Opinião

A filosofia anti-colonial nos PALOP- X

Luís Kandjimbo |*

Escritor

O antagonismo ontológico entre os povos Africanos colonizados e o Estado colonial português é o tópico da nossa conversa com o qual encerramos a série temática, num exercício em que se procura determinar o fundamento da luta anti-colonial que reside na identidade ontológica dos povos que reconquistaram o direito à autodeterminação.

19/03/2023  Última atualização 06H50

 Etimologicamente, antagonismo é uma unidade lexemática que deriva de termos do grego: "agon”, que significa luta e "antagonizomai”, que remete para a luta contra um inimigo. No entanto, os referentes do antagonismo são universais. Têm equivalentes nos contextos civilizacionais e linguísticos das populações dos actuais PALOP.

Por antagonismo ontológico entendo a conflitualidade real que consiste na oposição entre dois sujeitos históricos ou duas comunidades históricas, constituindo uma polarização entre o Eu e o Outro, o inimigo. Para a sua segurança ontológica colectiva, o Eu procura preservar a sua existência e identidade, recorrendo a dispositivos que permitem evitar a efectivação da hegemonia civilizacional e genocida do inimigo, o Outro.

Libertação e marxismo

Assim, afigura-se necessário abordar o conceito de antagonismo, à luz da história da filosofia para uma compreensão do fundamento da luta anti-colonial, nos nossos Países. No vocabulário dos intelectuais que integravam as fileiras das forças políticas anti-coloniais, o conceito de antagonismo e seu espectro semântico era usual, até por razões que se prendem com as simpatias pela dialéctica e filosofia marxistas, especialmente nas suas versões soviéticas e maoístas. Foi na antiga União Soviética que, a partir de 30 do século XX, a dialéctica marxista conheceu desenvolvimentos teóricos que orientariam as estratégias de influência no Movimento de Libertação Nacional em África, na América do Sul e na Ásia. Nas décadas subsequentes, a China transformar-se-ia igualmente em centro de difusão de correntes filosóficas marxistas-leninistas, tendo como base de inspiração o pensamento confuciano.

Em África, durante as décadas de 60 e 70 do século XX, período das guerras de libertação nacional, muitos dirigentes políticos adoptaram perspectivas marxistas. Por exemplo, os textos de Agostinho Neto (1922-1979), Amílcar Cabral (1924-1973), Mário Pinto de Andrade (1928-1990), Samora Machel (1933-1986) e Viriato da Cruz (1928-1973)têm sido seleccionados e integrados em antologias de textos de marxistas Africanos. Por outro lado, nos países de língua francesa e inglesa distinguiram-se várias filosofias de líderes políticos, tais são os casos de Kwame Nkrumah (1909-1972), presidente do Ghana, Leopold Senghor (1906-2001), presidente do Senegal e Sekou Touré, (1922-1984), presidente da Guiné-Conackry. Ao formular as propostas do "consciencismo filosófico” em 1969, Nkrumah situava-se na linha do pensamento marxista, conferindo importância à contradição dialéctica e suas categorias para a elaboração de uma filosofia da revolução africana, no contexto da luta anti-colonial, entendida como antagonismo irreversível. Da Ásia vem a teoria dialéctica de Mao-Tse-Tung (1893-1976) que recorre à analogia da bomba para explicar a sua lógica do antagonismo. Podendo explodir a qualquer momento, a bomba concentra em si um conflito aberto para resolver velhas contradições e produzir coisas novas. No dizer de Mao, assim se pode compreender o desencadeamento das revoluções e as guerras revolucionárias como expressão do antagonismo na luta de classes, uma contradição que implica a existência de um inimigo.

Teorização pós-marxista

Nos círculos da esquerda académica europeia, existem filósofos que acompanharam a luta anti-colonial e se dedicaram à teorização do antagonismo. Um deles é o italiano Antonio Negri que publicou obras de referência, no âmbito dos referidos debates, entre as quais as suas lições sobre a obra de Marx "Marx Beyond Marx. Lessons On The Grundrisse” [Marx além de Marx. Lições sobre os Grundrisse (Elementos de crítica da economia política),1979], proferidas na Escola Normal Superiorde Paris, em 1978. O interesse da argumentação de Antonio Negri reside no modelo analítico que propõe sobre o antagonismo. A lógica dialéctica comporta contradições dialécticas e categorias objectivas. Já a lógica do antagonismo comporta categorias subjectivas que emanam das necessidades e desejos dos sujeitos históricos. Donde, a primeira opera com contradições não-antagónicas. A segunda funda-se nas dinâmicas das contradições antagónicas que conduzem necessariamente ao aniquilamento de um dos oponentes pelo outro. Por isso, aquela deve ser substituída por esta. Na senda de Marx, António Negri entende que nas crises do capitalismo é a violência antagónica que dá sentido ao processo argumentativo sobre os diferentes fenómenos do sistema. Não é a dialética da crise. Esta justifica apenas a subjetividade do antagonismo e suas categorias.

Igualmente relevante, no contexto académico e pós-marxista da nova esquerda europeia, é o livro de Ernesto Laclau (1935-2014)e Chantal Mouffe, «Hegemony and Socialist Strategy. Towards a Radical Democratic Politics, 1985»[Hegemonia e Estratégia Socialista. Rumo a uma Política Democrática Radical].Os seus autores reconhecem que a contradição tem lugar no plano da frase e do seu significado, no campo da verdade proposicional. Isto quer dizer que as contradições se verificam  através da relação que o conceito estabelece com a realidade, ao nível lógico-conceptual.

Para Ernesto Laclau e Chantal Mouffeo, antagonismo é uma relação em que a presença do Outro impede que o Eu seja totalmente o Mesmo. A identidade do Eu e do Outro é impossível. Diferentemente da contradição, no antagonismo a presença do Outro é real. Não é uma impossibilidade lógica. Onde há antagonismo, não é possível a realização plena do Eu. Apesar de ter enunciado a noção de antagonismo, abrangendo a "natureza ontológica” de lutas reais, entretanto, Laclau não aprofundou as reflexões sobre essa dimensão ontológica do antagonismo, onde caberia uma ontologia política, tal como escreve em "The Rhetorical Foundations of Society” [Fundamentos Retóricos da Sociedade].

Paternalismos coloniais

A história da luta anti-colonial e o estudo da filosofia que lhe está subjacente devem constituir uma via para o conhecimento da estrutura  ontológica  do  antagonismo que opunha os povos Africanos que lutavam pela sua autodeterminação e o Estado colonial português. Estão em causa as identidades dos povos de Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Interessa-me estudar a ontologia política anti-colonial, na medida em que a tematização do antagonismo ontológico é bastante escassa. Nas reflexões produzidas pelos filósofos Africanos e outros das gerações subsequentes, não ocorre qualquer referência às consequência desse tipo de antagonismo, no contexto da luta pela autodeterminação. Apesar disso, as relações internacionais africanas evidenciam a sobrevivência de paternalismos coloniais  como se não tivesse ocorrido nenhum cataclismo político. O que nem sempre está ao alcance de quem, de fora, aborda a ontologia política dos PALOP e de Portugal, após a descolonização. Esse fenómeno de sobrevivência de paternalismos coloniais e suas aporias suscitou a atenção do filósofo político americano-paquistanês, Najeeb A. Jan, no seu livro "The Metacolonial State” [O Estado Metacolonial], uma obra que tem como objecto fenómenos históricos e políticos do Paquistão. Sob o olhar de uma crítica ontológica considera que fenómenos semelhantes ao paternalismo colonial corresponde ao que designa como "colonização da vida pela metafísica” ou"a colonização/politização da vida pelo poder”.

Antagonismo ontológico

O nosso tópico de conversa tem a ver com a ontologia política. Se o colonialismo é um sistema, tal como dizia o escritor e filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), o anti-colonialismo é uma filosofia que articula um contra-discurso perante o sistema colonial. Do ponto de vista ético, o sistema colonial constitui um sistema do mal. Configura-se aí a possibilidade de um antagonismo que permite identificar o conflito de duas entidades políticas: 1) por um lado os povos colonizados e suas civilizações; 2) por outro lado, o Estado português e o seu aparelho político colonial, suportado por uma identidade cultural hegemónica.

Portanto, desenha-se um antagonismo ontológico entre as duas comunidades. Por um lado, as comunidades dos povos colonizados e suas civilizações resistem, nos seus territórios. Por outro lado, a imposição de uma civilização ocidental cuja hegemonia decorre de contingências históricas que as narrativas eurocêntricas ocultam.

Como vimos, a recusa do reconhecimento do direito à autodeterminação dos povos colonizados e do direito à descolonização, por parte dos representantes da suposta vocação imperial portuguesa, traduz a soberba de uma falsa superioridade civilizacional. Eles apresentam-se como defensores do sentimento colonial consubstanciado pela "portugalidade”.Esse antagonismo ontológico, que se manifesta ao nível de comportamento individual e grupos de pessoas, no contexto da luta anti-colonial, adquire expressão enunciativa através de formulações conceptuais que passaram a veicular o sentimento de coesão no combate contra o inimigo comum e a sua "portugalidade”. Assim, são elaborados cinco neologismos: a) Angolanidade; b) Cabo verdianidade; c) Guineidade; d) Moçambicanidade; e) Santomensidade. São conceitos filosóficos devido à sua força doutrinária. Cada um deles revela a identidade colectiva das respectivas comunidades históricas. Os líderes políticos dos movimentos de libertação nacional, os intelectuais e os activistas localizavam os traços da sua coesão nesses conceitos. Mesmo quando não o faziam formalmente, a natureza do antagonismo perante a "portugalidade” exige tal estratégia argumentativa e enunciação filosófica.

Ontologia política

Não é necessariamente um palavrão que às vezes só os filósofos empregam. Designa realidades que vivemos, no nosso quotidiano. Apesar dos modismos da chamada "guinada ontológica”, não trazemos o presente tópico à conversa com o pensamento na sua fortuna mediática, apenas. No caso das relações que se estabelecem entre os PALOP e Portugal, nos contextos posteriores à efectivação do direito à autodeterminação e do direito à descolonização, revela-se necessário compreender o lugar dos sujeitos históricos e respectivas identidades. A importância que a história tem na vida dos povos recomenda essa vigilância ontológica que consiste em escrutinar o lugar dos antigos oponentes, protagonistas do antagonismo e da guerra. Tal necessidade parece justificar-se na medida em que de todas as formas históricas de antagonismo registadas entre os PALOP e Portugal, o antagonismo ontológico é o mais insidioso. São ainda evidentes, hoje, fenómenos da sua pervivência. Por isso, são legítimas as perguntas. É verdade que o grau de violência que caracterizou o antagonismo político entre os PALOP e Portugal não tem actualmente manifestações estruturais nas respectivas sociedades? Não há assimetrias nas relações entre os PALOP e Portugal como consequência das resistências contra a hegemonia civilizacional ocidental? Como se define hoje o antagonismo ontológico cuja particularidade, no passado, consistiu em negar a existência do Outro Africano?

As respostas às três perguntas implicam uma definição, ainda que sintética, do que se entende por ontologia política, no presente contexto. Trata-se de um domínio de estudo através do qual se procura submeter as instituições a uma análise crítica e compreender  as questões políticas que dizem respeito à existência das comunidades de seres humanos cujas sociedades, neste caso, foram profundamente marcadas pelos efeitos de uma guerra que conduziu à descolonização.

Conclusão

Portanto, é necessário conhecer a "natureza ontológica” do antagonismo anti-colonial nas projecções do presente. Numa perspectiva instrumental, pode dizer-se que as referidas assimetrias nas relações entre os PALOP e Portugal permitem operacionalizar o conceito de "metacolonial” usado por Najeeb A. Jan, quando faz alusão à "colonização da vida pela metafísica” que se apresenta sob a forma de manifestações involuntárias ou voluntárias de subalternização perante a cultura do Outro.

*Ph.D. em Estudosde Literatura, M.Phil. em Filosofia

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