Entrevista

“A bolsa de estudo salvou a minha vida”

Mateus António Esteita é um jovem angolano nascido na província do Uíge. Devido à guerra civil teve de mudar-se para Luanda em companhia dos pais. Passou por várias vicissitudes, até conseguir uma bolsa de estudo para a Rússia.

07/02/2021  Última atualização 14H36
Mateus António Esteita, bolseiro © Fotografia por: Cedida
A vinda forçada do Uíge  para Luanda fez de si um empreendedor. Você lembra o que viveu quando chegou à capital?

Nasci na província do Uíge, numa fase de conflitos armados, que nos forçou a vir para Luanda aos seis anos de idade. Luanda era a cidade dos meus sonhos, acreditava que as estrelas de Luanda brilhavam mais do que as das demais províncias e que na capital eu poderia realizar todos os meus sonhos. Ao chegar em Luanda encantei-me com o mar porque foi o primeiro lugar que o meu pai me levou a conhecer e até hoje sempre que estou triste vou para a marginal ver o mar.
 
Qual é a sua área de formação académica?

Sou formado em tecnologia química de combustíveis, que é basicamente refinação de petróleo e petroquímica. Tenho mestrado com excelência em segurança de processos na indústria de petróleo e gás.
 
Falar de Mateus Esteita é falar de "O Bolseiro - A vida de um sonhador”?

Sou abordado por muitos jovens e tratam-me simplesmente como O Bolseiro, por conta do sucesso do meu primeiro livro e também por, de certa forma, falar e escrever sobre a situação dos bolseiros angolanos na diáspora, e não só.
 
Foi eleito "Estudante Estrangeiro do Ano” pelo Ministério do Ensino Superior da Federação Russa, em 2017. O que o INAGBE representa na sua vida?

A bolsa de estudo salvou a minha vida e o INAGBE foi o canal usado para a realização do sonho de estudar na diáspora. Sou grato a esta instituição do governo que tem como missão gerir as bolsas de estudos dentro e fora de Angola. E quando soube que viajaria para a Rússia para me formar, sabia que tinha de segurar com todas as forças esta oportunidade e que devia estudar de forma diferente. O meu desempenho académico e a participação activa em vários projectos científicos e culturais fez com que fosse eleito estudante estrangeiro do ano na República da Bashkiria em 2017, pelo Ministério do Ensino Superior da Rússia.

Fale um pouco do conteúdo do seu livro "O Bolseiro - A vida de um sonhador”...

"O Bolseiro” é um livro inspirador que suscita o interesse do público em geral e de pessoas que querem conhecer o mundo, em particular a Rússia, e convida os leitores a conhecer as aflições, dramas e conquistas dos estudantes angolanos na diáspora. Pode-se encontrar nele aspectos políticos, históricos e sócio-culturais da bolsa de estudo e da aposta na formação dos quadros angolanos, desde o Reino do Congo até aos dias de hoje.
 
Em 2020 foi nomeado pelo MIPAD (organização que em parceria com a ONU destaca as pessoas de descendência africana mais influentes no mundo abaixo dos 40 anos de idade). Como foi possível isso?

A minha nomeação para o reconhecimento do MIPAD aconteceu por conta das actividades sociais e académicas que tenho vindo a desenvolver com os jovens em Angola e na Rússia. Tive o apoio do Ivanilson Machado, que foi uma espécie de mentor para esta nomeação, uma vez que ele faz parte da lista dos primeiros angolanos nomeados no MIPAD. Foi uma experiência muito boa, não fui finalista mas conheci muita gente importante que só via na TV e na Internet e hoje estamos na mesma plataforma.

Nota-se que tem uma vida bastante corrida. Compartilhe connosco alguns segredos... Fale dos livros que leu, de que mais gostou?

Sim, é verdade. Sou um jovem sonhador, gosto de realizar e ajudar a realizar sonhos, adoro estar em dinâmicas que agregam valores aos jovens. Durante o meu tempo de estudante na Rússia me tornei numa pessoa super versátil, buscando conhecimento e habilidades fora da minha área de formação, conhecimento este que procuro compartilhar com os jovens com que tenho mantido contacto por meio de palestras, webinars e treinamentos. O segredo tem sido a dedicação, foco e disciplina, mas o maior segredo é a paixão por partilhar o que aprendemos dentro e fora da academia. Já li uma grande diversidade de livros e o que mais despertou a minha atenção foi "A Vila Assombrada pelos Maquixi”, de Lucas Cassule.

"Sempre estive ligado ao associativismo”

É palestrante e mentor de vários projectos académicos, sociais e filantrópicos em Angola e na Rússia. Como é possível transmitir conhecimentos para jovens africanos e russos?

Sempre estive ligado ao associativismo académico em Angola no ensino médio. Na Rússia dirigi vários projectos académicos e sociais, liderei a organização dos fóruns científicos e os festivais do Dia de África na cidade de Ufa, fui membro da SPE (Sociedade dos Engenheiros de Petróleos) onde participei em vários fóruns sobre a indústria de petróleo na Rússia e noutros projectos que me permitiam transmitir conhecimento aos jovens africanos e russos. Hoje utilizo vários meios para transmitir conhecimento, desde webinars, palestras e a publicação de artigos de opinião como por exemplo na Forbes Angola e noutros meios de informação.
 
Quais são as línguas em que o livro "O Bolseiro - A vida de um sonhador” está traduzido?

Neste momento estamos a terminar as negociações para a tradução para o inglês, russo e francês.
 
O que tem em carteira neste ano que começou? Compartilhe projectos, trabalhos, sonhos, etc...

Estou a trabalhar no meu segundo livro "O Bolseiro - Desafios Pós-Formação”, em que vamos falar do drama que muitos estudantes enfrentam após a sua formação, na busca do primeiro emprego. Dentro da Ideiaslab estamos a desenvolver um plano para o acompanhamento pós-formação dos estudantes, que está assente em três pilares: apoio, mentoria e enquadramento profissional. Eu e os restantes membros da equipa da Engenharia Angola vamos continuar com os Webinars EA, onde abordamos várias temáticas e procuramos apresentar soluções à sociedade e especialmente ao governo.
 
Participou como voluntário no fórum da cúpula dos BRICS, que se realizou na cidade de Ufa em 2015, auxiliando as delegações do Brasil e África do Sul. Quais são as experiências adquiridas e o que transmitiu aos membros destas delegações?

Participar no fórum dos BRICS foi uma experiência única e inesquecível, tive o prazer de trabalhar com a comitiva da presidente do Brasil, na altura e do presidente da África do Sul. Estar a poucos metros de distância dos presidentes destes países foi emocionante e, em particular, estar com Vladimir Putin na mesma sala foi inesquecível. Aprendi muito sobre questões políticas, económicas e culturais dos BRICS. Troquei experiências e falei sobre Angola com vários homens de negócios e diplomatas. com alguns dos quais ainda mantenho contacto.
 
O MIPAD, apoiado pelas Nações Unidas, integrou o seu nome ao lado de figuras como a ex-ministra Adjany Costa, a ambientalista Cecília Bernardo e o embaixador da Paz na Alemanha João Kanda. Sente-se realizado?

Senti-me honrado e lisonjeado por ter sido nomeado pelo MIPAD na classe de 2020 e a representar Angola com ilustres figuras como o João Kanda, a Adjany Costa e a Cecília Bernardo, que foram finalistas em 2020. Ainda não me sinto realizado, mas estou orgulhoso do caminho que tenho traçado e aos poucos vou me aproximando da realização.
 
O que mudou desde então?

Não mudou muita coisa [risos], tive o prazer de estar na mesma plataforma com políticos, empreendedores e outros jovens de descendência africana que têm impactado o mundo com as suas acções e projectos.

Muitos estudantes africanos depois de formados regressam aos países de origem e não encontram emprego, nem sequer trabalham nas áreas de formação e passam por vicissitudes. Tivemos conhecimento que tem criado fóruns de debate em Angola e não só, que visam encontrar soluções...

Estou envolvido em vários projectos que visam apresentar soluções aos estudantes e ao governo sobre a valorização do capital humano. Concordo que precisamos formar quadros nas melhores universidades do mundo mas também precisamos ter um plano de acompanhamento pós-formação deste quadros, porque até ao momento não há nada concreto e exequível. O governo investe milhões na formação de quadros em Angola e na diáspora mas depois não faz acompanhamento dos mesmos, por isso é urgente que se criem políticas que promovam o acesso ao primeiro emprego aos recém-formados e de preferência dentro de um programa nacional de estágios.
 
Tivemos conhecimento que largou um emprego promissor na Rússia numa das maiores petroquímicas daquele país para regressar a Angola. O que o motivou a tomar esta decisão?

Largar um emprego na Rússia na minha área de formação foi uma decisão difícil, mas era um risco que estava disposto a correr e sabia das dificuldades que encontraria ao regressar para Angola. Acreditava que seria uma mais valia em Angola, atendendo às habilidades e experiências que trazia. Sentia que seria útil para os projectos de refinaria e petroquímica que o país está a implementar e isso contou muito na minha decisão de regressar, mas, infelizmente, as coisas não correram como planeado, então procurei me readaptar ao contexto do país.
 
Mateus Esteita está ligado a vários projectos de orientação académica e profissional. Desde a docência, comunicação social até ao empreendedorismo. O que um estudante recém chegado ao país de origem deve fazer imediatamente?

Não existe uma dica mágica para estes casos, atendendo a realidade social de cada estudante. O que tenho passado aos estudantes e não só, é que devem se posicionar no mercado como uma marca e que as empresas não estão interessadas no seu diploma mas sim nas suas habilidades e na capacidade de dar respostas, é isso que os empresários procuram nos recém formados.
 
Quais são as suas áreas de investimentos no domínio do empreendedorismo?

Eu tenho investido mais tempo em partilhar conhecimento com jovens e ajudá-los a realizarem os seus sonhos, transformando ideias em projectos sustentáveis que possam solucionar os problemas sociais que o país vive. Pratico um empreendedorismo social, de partilha de conhecimento, porque acredito ser o tesouro mais importante que alguém pode oferecer.
 
O seu rosto é conhecido em diferentes partes do mundo por causa do seu contrato de publicidade com marcas de sucesso mundial. Esta experiência gerou mais conhecimento?

A experiência de ver o meu rosto a dar vida a muitas marcas nacionais e internacionais me enche de orgulho e tudo isso começou de forma acidental em 2015. Hoje estou em mais de 25 países e tenho mais de 150 fotografias em publicidades. Ter o meu rosto em várias partes do mundo aumenta o meu interesse em saber mais sobre os lugares e projectos para os quais o meu rosto é solicitado.
 
Hoje assiste-se ao nascimento de um movimento reivindicativo por parte de muitos jovens angolanos. Quais são as opiniões que tem sobre estas manifestações e qual é o seu conselho?

As manifestações são indicadores de insatisfação de um grupo e é legítimo. Os jovens têm direito a reivindicar os seus direitos e isso está plasmado na lei. Sou completamente contra a violência, destruição ou incitação ao ódio entre irmãos angolanos, precisamos de nos unir e juntos construirmos a pátria que tanto sonhamos. Precisamos ser tolerantes uns com os outros, porque no final de tudo somos todos jogadores da mesma equipa que é Angola.


PERFIL
Nome

 
Mateus António Esteita


Data de nascimentoo
1 de Janeiro
de 1989


Naturalidade
Uíge


Filiação
Mateus Esteita e Maria António Vieira  


Estado civil
Solteiro


Filhos

Um


Perfume
CK


Marca de roupa
Não tenho uma marca específica


Cor predilecta
Preta  


Defeito
Teimosia


Prato preferido
Funji com fúmbua


Passatempo
Ler, escrever e futebol  


Local para férias
Qualquer província de Angola


Cidade predilecta
Barcelona, Espanha


Tem casa própria?
Não  


Tem carro próprio?
Não


Sente-se realizado?
Ainda não


Sonhos
Deixar um legado positivo à juventude

Entrevista de Ferraz Neto 
    

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