Sociedade

A professora que dedica a vida a apoiar oito irmãos órfãos

Helma Reis

Jornalista

Com 45 anos, a professora de História Ana Cuty tornou-se um exemplo no Bairro Fubu, no município do Kilamba Kiaxi, onde se dedica a apoiar oito irmãos órfãos.Casada e mãe de três filhos, ela garante alimento, vestuário e educação para os oito órfãos, os Neves, com os quais não tem qualquer vínculo consanguíneo. A mãe, Ilda Neves, morreu em 2012, na sequência de um incêndio, enquanto o pai, João Neves, morreu em 2017, vítima de um infarto.

14/04/2024  Última atualização 10H20
Ana Cuty tomou a peito o problema da Família Neves e engendrou um plano que se resume na protecção social dos seus membros. © Fotografia por: Adriano Cahuli | Edições Novembro
Esses dois acontecimentos deixaram os filhos vulneráveis. Na época respondiam pelas idades que variavam entre os seis e os 27 anos. A ausência da figura de progenitor e a falta de afecto dos parentes os expôs ao perigo. O tempo acabou por ser cruel para os irmãos, que num curto período viram os apoios reduzirem significativamente ao ponto de ficarem à beira da fome.
 

O encontro

A história de Ana Cuty com a Família Neves foi construída por duas crianças de 12 anos, numa amizade forjada na escola entre Wanslivia Neves e Delfine Cuty. Os encontros na sala de aula evoluíram para visitas regulares à residência de Ana, tendo na sequência estimulado a intenção de conhecer a família de Wanslivia.

"No primeiro contacto, vi e ouvi cenas com requinte de ficção e drama vividas pela família. E motivei-me ainda mais por ter encontrado três menores, um dos quais com síndrome de Autismo, e a viver em condições pouco aconselháveis para crianças”.

Depois do encontro, Ana co-liderou com a direcção de uma escola uma iniciativa que permitiu reduzir as dificuldades da Família Neves.O movimento reuniu encarregados de educação e mobilizou moradores do município do Kilamba Kiaxi em acções de solidariedade.

As acções tiveram êxitos num curto espaço de tempo, tendo registado uma redução significativa nos apoios à família depois do aumento do custo de vida dos cidadãos.

"Algumas pessoas afastaram-se, enquanto até hoje me mantive firme”.

Assumir as rédeas

Com a família à beira de um cenário que se previa agravar, Ana Cuty tomou a peito o problema da Família Neves e engendrou um plano que se resume na protecção social dos seus membros. Hoje, a professora desempenha um papel de mãe, garantindo alimentação, acesso à saúde, vestuário e educação aos irmãos de 33, 29, 24, 20, 19, 18, 14 e 12 anos de idade.

"Eles são tratados como meus filhos, e há períodos que ficam em minha casa”.

O empenho de Ana Cuty com a Família Neves dura oito anos, e conta, também, com o suporte de uma instituição escolar privada e os três primeiros filhos do casal. Entre os irmãos, dois estão empregados, enquanto os outros cinco são estudantes. "Desde que os pais os deixaram nunca mais reprovaram. São crianças muito alegres, inteligentes, guardam boas memórias dos pais. Sinto que tenho uma responsabilidade para com elas, que não consigo explicar, pois vejo-os como meus filhos”, disse.

Curiosidades

Ana Cuty disse que a relação com os oito irmãos é também sustentada por um conjunto de curiosidades, pese embora não haja qualquer laço de consanguinidade e proximidade entre as famílias.Ana nasceu no 11 de Maio e a mãe dos meninos no dia 12 do referido mês. Ilda Neves e o pai de Ana foram enterrados em sepulturas paralelas."Elas falam sempre que sou a mãe que Deus enviou para eles”.

Foco

Ana Cuty afirmou que os ‘manos’ são muito determinados e focados. Além de frequentarem a escola, estão inseridos em planos de empreendedorismo e no ramo musical. "Uma das meninas tem uma música na trilha sonora de uma telenovela angolana, enquanto outros fazem pequenos negócios”.

Wanslivia Neves tem, actualmente, 19 anos. A estudante do curso de Cardiologia, no Instituto Superior Alvorecer da Juventude (ISPAJ), assumiu a missão de se tornar a médica da família. Mas a sua inscrição neste renomado curso tem um propósito maior: descobrir ao detalhe as reais causas que levaram à morte do pai, e conhecer melhor os meandros da especialidade que trata do coração por formas a contribuir para evitar mais mortes.

Wanslivia Neves considera Ana Cuty uma mulher inspiradora e motivadora. "Sabemos que é uma mulher muito atarefada, mas com uma capacidade incrível de conciliar o tempo com os filhos biológicos, connosco e a sua profissão. É a mãe que Deus reservou para nós. Não temos motivos de queixa, pois com ela aprendemos todos os dias”, conta.

Ausência familiar

Os oito irmãos vivem distanciados da família mais alargada. Desde a morte do pai, segundo a professora, os parentes mais próximos nunca mantiveram contacto, alegadamente com receio de frequentar a moradia onde vivem os meninos.

Ana Cuty, que preferiu não entrar em pormenores, considerou os motivos injustificáveis e lamentou a atitude.Com lágrimas, explicou que ganhou mais determinação em ajudar os irmãos quando soube do abandono de que têm sido alvo por parte dos parentes. "Deixa-me mais entristecida, porque eles estavam largados à própria sorte”.

Casada, Ana Cuty disse que a ausência de familiares de consanguinidade foi preenchida pelos seus três filhos biológicos e o esposo. "Os meus filhos receberam a notícia com a maior naturalidade. Estão felizes, e até alegam que ganharam mais oito irmãos”.

Ajuda do Estado

Questionada se ao longo dos anos terá contactado alguma instituição pública para solicitar apoio, Ana sublinhou que não o fez a pedido dos órfãos. Segundo a professora, os irmãos mostraram-se irredutíveis quanto à possibilidade de viverem separados e alegam que é um pedido do pai antes de morrer.

Ana disse que sugeriu para que as autoridades fossem comunicadas sobre a presença de menores a residirem sob tutela dos irmãos mais velhos, devido à morte dos pais, mas não foi bem sucedida.

"Sempre alegaram que precisavam apenas de assistência alimentar e que nunca aceitariam deixar de cumprir o legado do pai que é manterem-se sempre unidos”.

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