Opinião

A chuva e o bom tempo

Jacques dos Santos

Escritor

No momento em que iniciava a escrita desta crónica chegou-me uma mensagem a comunicar que em Luanda, àquela hora (11 da manhã), chovia intensamente, a cântaros, o barulho da chuva era raivoso.

21/03/2021  Última atualização 10H54
 Minutos antes, tinha lido com a atenção devida, uma grande entrevista do ministro de Estado para a Coordenação Económica, Dr. Manuel Nunes Júnior, concedida ao Jornal de Angola e dada à estampa nesse mesmo dia. Um documento a profetizar dias de bom tempo para o nosso futuro. Num discurso diferente na forma como a situação económica do país foi exposta, o ministro abriu-se ao público. Não obstante as habituais dúvidas e interrogações sobre quando o sol irá sorrir de verdade para nós, o ministro falou, sub-repticiamente ou às claras, dos vários campos da economia e das saídas que temos para alcançarmos o bom tempo.

Fiquei satisfeito, pois embora conhecedor de algumas das questões em causa, mais ciente fiquei do imbróglio da banca e da falta de dinheiro, dos quadros técnicos qualificados que não temos, assim como da desorganização de certos serviços. Como era previsível, abordou a Covid-19 e suas trágicas consequências, também os ténues sinais de retoma da economia que surgem de projectos melhor estruturados e acompanhados, agora com o vinco firme da esperança de melhoria da situação. Foi ainda capaz de dizer corajosamente que "num ambiente de amiguismo e corrupção as perdas são generalizadas”.

Esta atlética afirmação indicia que a famigerada corrupção ainda incomoda e faz os seus estragos no interior do aparelho da administração do país. Se me agradaram as respostas, também me satisfizeram as perguntas inteligentes e oportunas de Miguel Gomes, o entrevistador que esteve muito bem no seu papel. "O que terá estado na base desta mudança tão radical na trajectória do crescimento económico?”, foi uma das várias perguntas colocadas ao governante, perante o desfilar dos êxitos que anunciava.

Já ouvi várias vezes o doutor Manuel Nunes Júnior a responder às inúmeras questões que fazem do problemático tema da economia nacional e do seu prolongado declínio uma espécie de tabu, mas pareceu-me ter sido este, o mais esclarecedor depoimento sobre a actual situação económica do país que me foi dado apreciar nos tempos que correm. Adoptando uma linguagem simples que facilita qualquer cidadão na compreensão dos fenómenos da crise e que fazem da recuperação económica a mais importante das batalhas que temos de travar, o documento não esconde as dificuldades que o Executivo enfrenta para sair com êxito desta difícil empreitada.

Do ponto de vista do cidadão em que me posiciono, bastaria o espectro do desemprego e da fome para me colocar em sentido e permanecer onde estou, no mundo da dúvida. Porque, de facto, são imensas as nossas debilidades estruturais e os compromissos políticos, apesar de serem enormes as potencialidades materiais e humanas que temos para as superar. Continuo a ver com mágoa que em alguns casos bastaria apenas melhores escolhas e mais algum diálogo. A entrevista levou-me naturalmente a pensar pela enésima vez no imenso buraco em que mergulhamos nestes cinco anos de recessão e naquilo que já foi possível fazer. Mas no ar ficará a pairar por muito tempo a infalível pergunta que é minha e de milhares: "como chegamos a isto?”.

Terminada a leitura da suculenta entrevista que augura bom tempo para o futuro de Angola, mais uma, duas, três mensagens bateram-me à porta para mostrarem-me imagens dramáticas das consequências da chuvada que, num instante, colocou em rotineiro "estado de sítio” a cidade capital de Angola. A bem-amada e mal-amada chuva voltava a castigar o bom tempo. Uma senhora vendedora de rua morta por electrocussão, jazia na Avenida Rainha Ginga a ser filmada de vários ângulos, sem vestígios da presença de nenhuma autoridade (é nesses momentos que, com tanto desempregado a precisar de trabalho, se questiona a ausência da protecção civil, dos bombeiros e entidades correlativas).

E enquanto vacilo na classificação dos dramas da chuva e do bom tempo, aprecio nas imagens que me chegam umas atrás de outras, o espectáculo anunciado todos os anos neste período. Neste, com mais um intérprete de luxo no papel do maldoso da fita: o amontoado de lixo com as desgraças que prenunciam. No impressionante sarau, permito-me ver nas partes altas da cidade, do subúrbio à baixa, a água a tomar velocidade iguais a de rios de grande correnteza, levando na sua trajectória todo a porcaria acumulada nestes dias em que à pandemia que estamos com ela, se veio juntar a problemática da sujeira acumulada na cidade. E então olho para o céu e faço uma prece. Nem que seja em regime experimental, que surja uma Governação apoiada em gente inteligente, capaz e oriunda da sociedade  civil, suficientemente independente, que não dependa da vontade de partidos políticos.

Absurdo? Pode ser. Pelo menos, que não venham coladas às ideias loucas do irresponsável que ouvi ontem num áudio a berrar que em Benguela só pode ter êxito um governador negro, não pode ser branco nem mulato. Estupidez e preconceito a quanto obrigas! É sonhar muito alto, sei disso, mas ainda assim e mesmo que chovam canivetes, deixem-me sonhar. A verdade insofismável é esta. Como estamos não podemos continuar, porque não vamos a lado nenhum.
Desculpem-me qualquer coisinha e até domingo, à hora do matabicho, haja chuva ou faça bom tempo.

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