Política

“A instalação da PGR Luanda na cave do Tribunal de Comarca confunde a actuação na província”

Santos Vilola

Jornalista

É a província que representa mais de 50 por cento da actividade processual da Procuradoria-Geral da República (PGR) no país, por isso, tem já duas comarcas (Luanda e Belas) em funcionamento. Os municípios de Viana e de Cacuaco devem ter, em breve, as suas respectivas comarcas. Ainda assim, muitos órgãos da instituição funcionam nos tribunais, quando apenas a actividade processual de magistrados do Ministério Público (MP), procuradores que actuam directamente em processos no foro, devia ser desenvolvida nos tribunais. A sub-procuradora-geral da República, titular da província de Luanda, Maria Eugénia dos Santos, que assumiu o cargo recentemente, admite que a localização actual da PGR-Luanda não dignifica o trabalho da instituição.

03/05/2021  Última atualização 09H55
Maria Eugénia dos Santos © Fotografia por: Joâo Gomes | Edições Novembro
Muitos órgãos da Procuradoria-Geral da República (PGR) funcionam em instalações de tribunais, Serviços de Investigação Criminal (SIC) ou de esquadras policiais, quando apenas a actividade processual de magistrados do Ministério Público (MP) devia ser desenvolvida nessas instalações. Por que é que a PGR em Luanda tem a sua sede dentro do Tribunal de Comarca de Luanda (Palácio Dona Ana Joaquina)?
Esta é uma questão de há muitos anos. A PGR-Luanda sempre esteve instalada nos tribunais, porque os titulares também actuavam no foro, também faziam julgamentos e, então, para facilitar a interacção com o juiz presidente, tínhamos sede nos tribunais. Mas, com o desenvolvimento das instituições, vimos que não faz sentido sermos inquilinos de tribunal. Apenas os serviços processuais e procuradores que actuam directamente em processos no foro é que devem ter gabinetes nos tribunais. Em algumas províncias, felizmente, já existe sede própria da PGR. Em Luanda, ainda não, mas estamos a evoluir para isso. Eventualmente, pode acontecer a compra ou o aluguer de algum imóvel para instalar a PGR-Luanda. Temos uma perspectiva de, muito em breve, sairmos da cave do Tribunal de Comarca de Luanda (Palácio Dona Ana Joaquina) que não dignifica o nosso trabalho, dificulta o cidadão na localização da instituição sede da PGR em Luanda e confunde um pouco a actuação da PGR na província de Luanda com o órgão central, ou seja, ao invés de começar pela base, dirigindo-se à PGR na província, o cidadão chega a ir directamente ao procurador-geral da República, quando devia ser o inverso.

Estar na mesma instalação com o tribunal não representa uma vantagem para a PGR em Luanda na relação que devia ser de paridade com um advogado de um réu?

Estar aqui apenas nos coloca numa relação de paridade com o juiz-presidente do Tribunal de Comarca de Luanda. A transformação do tribunal provincial em tribunal de comarca fez com que chegássemos à conclusão de que nós é que estamos mal aqui. A sede da PGR na província de Luanda não deve ficar dentro do tribunal de comarca. A PGR-Luanda tem de ter as suas próprias instalações e deixar que apenas os magistrados que intervêm no foro, aqueles que trabalham com processos em paridade com o juiz é que devem  estar aqui.

O quê representa a PGR-Luanda no quadro da actividade processual nacional da instituição?
O país tem os órgãos decisores todos concentrados em Luanda. Temos de ver que os crimes mais graves e mais concertados ocorrem aqui. Luanda representa mais de 50 por cento da actividade processual da PGR no país, porque, para ter uma ideia, no âmbito dos crimes comuns, Luanda tem 16 salas. Temos já duas comarcas, a de Luanda e a do Belas, e aguardamos que sejam inauguradas as comarcas de Viana e de Cacuaco, em breve. Também temos quatro salas do Cível e Administrativo, cinco secções da Sala de Família, três secções da Sala do Trabalho, uma Sala do Julgado de Menores e áreas de Propriedade Intelectual e Industrial, com duas secções, e uma Sala de Fiscal e Aduaneiro. Temos uma sala de questões marítimas e cinco secções de Família. Das 16 secções da Sala dos Crimes Comuns, uma secção está vocacionada a processos de violência doméstica. Isto para dizer que o volume de trabalho produzido em Luanda é maior do que nas demais províncias. Então, a PGR retirou competências de investigação criminal do procurador titular para colocar num outro magistrado.   

Quando se fala da PGR, parece que se tem em conta apenas o seu órgão central. Quais são os poderes do sub-procurador titular de província, em geral, e, em particular, que responsabilidades são acrescidas ao de Luanda?

A PGR tem a sua sede na capital do país e a sua estrutura organizacional adapta-se à organização judiciária nacional. A direcção da PGR, em todo o território nacional, cabe ao procurador-geral da República, coadjuvado pelos vice-procuradores-gerais da República e pelos procuradores-gerais adjuntos da República. Nas províncias, o procurador-geral da República é representado por um procurador, com a categoria de sub-procurador-geral da República ou procurador da República, que é designado titular da província. Este procurador é acompanhado por um procurador-geral adjunto a quem reporta todas as questões atinentes à província e este, por sua vez, repassa ao procurador-geral da República. Mas fazemos uma distinção em relação às demais províncias, porque Luanda tem competência administrativa e estende essa competência aos tribunais. Nas demais províncias, o titular da província tem competência ampla, porque responde administrativamente pela província, pelos tribunais e pelos órgãos de investigação criminal. Luanda só responde administrativamente e pelas questões que têm que ver com os tribunais. A competência administrativa quer dizer que, em Luanda, todas as questões que têm que ver com a província, como questões processuais ou social, podem recair no titular da província. Mas quando se trata de processos-crime os cidadãos vão aos órgãos da Procuradoria-Geral da República que se situam nos Serviços de Investigação Criminal.

Por ser a capital, e ter mais habitantes no país, a resposta aos processos que instrui é a mais adequada e pronta?
É a mais adequada, mas provavelmente não é pronta. Talvez seja melhor dizer que não é célere. Isto em função da carência de magistrados e de técnicos de Justiça. Tem que ver também com a mobilidade dos nossos funcionários, que não têm meio de transporte, por falta de meios informáticos, material de consumo corrente… Portanto, é toda uma série de constrangimentos que enfrentamos no dia-a-dia, mas ainda assim procuramos levar a cabo a nossa tarefa com alguma serenidade e adequação que é necessária.

Esses problemas não são de hoje. Já deviam estar resolvidos?
Com certeza que já deviam ser resolvidos. Mas isso não depende só de nós. Dependemos de uma estrutura central e, claro, que um esforço tem sido feito pelo procurador-geral da República para dotar os órgãos da PGR em Luanda, e nas demais províncias, dos meios necessários para a sua actividade laboral. Também não depende só do procurador-geral da República. Depende também do Orçamento Geral do Estado, e agora com a pandemia da Covid 19, o orçamento cabimentado à PGR, no geral, e, em particularmente, a Luanda, é exíguo. Com o valor que nos é cabimentado não conseguimos levar a cabo as nossas tarefas. Temos muitas carências. Imagine que, algumas vezes, papel para imprimirmos uma acusação temos de procurar. Mas, na medida do possível, muitas vezes, a PGR central nos envia papel, tinteiro e o que for necessário. 

Da actividade da PGR-Luanda, quantos processos foram conclusos a juízo no ano passado?

De Janeiro a Dezembro do ano passado introduzimos a juízo 15.064 processos-crime. De Janeiro a Março deste ano introduzimos 2.973 processos-crime. Não temos como dizer se é muito ou pouco, porque os números estão muito semelhantes, parece que não houve um acréscimo substancial.

Tendo em conta o número de processos que dão entrada nos tribunais o número de magistrados que a PGR-Luanda tem é suficiente?
Não é suficiente. A nível da PGR em Luanda temos 68 procuradores, subdividido em três categorias. A primeira é a de sub-procurador-geral da República, que perfazem seis, depois temos 60 procuradores da República, e dois procuradores adjuntos. Este número é insuficiente, porque já tivemos um número mais acentuado. Mesmo assim nunca foi suficiente. Já tivemos quatro magistrados por secções. Neste momento, estamos com dois magistrados por secção. Há secções que só têm um magistrado. Estamos muito aquém dos números exigidos. Imagine que numa Sala do Cível e Administrativo esteja a funcionar apenas um magistrado do Ministério Público contra sete magistrados judiciais. É muito trabalho para esse magistrado do Ministério Público.

Quantos processos, normalmente, são entregues a um magistrado do Ministério Público em Luanda?
Depende das fases. Por exemplo, em termo de processos-crime, depende da demanda, porque há meses em que recebemos um número maior de processos que, depois, temos de distribuir, entre seis a oito processos para o magistrado actuar na condição de fiscalizador da legalidade e fazer o despacho de acusação ou de abstenção da acusação. Só depois deste despacho é que o processo é introduzido em juízo.

Há um concurso público promovido pelo Ministério da Justiça e Direitos Humanos, por via do Instituto Nacional de Estudos Judiciários (INEJ), para a admissão e formação de magistrados do Ministério Público. Há alguma esperança de que daí possa sair alguns magistrados para reforçar Luanda?
Claro! Recentemente, o procurador-geral da República, Hélder Pitta Grós, deu posse a 70 novos procuradores da República e estes magistrados estão distribuídos pelas distintas províncias e nós estamos agora a aguardar que um número de magistrados sejam disponibilizados para Luanda. O número satisfatório para nós seria em torno de quatro magistrados por secção, pelo menos. Para termos uma ideia, temos uma secção que só responde pelos crimes de violência doméstica, e só temos dois procuradores nesta secção, e, claro, seria necessário que houvesse mais procuradores nas salas de Família, Trabalho e Cível. É necessário que se coloquem mais magistrados. Deste concurso público não podemos contar já com novos magistrados, porque há um percurso a ser feito por aqueles que forem aprovados, desde a formação até ao exercício de funções. Eventualmente estes magistrados só devem estar disponíveis no próximo ano. Os 70 magistrados empossados recentemente pelo procurador-geral da República vão para as demais províncias e, então, aguardamos por procuradores que já estão há muitos anos nas demais províncias e que pretendem regressar a Luanda onde têm famílias. O procurador-geral já tem conhecimento de que solicitamos um número de magistrados para Luanda.  

Recomendações de organizações internacionais afins defendem um rácio de sete procuradores para cada 100 mil habitantes. Luanda tem cerca de 12 milhões de habitantes, segundo o Instituto Nacional de Estatística. Qual é o rácio em Luanda?
Não queremos arriscar em avançar um rácio de procuradores para os mais de 10 milhões de habitantes que Luanda deve ter, para não pecarmos por defeito ou por excesso. Mas o procurador-geral da República, no seu discurso de abertura do Ano Judicial, disse que o país tem 1,8 por cento de magistrado para 100 mil habitantes. É muito pouco. Para Luanda pode ser menos ainda.

Até que ponto essa carência de magistrados afecta aquilo que é o plano de fazer chegar a justiça ao cidadão?
Afecta em grande medida, porque os poucos magistrados que temos ficam mais assoberbados com muito mais processos, já que, além dos procuradores analisarem processos e fazerem despachos, têm questões do foro, têm de estar a defender causas dentro do tribunal. É toda uma série de actividades que têm de exercer e que quanto mais magistrados houver mais celeridade, melhor instrução, melhor apresentação do processo em juízo teremos para que a acusação do Ministério Público não decaia.

Quantos técnicos de Justiça tem a PGR-Luanda?

São 198. Já tivemos muito mais. Mas, em função da abertura de concursos de ingresso para a magistratura do Ministério Público, assistimos a um êxodo de funcionários a integrar a classe de magistrados  e, por esta razão, vamos perdendo técnicos de Justiça. É normal que as pessoas almejem uma progressão na carreira, mas há alguns anos que não há concursos públicos de ingresso para técnicos de Justiça. Portanto, estamos a trabalhar com aqueles que temos. E com esta pandemia, temos muitos que estão em grupo de risco, o que faz com que haja alguma morosidade processual.

Os magistrados em Luanda estão tecnicamente preparados para investigar a criminalidade económica e financeira, como o peculato e branqueamento de capitais?
A formação é a licenciatura em Direito, acrescida da formação no INEJ e a superação individual. Em relação à criminalidade económica, no ano passado tivemos apenas cinco processos em Luanda. Este ano, de Janeiro até aqui, já temos dois processos. Os magistrados do Ministério Público junto dos Serviços de Investigação Criminal apenas fiscalizam a instrução de processo. Quem faz a instrução propriamente dita são os técnicos dos Serviços de Investigação Criminal (instrutores ou investigadores criminais).

"Falha na comunicação institucional provoca excesso de prisão preventiva”
Há casos de excesso de prisão preventiva nas cadeias de Luanda sobre processos que ainda tramitam nos tribunais?

Os excessos de prisão preventiva algumas vezes decorrem do facto de haver alguma falha na comunicação entre o tribunal e as cadeias de Luanda. Isto porque as nossas comunicações são, por vezes, demoradas. Muitas vezes, a cadeia transfere um recluso para uma outra instituição penitenciária sem dar a conhecer ao tribunal ou, quando dá a conhecer, é tardiamente. A escassez de magistrados, funcionários e de meios técnicos e de locomoção também provoca excessos de prisão preventiva. Mas o excesso, muitas vezes, nem é por haver excesso propriamente dito. É porque o processo saiu de uma fase para outra. E como a Lei da Medidas Cautelares impõem prazos para a instrução, acusação e julgamento, então, vai daí que se afigura que um recluso esteja em excesso de prisão preventiva. Muitas vezes, quando vamos localizar o processo e fazer a triagem, constatamos que afinal não há excesso.

Qual é a justificação para estes casos de excesso de prisão preventiva?
Normalmente, a instituição penitenciária envia para nós uma lista, com nomes e números de processos. E porque se perde, às vezes, o rasto do processo, vem discriminado como excesso de prisão preventiva, mas nós temos aquele cuidado de procurar e fiscalizar o processo, para repor a legalidade. Mesmo a propósito dos excessos de prisão preventiva, a PGR tem um gabinete específico para essas questões, que é o Gabinete de Fiscalização e Execução Judicial das Penas, que vela estritamente pelas questões de excesso de prisão preventiva. Muito recentemente, no Tribunal Supremo, por orientação do Presidente da República, foi criada uma comissão de trabalho, integrada por procuradores da República de diversas secções de crimes, magistrados do Ministério Público e judiciais e alguns magistrados afectos aos Serviços de Investigação Criminal. Esta comissão andou pelas cadeias para fazer uma triagem destes casos. Neste trabalho, fomos ao encontro de casos mais graves de excesso de prisão preventiva que nos obrigou a restituir a liberdade muitos cidadãos. Esperamos, muito em breve, driblar este mal que enferma a nossa instituição.

O Ano Judicial foi aberto sob o lema "Por um sistema de justiça célere, humanizado e mais próximo do cidadão”. O quê a PGR-Luanda está a fazer para levar a cabo acções para concretizar esse desiderato?
A PGR Luanda, nestes desafios, chamou a si a responsabilidade de executar o projecto "Fale com o procurador", criado pelo procurador-geral da República no início do ano. Isso vem ao encontro do lema que foi adoptado para a abertura do Ano Judicial – "Por um sistema de Justiça mais célere, humanizado e mais próximo do cidadão”. Então, estamos a aproximar-nos dos cidadãos ou fazê-los aproximarem-se da PGR. O cidadão pode ter contacto com um procurador numa esquadra policial ou num tribunal. É recebido pelo procurador que, além de ouvi-lo, o orienta como fazer que a sua preocupação seja atendida. A nível de Luanda, fizemos um edital que colocamos na vitrina do tribunal para chamar a atenção dos nossos cidadãos que podem e devem contactar o procurador e fazer com que estejamos mais próximos do cidadão e o cidadão próximo do procurador. Este projecto está a ser implementado em todas as províncias. Em Luanda, está também a ser implementado este projecto a nível do SIC.

De que forma podem os cidadãos entrar em contacto com o procurador?
Em Luanda, ao invés da criação de uma linha telefónica, preferimos que os cidadãos se dirigissem pessoalmente ou por escrito à PGR-Luanda. Temos uma equipa de peritos para dar tratamento a qualquer caso.

Terminou sexta-feira a tradicional "Semana da Legalidade”, habitualmente incluída nas actividades que assinalam a instituição da PGR. O quê foi feito em Luanda?
Agendamos uma série de actividades, ainda que restritas por conta da Covid 19. Tivemos debates em televisões para falar do novo Código Penal e do teletrabalho (Direito do Trabalho). Organizámos uma mesa redonda com antigos procuradores titulares de Luanda e uma feira do livro (jurídicos) de autores magistrados. No sábado, fizemos uma doação de bens não perecíveis a uma instituição de caridade.

PERFIL
Maria Eugénia dos Santos

Formação
-Licenciada em Direito - Universidade Agostinho Neto
-Pós-graduação em Protecção de Menores - Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Experiência profissional
-Ingressou na PGR em 1988, em Benguela.
-Ingresso na magistratura na categoria de procurador municipal da República em 1996, em Luanda.
-Procuradora da República, em 2008.
-Sub-procuradora da República, em 2019.
-Directora adjunta do Gabinete do procurador-geral da República, entre 1998-1999.
-Trabalhou no Tribunal Provincial de Luanda V Secção dos Crimes, no Julgado de Menores e no Gabinete
de Análise, Consultoria e Inquéritos da PGR.

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