Opinião

A hermenêutica das palavras e da linguagem jurídica

Como disciplina que beneficia-se da linguística, do materialismo e da psicanálise sem se colocar como herdeira servil, o Direito deve procurar compreender como um texto funciona, como ele produz sentidos, sendo ele concebido enquanto objecto línguístico-histórico.

07/02/2023  Última atualização 06H05

Assim, a importância de se analisar a sua imagem na Literatura está em reconstruir determinados elementos sobre o mundo jurídico apreendidos pelo escritor, tornar o próprio mundo jurídico menos abstracto e poder aperfeiçoar a forma de expressão e repensar seu papel, imagem e inserção social, enfim, repensar a imagem social das suas profissões, já que a fala, o discurso e a linguagem possuem sempre sentidos plúrimos, dependendo de quem os realiza, em que momento, em que espaço, em que contexto, em que tonalidade, em que forma. Isto quer dizer que, independentemente da formulação teórica Direito e Literatura ou Literatura e Direito, a sua análise é um instrumento fundamental para se compreender o sentido do discurso e a sua actualização contemporânea.

 

Surrealismo jurídico na estética literária de Agostinho Neto

Em toda poesia de Agostinho Neto, encontram-se indicativos para o estudo do Direito, da história e da sociedade. A Revolta de Catete de 1922 é um bom exemplo de manifestação nativista nessa região, a qual foi apoiada pelo pai de Agostinho Neto e que ocorrera no mesmo ano do nascimento deste filho. Capitaneada por António de Assis Júnior, director do famoso jornal O angolense e também conhecido como "o advogado dos nativos”, a manifestação contou com a participação e apoio de Cordeiro da Mata, Lourenço Mendes da Conceição e Agostinho Pedro Neto. Consistiu na acusação de um crime de tentativa de "revolta indígena” por parte do seu mentor, pelo facto de ele ter escrito uma representação que denunciava os maus-tratos, os baixos ordenados e a tributação abusiva a que os trabalhadores dos algodoais estavam submetidos. "A conclusão das averiguações instauradas em 1922 apontavam para a iminência de uma rebelião fundada numa doutrina e propaganda nativistas cujos focos de agitação se espalhavam pelas cidades e regiões mais importantes do território” (Kandjimbo, 2012).

Diante das vivências acumuladas no entre-lugar desses, o olhar de Agostinho Neto pôde desde cedo estar atento às referidas antinomias, e às suas consequentes clivagens sociais, mas também às suas manifestações de resistência. O ambiente em que Agostinho Neto viveu os seus primeiros anos revelam-se importantes, pois é por via disso que evoca toda essa gama de questões, as quais concorreram para a elaboração da sua poesia,  composta continuamente por perspectivas amplas e variadas.  O poema "Civilização ocidental” extraído da colectânea Obra Poética Completa (p.45), por exemplo, evidencia esse campo textual em que o processo de "naturalização” das brutalidades impostas pela colonização é colocado em xeque:

Latas pregadas em paus/fixados na terra/fazem a casa/Os farrapos completam a paisagem íntima/O sol atravessando as frestas/acorda o seu habitante/Depois as doze horas de trabalho escravo. Britar pedra/acarretar pedra/britar pedra/acarretar pedra/ao sol/à chuva/britar pedra/acarretar pedra/A velhice vem cedo. Uma esteira nas noites escuras/basta para ele morrer/grato/e de fome. (Neto, página 45).

 Com o passar dos anos, Neto vai completando a maturidade e maior visibilidade, a sua filosofia de intervenção ganha novos contornos e visões, quando, em busca de modalidades de estudos superiores inexistentes em sua terra natal, se dá o seu estabelecimento em Portugal, proporciona-lhe o encontro com distintos companheiros oriundos de outras partes do império, com quem compartilhava das agruras do colonialismo e os fundamentos da crítica anticolonial que, em consonância com aqueles que permaneceram, teceram a angolanidade. Toma lugar e, já enquadrado, faz recurso à utilização de instrumentos que fortalecem a intenção de ampliar a descrição de cenas e de cenários angolanos/africanos têm, com o propósito de induzir à reflexão sobre o projecto de consciencialização defendido por ele, projecto que, conforme observações de Luís Kandjimbo (2008, p. 92), tem as suas raízes nos princípios de justiça da sua formação.

Neto acentua o seu tom de perpetuação nacionalista, escrevendo as grandes peças políticas, históricas e culturais, algumas delas por via da voz poética, Neto conclama-se a força capaz de entrar "nas sanzalas/nas casas/ nos subúrbios das cidades” e inspirar "as consciências desesperadas”. Essa força advém dos ritmos africanos, figurativamente relembrados na menção a instrumentos como o quissange e a marimba, cujos sons se misturam ao violão e ao saxofone, conclamados para compor "os ritmos de ritual orgíaco” (Neto, in "Aspiração”).

A impaciência e ao mesmo tempo a fé de Neto não consistem na denegação do seu direito, mas antes no facto de que ele, um cristão metodista, estar imbuído de fé no Direito - quase, diríamos, como um cristão à espera da segunda vinda de Jesus Cristo. É uma fé inquebrantável, uma fé que nada pode abalar, uma fé alimentada pelo próprio pulso de fúria intemporal, desaba sobre a sua consciência e determinação que o arranca do reino das ilusões de espera, onde a equivalência "Sou eu/ somos nós” evidencia para o leitor o carácter do chamamento colectivo dessa enunciação. E, tendo essa colectividade múltiplas vozes, é natural que a palavra, ainda que em seu uso ordinário ou em português padrão, esteja carregada de várias significações. Tornada tensa, a enunciação poética em sua pluralidade actua poderosamente sobre o enunciado da força opressora:

Sou eu minha mãe a esperança somos nós os teus filhos partidos para uma fé que alimenta a vida.

(Neto, 1985, p. 35)

Em outras palavras, a poética de Neto evidencia-se vitoriosa, pois, produzida por um ser pragmático, a sua vitória, de consciência iluminada do Direito, desaba sobre as trevas que envolvem um homem colonizado pelo sistema, em cuja consciência respira liberdade.

 

Conclusão

 Os sentidos e as interpretações, evidentemente, são abertos e dependem do enfoque e dos dados escolhidos por cada sujeito. A orientação dialógica é naturalmente um fenómeno próprio a todo o discurso, pois "trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objecto, em todas as direcções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma interacção viva e tensa”. Se o objectivo é reafirmar, o debate que realiza e acolhe as reais possibilidades de conexões entre Direito e Literatura ou Literatura e Direito e, em particular, entre Linguística e Direito, neste entremeio, a eleição deve pender para a importância da interdisciplinaridade, pois  tal pressuposto só vem dar resposta ao esgotado dogmatismo positivista académico e ao enclausuramento imposto por falsas e ilusórias concepções alienadas de ensino que induzem ao imobilismo individualista e carreirista, tão ao gosto daqueles que, protegidos pelas concepções fragmentárias do "fim da história”, olham para a frente como se não houvesse mais memória, passado, linguagem.

A análise do Discurso pode contribuir para revelar aspectos não percebidos, por vezes,  no discurso jurídico, seja através da linguística, do materialismo histórico ou da psicanálise, já que, em seu sentido interpretativo mais alargado, pode verificar-se se a sua análise é uma disciplina cuja formatação teórica e metodológica fornece instrumentos para se estudar as relações existentes entre o Direito e a Literatura, independentemente a que escola se situe o autor (Literatura in law ou Law in literatura).

A fim de compreender melhor a questão da interpretação do Direito através do método comparativo com outros campos do conhecimento, e em especial a Literatura, para aumentar a autenticidade, é preciso que aos juristas seja recomendado não só a interpretação literária, mas outras formas de interpretação artística, nas quais "foram defendidas muito mais teorias da interpretação que no Direito, inclusive teorias que contestam a distinção categórica entre descrição e valoração que debilitou a teoria jurídica”. O desenrolar do drama residiria "num esforço hermenêutico, para a discussão que é secularmente travada entre a lei, seu significado gramatical e a justiça, como abordagem axiológica, que é a paráfrase do humano, no contexto histórico-literário, pois a tecelagem literária-jurídica-filosófica constitui-se num exercício que desvela a lei, Direito e justiça, permeando o dito e o interdito, pontuando a palavra, suas lacunas, sua organização discursiva, e estabelece a relação entre palavra e mimese, verbo, imagens e logos. São lugares diferentes da fala, mas dotados de saber e sabor, que se recobrem da força de interacção.


David Capelengue

Poeta e ensaísta *

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