Opinião

A Comissão da Reforma da Justiça e do Direito e as funções dos magistrados judiciais

A recente criação e composição dos integrantes da Comissão da Reforma da Justiça e do Direito têm estado a suscitar as mais variadas opiniões, sobretudo entre os juristas, funcionários dos tribunais, académicos e fazedores de opinião.

06/06/2020  Última atualização 00H07

Apesar de algum desconforto que o assunto terá, eventualmente, causado pelo respeito que se impõe a todos e devido aos membros dos órgãos de soberania, o mesmo reveste-se de particular importância, quanto mais não seja em matéria do estímulo ao debate e o aprofundamento de conhecimentos para dignificação dos representantes dos tribunais.
Em alguns círculos de opinião tem-se questionado se, no âmbito da separação de poderes, os juízes (magistrados judiciais), membros de um dos três órgãos de soberania, que irão integrar a referida comissão, subordinar-se-ão ou não a um auxiliar do Titular do Poder Executivo (ministro). Estarão ou não colocados numa posição de inferioridade hierárquica em relação ao coordenador da Comissão?
Primeiro é preciso não ter dúvidas que a Constituição da República de Angola (CRA) é a Lei Suprema do país, que consagra o princípio da separação dos três poderes que, como se sabe, são independentes entre si, mas possuem interdependência funcional.
Convém lembrar que os órgãos de soberania são constituídos pelo Presidente da República, a Assembleia Nacional e os tribunais.
Em termos numéricos temos: ¬(1) Presidente da República, (220) Deputados e (700) juízes. Apenas estes, e só estes, são os membros dos órgãos de soberania em Angola. O Presidente da República por ser um órgão unipessoal na chefia do Executivo deve chamar-se Titular.
O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, o Legislativo pela Assembleia Nacional e o Judicial pelos tribunais, sendo (43) de jurisdição comum e (18) Tribunais Militares dos quais (8) de sede e (10) de zona. Cada tribunal é um órgão de soberania por si só.
Com efeito, na actual organização judiciária angolana, os tribunais estão enquadrados numa estrutura plural e complexa composta por (4) tribunais Superiores, (20) tribunais de Comarca, (11) tribunais provinciais e (8) antigos tribunais Municipais, sendo que, no exercício de funções, estão (45) Juízes Conselheiros, (38) Juízes Desembargadores – tomaram posse - e (533) Juízes de Direito. Estão no regime de jubilação (46) juízes jubilados.
É quase senso comum o entendimento de que a reforma em curso terá a ver essencialmente com matérias de um dos órgãos do poder de Estado, ou seja, o poder judicial.
Por imposição do texto Constitucional deve ser o Presidente da República, na sua qualidade de Chefe de Estado, a promover e garantir o funcionamento dos órgãos do Estado. Nas suas ausências, quando impossibilitado de exercer as suas funções e nas situações de impedimento temporário, o Vice – Presidente da República substitui o Presidente da República (n.º 3 do artigo 131º da CRA).
Estamos de acordo com aqueles que entendem que são competências do Chefe de Estado as matérias sobre a Reforma da Justiça e do Direito que, por natureza, incluem uma ampla panóplia de poderes de foro político.
Todavia, sendo os juízes membros dos órgãos de soberania poderão subordinar-se nas comissões de trabalho de Reforma da Justiça e do Direito ou noutras a um não membro dos órgãos de soberania?
É consabido que os membros das comissões de trabalho obedecem a convocatórias para as reuniões, recebem as instruções de organização e funcionamento, chamamentos vários, em suma, obedecem às orientações de hierarquia.
Ainda que se propale aos quatro ventos que os juízes não estarão a elaborar sentenças durante os trabalhos da comissão (função jurisdicional), em socorro da verdade, eles terão que sujeitar-se às orientações sobre as políticas do Executivo.
Seguindo o texto da CRA, a indicação dos representantes dos magistrados judiciais perante outras entidades e, principalmente, perante o Executivo pertence ao Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) e não podem os juízes no exercício da judicatura serem remunerados por qualquer outra actividade, salvo o exercício da docência e investigação científica.
Ao abrigo do n.º 5 do artigo 179.º da CRA, os juízes em Exercício de funções não podem exercer qualquer outra função pública ou privada, excepto às de docência e investigação científica de natureza jurídica.
Uma corrente muito forte de juristas entende que como questão prévia dos trabalhos da actual Comissão da Reforma, no âmbito da pretendida dignificação dos magistrados judiciais, deve ser analisada esta questão, ou seja, se os juízes podem desempenhar outras funções (consultoria) e receber orientações hierárquicas ainda que de outros membros de órgãos de soberania...
Neste sentido, e citando Carlos Maria Feijó, António Rodrigues Paulo, Cremildo Paca, Adão de Almeida, Marcy Lopes e Sihanouk Fortuna, no livro da Constituição da República de Angola: enquadramento dogmático – A nossa Visão, volume III, 2015, edições Almedina, S.A., pag. 500. “ A independência dos tribunais carece da independência dos próprios juízes. Os dois tipos de independência são complementares entre si e a linha que os separa é extremamente ténue.”
Outra corrente defende que não se deve perder mais tempo elegendo como prioridade os debates sobre a organização judiciária, formas processuais, alçadas e eficácia da justiça.
Alguns integrantes das Comissões de Reforma da Justiça e do Direito anteriores advogam uma reforma intercalar começando à reforma pelas normas de organização e funcionamento dos órgãos de justiça que tenham a ver com as instalações, equipamentos, formação dos operadores, gestão judiciária e estatísticas.
Tudo indica que desta vez, a Comissão da Reforma da Justiça e do Direito não será um palco de meras vaidades académicas, ou seja, semelhante aos tempos idos quando alguns integrantes daquela comissão respondiam, invariavelmente, à pergunta, sobre o que estavam a fazer dizendo: “estou a corrigir um Código”.
As mais variadas abordagens deste tema vão no sentido de que é preciso definir o modelo de reforma pretendido e os objectivos que se pretendem alcançar num curto período de tempo.
Os académicos reclamam por uma metodologia de trabalho inclusiva e a definição do âmbito de actuação da Comissão para que se produzam resultados mensuráveis. Apelam à inclusão nas equipas técnicas de outras áreas de saber, com destaque exemplificativo à História, Sociologia, Economia, Psicologia e que, no final das actividades, seja apresentado o relatório do trabalho efectuado pela Comissão de Reforma anterior, assim como os sucessos, insucessos e as respectivas contas.
Entendemos que os trabalhos da Comissão da reforma poderiam ter sido entregues à academia. Concluídos os trabalhos, as propostas da academia – gerais - seriam encaminhadas para o Executivo que, de seguida, procederia à ampla audição dos vários sectores afins da sociedade, momento em que, do mesmo modo, as instituições e organizações apresentariam os seus estatutos e regulamentos de organização e funcionamento – normas internas – para alteração e promulgação, algumas, e outras que seriam enviadas à Assembleia Nacional.

* Bastonário da Ordem dos Advogados de Angola