Cultura

A Filosofia como escopo, o Direito e a Literatura como corpo (Fim)

A questão da relação entre filosofia e literatura, ou vice-versa, não se trata de uma disciplina iluminar a outra, nem de recobrimento ou absorção de uma pela outra, pois aqui, definitivamente, a literatura não é o outro da filosofia.

15/01/2023  Última atualização 08H00
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Trata-se, ao contrário, de perceber que há desde o surgimento da Estética no final do século XVIII, acentua Leonel dos Santos, um remanejamento das hierarquias no campo do conhecimento que culmina com a efetuação de uma equivalência entre as duas, de modo que tanto a literatura como a filosofia são, a partir de então, essencialmente produção e exposição de pensamento. Assim, em António Vieira, Fernando Pessoa ou Antero de Quental, as obras não exibem apenas forma, estilo e aspectos retóricos, mas "substância e conteúdo de pensamento”, tarefa que exige do crítico uma nova postura interpretativa.

Segundo a perspectiva Kandjimbiana, a Moral busca o seu sentido no próprio homem, tendo em si tudo o que constitui a humanidade do homem. O que ela deduz daí resume-se na afirmação de que não devemos nunca considerar um ser humano como objecto, como coisa manipulável e utilizável: devo respeitar nele a sua humanidade e tratá-lo como ser razoável (que age segundo a razão). A acção moral é acção do ser razoável que quer pôr-se de acordo consigo mesmo. A acção do homem moral é acção do homem que quer agir sobre si mesmo segundo a razão-liberdade, sendo acção no mundo e sobre o mundo.

Toda obra é pessoal, única e insubstituível, na medida em que brota de uma confidência, um esforço de pensamento, um assomo de intuição, tornando-se uma expressão. A literatura, porém, é colectiva, na medida em que requer certa comunhão de meios expressivos (a palavra, a imagem), e mobiliza afinidades profundas que congregam os homens de um lugar e de um momento, para chegar a uma comunicação.

A partir do que foi exposto, podemos perceber que, se quisermos delimitar o espaço literário e o espaço filosófico, necessitaremos adoptar como critério algo que ultrapasse a questão do formato do texto – e, igualmente, do status do enunciador. Não há consenso acerca da classificação de obras, nem por parte dos filósofos, nem dos literatos. Semelhante divergência ocorre entre os leitores.

De modo geral, os textos filosóficos são identificados pela presença da argumentação no desenvolvimento de teses, assim como pela análise de conceitos. Trata-se de um aspecto essencial do discurso filosófico, porém não único. Segundo Cossutta (2001, p. 5), "a filosofia argumenta, mas não se reduz à argumentação. Aliás, essa dimensão nem sempre é visível: ela pode ser trabalhada por outros modos de expressão tais como a irema, o sarcasmo em Nietzsche, ou a exortação e a edificação em Epíteto”. A esse respeito, Tatiana Levy (2003) nos lembra que, desde os seus primeiros escritos sobre literatura, Blanchot salientava uma distinção fundamental entre a palavra quotidiana e a literária. Para ele, a palavra literária não se opõe à realidade, nem a representa, mas sim cria a sua própria. Na linguagem comum, isto é, aquela que usamos quotidianamente, as palavras correspondem a algo que é exterior a elas, a saber, o mundo. Mais precisamente, remetem às coisas que existem no mundo. Essa linguagem corriqueira é, portanto, instrumental; ela é um signo que está subordinado ao mundo. Por outro lado, na linguagem literária, as palavras têm um fim em si mesmas, uma vez que não se referem a um mundo exterior a elas. Mais do que isso: a linguagem literária funda a própria realidade, dá credibilidade às coisas no exacto momento em que as nomeia, em que as enuncia.

Instado a analisar as intervenções do agir filosófico de Willard O. Quine, Kandjimbo (2015)diz que os seus contributos "constituem uma das mais expressivas iconoclastias da Filosofia Analítica no século XX”.

Mas, a lógica da filosofia Kandjimbiananão se acomoda com o auge argumentativo que lhe chega ao raciocínio, pelo contrário, interpreta e critica: Desde logo, a crítica aos dois dogmas do empirismo moderno e a ruptura com os paradigmas das correntes dominantes da Filosofia Analítica: o reducionismo radical e a dicotomia entre conceitos analíticos e conceitos sintéticos. Segundo a primeira doutrina, "cada enunciado com sentido pode ser considerado traduzível em enunciado (verdadeiro ou falso) sobre a experiência imediata” (QUINE 1999, p. 164). Para Quine, não são as palavras conformadoras dos enunciados que contam de modo isolado. Numa perspectiva holística, a unidade de significação empírica é o todo. Nesta medida, as afirmações sobre o mundo exterior enfrentam o tribunal da experiência sensorial não individualmente, mas apenas como pessoa colectiva. (Kandjimbo, 2015).

Por mais que tenhamos a pretensão de substituir o ponto de interrogação pelo ponto final, só conseguimos uma pausa, pois trata-se de indagações para as quais efectivamente não há uma resposta silenciadora. Em certa medida, podemos até chamá-las de perguntas tolas - por que fazê-las, se nunca chegaremos "à” resposta?! Por outro lado, são perguntas pertinentes, pois nos colocam frente a nossas limitações e, talvez, igualmente, potencialidades existenciais. Ao mesmo tempo, elas nos provocam, nos desafiam, impõem seu "poder de esfinge”, como se colocassem o dedo indicador à nossa frente e, em tom de ameaça e deboche, dissessem: "- Ei, decifra-nos ou te devoramos!”

Dentre os exemplos de filósofos que diversificaram sua escrita filosófica por meio de tratados, aforismos, diálogos, dramatizações, romances e poesia, podemos citar Jean-Paul Sartre. O filósofo fugiu à regra ao recorrer à dramatização, por meio de peças teatrais como "As Moscas” (1943) e "Entre Quatro Paredes” (1945), ou ainda, ao escrever romances como "A Náusea” (1938) e "A Idade da Razão” (1945). Martin Heidegger é outro nome importante nessa lista, considerando-se o facto de que ele compreendeu a poesia e, em especial, a do poeta Friedrich Hõlderlin, como o lugar privilegiado de manifestação do Ser, isto é, um lugar de abertura, de revelação de verdades veladas (Heidegger, 2014).

A esse respeito, Kandjimbo diz que "a proposta de uma abordagem da instituição literária à luz da Filosofia Analítica não pode prescindir do caudal das rupturas produzidas por Wittgenstein e Quine na segunda metade do século XX. No contexto africano, os problemas suscitados pela instituição literária e suas práticas, especialmente a interpretação e ensino das Literaturas Africanas, mobilizam igualmente reflexões metodológicas inscritas na tradição da Filosofia Analítica. Ora, se o referido debate sobre as convenções constitutivas da literatura e das comunidades e estratégias interpretativas, desencadeado num ambiente tipicamente europeu e norte-americano, parece ter produzido soluções aos problemas que se colocam, o teste para determinar a persistência dos problemas ocorrerá com a resposta à seguinte pergunta, já formulada na secção anterior deste capítulo: existirão propriedades culturais universais?”Seguindo o raciocínio da lógica da filosofia Kandjimbiana, a resposta à pergunta formulada será respondida por um dos filósofos africanos, Kwasi Wiredu, que considera que "a filosofia pode ser universal, mas mantém fortes vínculos com a cultura de um determinado lugar. O que se observa no tipo de indagações que estimulam a investigação filosófica e o conteúdo das teses que daí emergem”, (Wiredu, 1980, p. 33). Wiredu,citado por Kandjimbo (2015), afirma que "a relevância da cultura verifica-se nos efeitos que a linguagem produz sobre o pensamento filosófico. Tal facto legitima a vigilância epistemológica dos africanos que estudam filosofias estrangeiras em línguas estrangeiras (p. 34).”

Como Friedrich Hõlderlin percebeu a poesia como o lugar privilegiado de manifestação do Ser, isto é, o lugar de abertura, de revelação de verdades veladas (Heidegger, 2014), Kandjimbo, por sua vez faz recurso a Stein Haugon para afirmar que "as convenções constitutivas e reguladoras de que fala Stein Haugon Olsen correspondem àquilo a que Wittgenstein designa por gramática da palavra "saber” ou "regras a seguir” que se assemelham ao significado das palavras "conhecer”, "ser capaz”. Por outras palavras, a competência para seguir uma regra traduz "a capacidade de obedecer a uma ordem”. Como aponta Horban (1993), no ensaio filosófico adopta-se uma espécie de "método de persuasão racional”.

Na chamada "concepção clássica” da literatura, o texto literário era assumido como um tipo de representação do mundo, onde o autor retratava, a partir de seu olhar particular, uma realidade à imagem daquela na qual estava inserido. Neste caso, a linguagem literária comunicaria ao receptor (leitor) o ponto de vista do emissor (autor), bem como o seu posicionamento no mundo. E aí, o discípulo volta a questionar: "Mestre, se a literatura é um desdobramento do real, como ela haveria de ser desprovida de realidade? E sendo também realidade, por que a filosofia não se aproximaria dela? E, se a linguagem está para a comunicação, segue-se daí urna falta de atractivo ou mesmo uma ausência de importância da obra literária?”

E o mestre responde. Proença Filho, retornando às palavras de Maurice-Jean Lefebve (1980), diria que não, pois tanto a originalidade da visão do autor, quanto à adequação da linguagem ao conteúdo expresso, tornam a obra bela, pois, e aqui voltamos a perguntar, se a palavra literária não designa o mundo, qual é a sua função? O que exprime a obra literária? É a partir dessa noção que tentamos pensar uma possível relação entre filosofia e literatura, ao encontrarmos a resposta para tais perguntas nos próprios escritos de Blanchot, que diz que "a obra - a obra de arte, a obra literária - não é acabada, nem inacabada: ela é”.

As indagações e respectivas possíveis respostas nos podem abrir pistas. Ao que indicam os livros anteriores, para ser filosófico um romance pressupõe a exploração de questões filosóficas. Mas o que isso quer dizer? O que são questões filosóficas? Como distinguir uma questão filosófica de outra não-filosófica? Penso que, antes de serem literalmente respondidas, tais perguntas nos abrem caminhos para possibilidades de pensamento e de investigação acerca de um cruzamento essencial aqui – no caso, aquele entre literatura e filosofia.

Refinando o tom e elevando o nível do seu permanente exercício argumentativo, a lógica da filosofia Kandjimbiana acentua que, "reconhecendo as virtualidades de uma conceitualização que ultrapassa a dicotomia entre enunciados analíticos e enunciados sintéticos, no âmbito da nossa investigação o conceito de instituição literária com que operamos deve ter em atenção o contexto cultural em que se efectiva. É o que pode suceder quando se aplica a metodologia da Filosofia Analítica ao estudo das literaturas orais em África. A este propósito, a especificidade dos problemas filosóficos africanos verifica-se na determinação dos ‘modos de existência’ da obra literária, sobretudo no momento em que se exigem respostas às seguintes perguntas: o conceito de literatura, de obra literária, comporta o texto oral? Como se caracteriza o texto oral? As correntes da Filosofia da Literatura que investigam a dimensão ontológica da obra literária não reconhecem qualquer singularidade aos problemas suscitados pela literatura oral. Tendo o seu pressuposto fundado no predomínio do texto escrito, elas dão primazia à abordagem geral do estatuto ontológico da obra literária ignorando a oralidade como prática discursiva e forma de manifestação da textualidade. Com efeito, a apologia de uma Filosofia da Literatura visando às determinações ontológicas da literatura oral supõe a observância de algumas condições. Para Mamousse Diagne (2006), a existência da filosofia num meio cultural caracterizado pela oralidade deve ter em atenção as questões associadas ao contexto ‘performancial’ no qual se produz o discurso, aos procedimentos que a sua produção implica e à avaliação dos seus efeitos”.

Assumindo, então, as máximas mais recorrentes - tal como descrevemos -, é possível afirmar que as tentativas de aproximação entre literatura e filosofia geram um certo desconforto, sobretudo nos filósofos. Para muitos destes, a literatura é sinónimo de risco para o texto, no sentido de que, se mal-empregada, pode nos conduzir à incoerência, por outro, ela revela-se como um aspecto criativo do texto, que não o restringe à mera expressão.

 

Dos factos filosóficos, do Direito e da Literatura

A história do movimento Direito e Literatura, quer no Brasil, quer nos Estados Unidos da América, apresentava interessantes contribuições e abordagensno que diz respeitoà  tematização  da  lei pelo viés literário, de análise dos discursos e, em especial, do discurso normativo. O referido movimento tenta uma abordagem da lei através da literatura, ou seja, há um esforço de compreensão do jurídico e sua linguagem. Segundo Arnaldo Godoy (2012), Direito e Literatura caracterizados como dinâmicas que sedesenvolvem pela actuação humana, mediantetécnicasdecomunicação (escritas,faladas,  etc.)  tradicionalmente caminhavam próximas, já que "o homem das leis o era também de letras”. Porém, a racionalização formalista do direito, a burocratizaçãosuperlativa  do  judiciário, bem como a suposta busca de objectividade podem ter afastado essas fontes do saber.

Direito e Literatura podem dizer respeito tanto ao estudo de temas jurídicos na Literatura, e neste caso estar-se-ia referindo ao Direito na Literatura; como à utilização de práticas da crítica literária para compreender e avaliar o Direito, as Instituição jurídica, os procedimentos jurisdicionais e a justiça, e neste caso, estar-se-ia referindo ao Direito como Literatura.

No primeiro caso, é o conteúdo da obra literária que interessa ao Direito, enquanto, no segundo, a própria forma narrativa da obra pode servirpara melhor  compreender  a  narrativa jurídica, como,  por exemplo, as sentenças que os juízes constroem.

Um dos principais desafios epistemológicos a serem enfrentados pelos teóricos e profissionais da Filosofia, do Direito e da Literatura nos dias de hoje é redimensionar o estatuto científico dessas disciplinas a partir das transformações provocadas pelas novas possibilidades de interacções hermenêuticas. É facto que as novas tecnologias (e os novos produtos delas decorrentes) permitem embaralhar alguns lugares antes definidos como fixos nas actuações e rotinas profissionais. Tal desafio é necessário para que os profissionais da área evitem, de um lado, o risco de não mais serem capazes de definir a especificidade de sua actuação técnica e profissional, e de outro, a armadilha de "comemorarem” as novas possibilidades e desafios hermenêuticos como a "emancipação” total dos actores sociais, todos agora transmutados em "fazedores” de conteúdos e opiniões, cuja qualidade, cientificidade, e impacto académico se encontrariam em pé de igualdade com os produzidos pelos "veículos tradicionais”.

A poesia, tal como desde os seus primórdios, é uma composição sublime, que representa um ser, um povo, sendo ela, conforme os autores supracitados, portadora de uma vocação catártica ou libertadora do mundo.

 

Considerações finais

Feita esta viagem, o mestre pode se sentir descansado, pois o discípulo absorveu o suficiente, por lhe ter dito que perante tais factos, a literatura abarca, deste modo, e ao mesmo tempo, um desaparecer e um aparecimento. Nela desaparece a palavra quotidiana, ao passo que se revela tudo aquilo que a linguagem comum costuma recusar:

"As palavras, como sabemos, têm o poder de fazer desaparecer as coisas, de as fazer aparecer enquanto desaparecidas, aparência que nada mais é senão a de um desaparecimento, presença que, por sua vez, retoma à ausência pelo movimento de erosão e de usura que é a alma e a vida das palavras, que extrai delas luz pelo fato de que se extinguem, a claridade através da escuridão”. (Blanchot, 2011, p. 37).

Como se pode perceber, nota-se que a ambiguidade se mostra como uma característica essencial da Literatura, pois "inaugura um espaço outro, onde a obra não vem nem complementar nem substituir o mundo, mas se apresenta como outro no mundo”,  (Menezes, 2013, p. 202), ou seja, uma variante do nosso mundo, que funciona como uma imagem invertida dele, onde aquilo que estava escondido e silenciado, aparece, e o que estava à mostra, desaparece e se cala: "Tudo se passa como se na literatura o espaço, o tempo e a linguagem se constituíssem num devir-imagem, em que o mundo se encontra desvirado, reflectido” (Levy, 2003, p. 26).

 

David Capelenguela- Poeta e Ensaísta

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Referências bibliográficas

NUNES, B. Literatura e filosofia. In: No tempo do niilismo e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1993.

NGAL, Georges. O artista africano: tradição, crítica e liberdade criadora. In: Société Africaine de Culture (org.). Le Critique Africain et son Peuple comme Producteur de Civilization. Paris: Présence Africaine, 1977. 

QUINE, Willard. Two Dogmas of Empiricism. In MARGOLIS, Eric; LAURENCE, Stephen (ed.). Concepts. Core Readings. Cambridge; Massachusets; London: Massachusets Institute of Technology, 1999.

KANDJIMBO, Luís. A Institucionalização da Literaturas Africanas como Problema Filosófico. In: ContraCorrente: revista de estudos literários e da cultura / número 7 (2015.2)  / p. 125-135

SCHILLER, F. A educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras, 1990.

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