Reportagem

A longa espera no Zenza do Itombe

Isidoro Natalício | Ndalatando

Jornalista

Alice Quemia, visivelmente febril e com a filha de 10 meses entre os braços, estava, segun-da-feira, sentada ao chão, no controlo do posto policial da comuna de Zenza do Itombe, município de Cazengo, na província do Cuanza-Norte, à espera de oportunidade para transpor a barreira e continuar viagem até Luanda.

13/05/2021  Última atualização 08H37
© Fotografia por: Nilo Mateus | Edições Novembro
Alice não tinha guia de marcha, que devia tratar na origem, no Huambo. Sem o documento não se pode  fazer a testagem no controlo. A jovem mulher conta que, sem teste, viajou na semana passada de Luanda para a província do Huambo, terra natal, para o funeral da mãe.


"Quando fomos, o motorista ‘ludibriou’ a Polícia aqui no controlo e assim conseguimos passar”, explica. O regresso de Alice acontece em tempo de agravamento das medidas preventivas contra a Covid-19.Como Alice, encontravam-se igualmente  no Zenza mais de 300 pessoas, à procura de oportunidade para prosseguir  viagem. Motoristas e passageiros revelaram estar desprovidos de guias de marcha, documento que as novas medidas de prevenção da pandemia impõem aos viajantes.


A guia é emitida nas administrações municipais e comunais, para quem viaja por conta própria, como a maioria das pessoas que estava no recinto do controlo.A Polícia mantinha a ordem, mas, impedidas de passar, alguns cidadãos começaram a exaltar-se, porque consideravam excessiva a medida policial."Deixem-nos ir, estamos cansados com isso”, queixavam-se alguns.Oficiais da Polícia Nacional explicavam que só deviam passar pessoas com guia de marcha e teste negativo de Covid-19 actualizado.


Na opinião do taxista Lopes Filipe Hugo Manuel, a avalanche de pessoas sem guia deve-se ao facto de a medida ter sido tomada sexta-feira e a implementação três dias depois, com o fim-de-semana pelo meio."Isso significa que a aplicação foi logo no dia seguinte, diante da necessidade de milhares de pessoas terem de circular,  pelas mais diversas razões de força maior”, disse.


Passavam em média pela barreira cerca de três viaturas a cada 25 minutos. Victória Luís, vendedora no local, revela que, durante o período  de Covid-19, viu passar pelo menos 15 viaturas. Nos dois extremos da barreira, estavam mais de 120 veículos, ligeiros e pesados, parados.


Impacto na localidade


O transportador Nataniel Miguel sugere tratamento específico para os cidadãos do campo que levam comida para Luanda, por serem iletrados e a maioria sem acesso aos meios de comunicação, como rádio, televisão e jornais, através dos quais são divulgadas as medidas adoptadas pelo Governo.


"Acredito que haja alguma falta de informação no campo sobre o assunto; tem de haver transmissão da mensagem em residências, recurso a megafones, panfletos e outros meios com impacto nas comunidades rurais”, disse.Nataniel completa a ideia aconselhando as administrações comunais a emitirem credenciais permanentes aos produtores de comida, para evitar a emissão constante de guias de marcha.


Entre os carros imobilizados em Zenza do Itombe, a maioria é carrinha que transporta produtos agrícolas para Luanda, designadamente, feijão, milho, tubérculos e derivados. Mas são as verduras (gimboa, kisaca, usse e outras) as mais afectadas, porque se deterioram devido à demora no posto de controlo, provocada pela falta de guia.


A situação preocupa, porque, numa conferência científica, realizada na semana anterior, em Ndalatando, Cuanza-Norte, o chefe do Programa Nacional de Investigação de Raízes e Tubérculos, Moniz Mutunda, revelou que a Covid-19 está a promover o consumo de alimentos produzidos localmente.


Por isso, as restrições na travessia do controlo policial de Zenza do Itombe, por falta de guia de marcha e, nalgumas situações, de testes, podem provocar, nos próximos dias,  escassez de produtos em Luanda e, como consequência, dar espaço à procura e à inflação.


"Com estes problemas aqui no Zenza, prevejo muitas dificuldades na alimentação das famílias em Luanda e noutras grandes cidades, porque a cesta básica tem de chegar a Luanda com o mínimo custo e transtornos possíveis, para, no final, conseguirmos ter preços acessíveis”, disse Nataniel Miguel.Luís Hugo Manuel pede uma moratória de uma semana na implementação da medida que obriga a guia de marcha, para facilitar a organização das pessoas.

Cenário regista alteração
Até às 16 horas de segunda-feira, ninguém arredava pé do controlo policial, ou seja, a Polícia Nacional mantinha-se firme no cumprimento das normas sobre o Estado de Calamidade e os mais de 300 viajantes a tentarem convencer os agentes a deixá-los passar.Numerosas pessoas estavam no local há mais de 10 horas, sem alimentação, nem água e algumas acompanhadas de menores.

"Estamos aqui sem comer há mais de sete horas, gastei combustível, os passageiros pagaram o dinheiro e vamos regressar?”, questiona-se o taxista Luís Manuel.Nataniel Miguel mantinha-se paciente. Confessou ter alguma esperança de continuar  viagem.  O seu pensamento começou a tornar-se realidade, quando, a partir das 16h 45, se começou a notar a circulação dos primeiros grupos de indivíduos. Em 15 minutos, mais de 100 pessoas fizeram a travessia sem guia de marcha, nem testes. Paulatinamente, a enchente começou a reduzir, porque algumas viaturas partiam.

"À noite, já sem a presença da imprensa, todo mundo vai continuar viagem”, disse Joaquim Pedro, motorista ao volante de um camião com atrelado.O movimento de pessoas gerou reflexões contraditórias entre oficiais da Polícia no terreno. Uns defendiam o cumprimento rigoroso das me-didas, outros pediam alguma cedência.

"São pessoas que vêm de longe, sem comida e nem dinheiro para o retorno. Como mantê-las aqui? Questionava-se um inspector, que pediu o anonimato.Também no anonimato, outro oficial superior da Polícia acrescenta que, entre as anormalidades, junta-se a falta de testes que, às vezes, acontece em Zenza do Itombe, o que, em consequência, faz as pessoas passar sem a prova. Quando assim acontece, a preocupação recai sobre pessoas provenientes de Luanda, o epicentro da Covid-19 no país.

"Muitos são assintomáticos, chegam às suas comunidades e convivem normalmente com os outros”, lamenta a autoridade.O enfermeiro em serviço no local, Zeni Congo, tranquiliza e, sem quantificar, sublinha que há testes suficientes. A perspectiva do técnico de Saúde suscita reflexões, porque a reposição dos testes nem sempre acompanha a dinâmica do consumo, que chega a atingir mais de 300 provas por dia.

Casos
Outra realidade preocupante é  a prolongada permanência no espaço de indivíduos que testam positivo."Na semana passada, 12 cidadãos que testaram positivo, mas assintomáticos, ficaram aqui retidos no controlo à espera da ambulância do INEMA du-rante três dias, sem alimentação. Por fim, os familiares arranjaram viaturas e vieram buscá-los, sem sabermos do destino que tiveram”, disse um oficial da Polícia Nacional.

A autoridade acrescenta que, quando chove, os doentes de Covid-19 saem da tenda de isolamento - onde existem só cinco assentos - acomodam-se num alpendre e juntam-se a outras pessoas, entre civis e agentes em serviço. Revela ainda que, durante a permanência no controle, os que reagiram positivamente ao teste Elisa utilizavam a casa de banho de serviço, disponível para todos.O Jornal de Angola testemunhou a evacuação de sete cidadãos que testaram positivo e tiveram de aguardar 24 horas pela chegada de duas ambulâncias do INEMA.

Depois de ter ficado sem registar um caso que fosse, nos meses de Dezembro, Janeiro Fevereiro e Março, entre Abril e a data presente, Ndalatando registou 40, só na pesquisa de Biologia Molecular, segundo a directora do Gabinete Provincial da Saúde, Filomena Wilson.

A responsável acrescentou que os infectados são todos provenientes de Luanda e o número pode subir quando se adicionarem os resultados dos testes Elisa. Esclarece que a responsabilidade pelo envio de testes no local é de entidades em Luanda. A província do Cuanza-Norte deve disponibilizar apenas os técnicos.

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