Opinião

A cooperação com a Espanha

Ismael Mateus

Jornalista

O Presidente do Governo espanhol veio esta semana confirmar o que os mais atentos já sabem há muito tempo: Espanha quer estabelecer com Angola uma parceira diferenciada. Pelas palavras do Presidente João Lourenço, Angola também quer, mas as nossas dúvidas são se teremos condições efectivas para uma cooperação estratégica de longo prazo ou se, como muitas vezes nos acontece, a meio do caminho mudam-se os gostos e as vontades e tudo muda.

12/04/2021  Última atualização 06H15
Convém dizer, como nota prévia, que todas as grandes propostas de cooperação do Ocidente têm mais ou menos o mesmo formato e parte do dinheiro que nos é doado acaba retornando para aqueles países, seja sob a forma de salários a expatriados contratados para acompanhamento dos projectos, seja para pagamentos de empresas, serviços, viagens aos seus países. Neste aspecto, os espanhóis não são diferentes dos outros.

A diferença começa na capacidade de fazer acontecer, de transmitir conhecimentos e na disponibilidade real para deixar conteúdo com os angolanos. É aqui que os problemas acontecem mais do lado angolano do que do espanhol. Dai a nossa dúvida: Estamos preparados para essa cooperação?

Há uns anos, quando chegámos à direcção do IFAL, herdamos um acordo de cooperação com espanhóis denominado Projecto de Desenvolvimento Local e Fortalecimento Institucional dos Municípios de Angola- PRODEFIMA, assinado em 2009 entre a AECID – a agência espanhola de cooperação e o Ministério da Administração do Território. Se há sucesso nessa gestão do IFAL ele se deve a uma direcção do ministério que nos deu orientação e suporte e ao prodefima, pelas metodologias de trabalho e intercâmbios.

Em 2013, fomos responsáveis por reajustes no Prodefima, o que permitiu redefinir melhor os interesses das partes e concretizar a ideia do fortalecimento da capacidade institucional dos municípios. Vem daí o projecto de formação de jovens/adolescentes dos 164 municípios do país. Ou seja, todos os municípios (sem excepção) puderam fornecer ao IFAL os seus melhores alunos finalistas da 8ª classe para que tais jovens fizessem, em regime de internato, o curso médio de administração local e autárquica e retornassem aos seus municípios de origem.

Calculava-se que, por conta desse projecto, em 2017/2018 deixássemos de ter municípios sem funcionários de nível médio (o que era uma realidade de mais de 60% dos municípios em 2011). Com a entrada desses jovens entre 18 e 20 anos de idade, a média de idade dos funcionários da administração local cairia gradualmente nos dez anos seguintes até estabilizar em 2022/2023 (eram as previsões) abaixo dos 30 anos. Em termos de conteúdo, a cooperação espanhola também nos ajudou a montar um curso médio e cursos de formação profissional para administradores, vice-governadores e governadores.

Os alunos do curso tinham aulas de direito autárquico, inglês de cinco níveis, línguas nacionais dos seus municípios de origem e de uma outra opcional, tinham leitura obrigatória de literatura angolana e 10 semanas/ano de estagio laboral não remunerado nos municípios para ganhar prática de atendimento ao publico e outras tarefas. Com a participação da equipa do professor José Octávio Van - Dúnem, os administradores e governadores tinham também currículos adaptados às suas funções, incluindo conteúdos sobre o relacionamento com autoridades tradicionais, tratamento de resíduos, cidades inteligentes, sistema de gestão financeira e patrimonial etc. etc. Para dar suporte a todo esse sistema, foi criado o Ifal online, um sistema de formação à distancia que permitiria aos jovens, mas também aos administradores, vice-governadores e governadores continuarem os seus estudos sem necessidade de se deslocarem às grandes cidades.

Nos nossos sonhos poderiam ser estudos superiores e especializados, mas as burocracias impediram.
Foi com a cooperação com a Espanha que foram feitos os primeiros ciclos de conferência autárquicos, trazendo experiências de países africanos, como Cabo Verde, Africa do Sul, Gana e Nigéria, e europeus como Portugal e Espanha ou do Brasil.
Dez anos depois, lamentavelmente não resta nada desses projectos tão promissores e que pareciam estruturantes do futuro da administração local.

O IFAL acabou e, com ele, todo o sistema de formação da administração local. Todo o investimento de milhões de dólares e de produção de conhecimento feitos pelo MAT e seus parceiros, entre os quais os espanhóis, foram literalmente para o lixo. Não há hoje réstia desse trabalho, nem mostras de que tenha sido substituído por algo melhor. Os jovens por ordem do próprio MAT não foram admitidos nas administrações, ficando à espera de concursos públicos nunca realizados. As formações acabaram e acções correctivas das distorções e assimetrias no perfil dos funcionários da administração local jamais foram realizadas. As conferências sobre as autarquias produziram um livro cheios de experiências dos outros países, mas contam-se pelos dedos os nossos decisores que o leram e levaram em conta.

Ao vermos o Presidente do Governo espanhol a assinar novos acordos é inevitável pensarmos que o problema não está nos outros. "Estamos preparados para uma cooperação séria de longo prazo?”
A nossa experiência diz que não. Não conseguimos até agora descortinar um argumento razoável para o próprio Governo ter decidido destruir o sistema de formação da administração local, sobretudo quando o país tem desafios tão grandes como modernizar e rejuvenescer a administração local, capacitar quadros para as futuras autarquias e criar um funcionário da administração local de novo tipo.

As questões financeiras que motivaram a junção de três institutos não justificam a completa ausência de uma estratégia sobre a formação na administração local, a gratuidade dessa formação, o papel do ensino à distancia. Estamos preparados para projectos sérios?

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Opinião