a Arábia Saudita formalizavam, sob a mediação chinesa, a reaproximação”, uma interrogação em tempos "respondida” pelo porta-voz do Departamento de Estado, John Kirby, quando dizia que os Estados Unidos tinham sido informados pela Arábia Saudita, mas que não tiveram nenhum papel.

A Arábia Saudita e o Irão são dois rivais cujos campos antagónicos alimentam as alianças e atiçam os graus de volatilidade em que se encontra o Médio Oriente, quase que ciclicamente, e numa altura em que existiam e ainda existem esforços para os isolar, este passo acaba por ser um balde de água fria em Tel Aviv e em Washington.

Trata-se de um grande revês para o Governo do Primeiro-Ministro de Israel que, ávido de embarcar numa onda de culpabilização do Irão por todos os males da região, foi até muito recentemente bem sucedido a escamotear os verdadeiros problemas internos com os quais se confronta.

Netanyahu, com a agenda obsessiva em que o Irão é apresentado como a principal fonte de instabilidade regional, conseguiu relegar para o esquecimento o processo de paz israelo-palestiniano. Prometeu "construir” uma frente árabe-israelita contra o Irão e "sonhava” com uma adesão da Arábia Saudita aos Acordos de Abraão, realidade que acabou por se transformar num tiro saído pela culatra com o anúncio de reatamento das relações iraniano-sauditas.

A maioria dos países e organizações internacionais aplaudem a iniciativa que contribuiu também para dar visibilidade à diplomacia chinesa por, alegadamente, estar a cobrir um espaço deixado vazio pelos Estados Unidos. Este país, independentemente de não ver com bons olhos a presente perspectiva de reaproximação entre os dois grandes rivais regionais, na verdade, congratularam-se com a iniciativa, levantando algumas dúvidas relativamente aos desafios que estão em causa.

É óbvio que as diferenças entre o Irão e a Arábia Saudita não vão ser dissipadas com o presente ambiente político e diplomático, mediado e muito bem pela China, depois de várias rondas em cerca de um ano, mas ninguém nega que se trata de um passo gigantesco na direcção do apaziguamento que a região muito precisa.

Para o sucesso desta iniciativa concorrerá um conjunto de cedências mútuas que deverão ser feitas por ambos os lados, razão pela qual, embora alguns dêem o benefício da dúvida, outros preferem ver para crer o início deste jogo de soma zero, traduzido na ideia de o ganho de alguns envolver necessariamente a perda de outros.  

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