Cultura

A Batalha de Kifangondo

No dia 11 Novembro de 2022, o Jornal de Angola publicou um caderno especial(“Independentes há 47 anos”) alusivo à data da proclamação da nossa Independência Nacional e às comemorações de mais um aniversário (1975-2022). Este procedimento anual do Jornal de Angola é importante porque permite manter viva a chama do 11 de Novembro de 1975.

22/01/2023  Última atualização 06H08
© Fotografia por: DR

Entretanto, nessa reportagem consta um texto da autoria do cidadão Horácio Dá Mesquita, intitulado "Os Pendentes da História”. Ele teceu considerações sobre a independência e a respeito da Batalha de Kifangondo, passando a mensagem que é conhecedor dos factos e especialista de assuntos de guerra. Na verdade, nós angolanos temos o direito e o dever de reflectir sobre esse evento político e militar, mas devemos fazê-lo com responsabilidade, lisura, transparência, decoro e urbanidade. Quando isso não sucede, como no caso do cidadão Horácio Dá Mesquita, é pura desonestidade e malícia.

Eventos militares da magnitude de Kifangondo exigem, do ponto de vista de análise, uma estrutura de conhecimentos militares sólidos associados à capacidade de investigação militar e ao domínio das teorias militares. Eventos da envergadura de Kifangondo implica estar acima da rama do sensocomum e do empirismo. Na medida em que a abrangência militar implicam valorizar a ciência militar, a Polemologia, etc., etc.

Quando se deteve a abordar o tema sobre Kifangondo, recordando-se de uma conferência realizada no Comando do Exército, em 2011,Horácio Dá Mesquita diz o seguinte no seu texto inserido nessa publicação: "Veio a intervenção do General Miguel Júnior, que a dado momento falou da intensidade dos combates e chegou a pôr em causa se realmente houve uma batalha. Pedi um ponto de ordem.

- Senhor General, a mim pouco me importa se houve uma batalha ou não, mas pode ter a certeza que se tivessem passado por nós Angola hoje não existiria!

- Camarada Dá Mesquita, não quis pôr em causa o esforço pela independência e pela batalha (p.31)!”

Diante destas palavras, estamos perante um manipulador e intriguista, porque não teci esse tipo de considerações e muito menos dei esse tipo de resposta. Pois, os que estiveram nessa conferência sabem muito bem qual foi a minha resposta.Falando abertamente, devo dizer que fiz uma interrogação reflexiva sobre a batalha. Aliás, para cada assunto de estudo, como regra, adopto um sistema de interrogações, visto que as perguntas de partida, ou seja, as interrogações são comuns no contexto de diferentes estudos. Aproveito a oportunidade para informar que alguns participantes dessa conferência, incluindo Horácio Dá Mesquita, ficaram perplexos e não entenderam o sentido da minha interrogação reflexiva porque desconhecem essas práticas.De resto, eles continuam sem entender, porque não possuem os subterrâneos e os instrumentos da lavoura dos estudos militares. Esta é a verdade. Por outro lado, antes de começar a minha comunicação nessa conferência tive o cuidado de informar que não participei dos combates de Kifangondo, mas disse que estive nessa linha da frente na véspera do embate. Encontrava-me engajado noutra direcção.

As dúvidas da parte de Horácio Dá Mesquita subsistem, porque não possui uma estrutura de conhecimentos militares sólidos. Isso está evidente no texto dele. Também não leu o livro "A BATALHA DE KIFANGONDO, 1975, FACTOS E DOCUMENTOS”, produzido pela editora Mayamba. Assim, aconselhá-lo-ia a comprar esse livro, no qual poderia encontrar a minha comunicação denominada: "BATALHA DE KIFANGONDO – UM ESTUDO DE CASO”. Mas, como as duas edições desse livro já se encontram esgotadas, eis a transcrição  aqui de alguns excertos.

"No mundojá ocorreram, desde os primórdios, várias batalhas. Umas mais antigas e outras mais recentes, e todas contêm em si um manancial de dados úteis para a vida em diversas circunstâncias. Deste modo, essas batalhas,que exerceram uma influência significativa sobre a vida da humanidade e que ditaram o curso da história, têm sido objecto de estudo.

A par dessas e de outras batalhas, que se inscrevem no contexto dos grandes conflitos armados, o mundo regista há muito a ocorrência de combates de pequena monta associados aos diversos conflitos armados. E aqui devemos destacar os conflitos armados de baixa intensidade.À margem desta constatação, determinados combates militares, que sucedem no contexto desses conflitos armados, são designados como batalhas. Este é o caso de algunscombatesdo conflito armado de Angola, ocorridos no período entre 1975 e 1976. É neste âmbito que se denomina o embate militar de Kifangondo como uma batalha. Combate que resultou do choque entre várias forças militares. Desta maneira, vamos analisar o combate em referência paraverificar se ocorreu uma batalha e para saber que tipo de batalha. Este é o objectivo que persegue o presente estudo de caso relativamente ao combate em questão, visto que a mera descrição dos factos no nível do senso-comum não é suficiente.(…)

 

Teatro de operações e o combate

(…) O primeiro elemento a considerar é que as acções da FNLA e do MPLA faziam parte de duas campanhas militares concretas e distintas.As duas campanhas militares estavam a ser executadas há bastante.Assim, os combates de Agosto de 1975, em Luanda, obedeceram às linhas de força dessas campanhas militares.Logo, temos de entender que umacampanha militar é uma fase de uma guerra e ela implica, como regra, operações relacionadas entre si no tempo e no espaço. Ao mesmo tempo, ela é encaminhada para a obtenção de um objectivo específico e estratégico. (…)

De parte das FAPLA, depois da primeira operação que foi desencadeada  contra todas as bases do ELNA, das FALA e da facção Chipenda e que culminou com o controlo da capital, devemos destacar a preparação e a execução da "Operação Ciclone Negro”. Esta foi a segunda operação das FAPLA. Isso permitiu expulsar o ELNA de Caxito e criou  condições avantajadas para as FAPLA. Concluída esta operação, seguiu-se um conjunto de acções militares na direcção Ambriz-Caxito. Neste contexto, o ELNA recuperou terreno e as FAPLA recuaram e instalaram um sistema defensivo no morro de Kifangondo e em outras direcções. Com esta mudança no teatro operacional, há que perceber a segunda parte da campanha militar da FNLA.

Se a primeira parte da campanha da FNLA foi  a operação de entrar em Luanda e noutros pontos do país em grande e em força do ponto de vista militar e com um aparato significativo de militares zairenses, o que criou um clima de insegurança, intimidação, terror, e evidenciou espírito de superioridade militar, o prolongamento da sua campanha passou por outra ssoperação militar concreta e pontual.

(…) A direcção da FNLA concebeu o "Plano Operacional de 4 Novembro de 1975”, onde estabeleceu o JOUR "J”, isto é, o dia 9 de Novembro de 1975 como a data para o começo da ofensiva em direcção a Luanda. Nesse plano operacional constam o dispositivo e a ordem de conduta das forças do ELNA e seus aliados. Assim, começaram as acções operacionais das forças coligadas. Mas, as FAPLA já tinham organizado o seu sistema defensivo em Kifangondo e haviam tomado medidas para a contenção de incursões das forças contrárias. No dia 10 de Novembro, teve lugar o derradeiro drama. As FAPLA e as FAR  conseguiram conter o ímpeto ofensivo contrário, e às zero horas do dia 11 de Novembro de 1975, enquanto ribombavam os canhões, Dr. António Agostinho Neto proclamou a Independência Nacional. Assim, nasceu o Estado Nacional angolano.

 

A interpretação do combate

Este feito militar,que acabámos de descrever, está inscrito na nossa história. Entretanto, conforme dissemos na introdução, a ideia é interpretar o sucedido à luz das teorias militares e do saber acumulado sobre a batalha ao longo dos tempos.

(…) A configuração de uma batalha resulta de contactos contínuos entre forças militares devido às operações ofensivas e implica também a existência de um comando central para a condução de forças. Por outra, a magnitude de uma batalha é algo variável,  mas o número mínimo de baixas requerido é de mil para se poder considerar um determinado combate como batalha. No entanto, há quem sugira que qualquer critério objectivo de avaliação, como duração do encontro, número de homens engajados e número de perdas, é inadequado.

A par disso, como produto também dos estudos sobre as batalhas, há quem distinga dois tipos de batalha. Uma é a batalha como evento isolado e que se reveste de consequências políticas. Outra é a batalha incidente, isto é, que resulta de operações estratégicas no contexto de uma campanha em concreto. Na batalha incidente, as consequências políticas não se atribuem à batalha, mas, sim, à campanha como um todo.

Outro aspecto a reter, é que as batalhas diferem uma das outras, como já verificámos,mas elas têm algo em comum. Segundo John Keegan, "o que as batalhas têm em comum é humano: o comportamento dos homens lutando para satisfazer o seu instinto de auto preservação, o seu sentido de honra e alcançar determinado fim que leva outros homens a estarem prontos a matá-los. O estudo da batalha é, portanto, sempre um estudo do medo, e normalmente, da coragem (…)”.

Depois das considerações produzidas relativas ao conceito de batalha e ao conjunto de questões que gravitam à sua volta, retomemos  o  assunto sobre o combate de Kifangondo. Neste sentido, a preocupação é perceber, acima de tudo, a natureza e as particularidades da guerra que deu lugar ao referido combate, para depois partirmos para outros desenvolvimentos.O combate de Kifangondo sucedeu no contexto da guerra-fria e numa fase em que quase todos os conflitos armados que eclodiam no mundo eram inscritos nos conflitos armados de baixa intensidade.

(…) Assim, neste tipo de conflito os meios de combate são aplicados,em termos tácticos, com restrições. Como os meios militares são empregues num nível muito baixo, como tal  não há a possibilidade de se configurar uma batalha no contexto de um conflito armado de baixa intensidade. Kifangondo é tipicamente um combate de uma guerra de baixa intensidade. Entretanto,vamos prosseguir a análise do teatro operacional em causa porque  as primeiras linhas relativas ao teatro de operações e ao combate já foram expostas.

Quanto ao sistema de forças das FAPLA e FAR, do ELNA e aliados, devemos salientar o seguinte. Um sistema de forças tem de ser entendido como um ordenamento que se estabelece, em função a meios disponíveis, para manobrar e combater. O sistema de forças é a capacidade de acção material e moral, de fogo, manobra e choque. Em suma, é a aptidão para destruir um sistema de força contrário. As FAPLA tinham na sua composição uma brigada e outras tantas unidades, incluindo uns quantos militares das Forças Armadas Revolucionárias de Cuba (FAR), o que permitiu colocar as forças e os meios em dois escalões. Elas adoptaram uma posição defensiva. O ELNA e aliados dispunham de forças avaliadas até uma brigada e meia. Estes posicionaram-se de modo ofensivo.

A situação operacional atesta a existência de duas forças – FAPLA/FAR e ELNA e aliados – em pleno cumprimento de duas missões tácticas contrárias. Conhecidas as forças,as missões e o carácter das mesmas, avancemos para outras questões. Qualquer batalha, que seja objecto de estudo, implica ter em conta,do ponto de vista táctico, uma série de acções essenciais porquanto a vitória em uma batalha depende dessas acções. Estas acções são, nomeadamente: preparação, desdobramento, empenhamento de forças, ataque (defesa e resistência), decisão e golpe.

Por isso, a questão que se coloca é a seguinte. Como é que as partes se organizaram para o combate? As respostas estão expressas no próprio resultado final. Deste modo, vamos analisar as coisas em outros moldes. O ELNA e aliados, que se encontravam em posição ofensiva, só tinham como escolha a batalha ofensiva.Esta pressupõe quatro formas de realização: batalha ofensiva de ruptura de ala,paralela, frontal ou de envolvimento. Mas estes tipos de ofensivas só têm lugar quando há conhecimento e quando se tem em conta alguns factores tais como: terreno, inimigo, situação e possibilidades de acção. Pelo posicionamento e modo de agir do ELNA e aliados, a escolha recaiu para uma ofensiva frontal. Só que a natureza deste tipo de ofensiva favorece, na maioria dos casos, a quem se encontra numa posição defensiva e esteja interessado numa batalha defensiva.

Por sua vez, as FAPLA/FAR, como se encontravam em posição defensiva, seguiram a ideia da manobra defensiva a fim de travar esse tipo de batalha. Neste sentido,elas criaram condições e  tiraram vantagens do terreno demodo a resistir tenazmente. Para depois o bater, como é evidente, em uma ofensiva ulterior.A batalha defensiva concede, como norma, um lugar de destaque ao domínio do fogo através da articulação de um sistema de fogo de artilharia (…). Assim, a organização perfeita de fogos garantiu a supremacia das FAPLA/FAR e assinalou a reviravolta em toda a guerra, independentemente da missão posterior.

O fogo combinado das  armas assegurou o domínio do combate, instalou o caos nas fileiras das forças contrárias e conduziu-as à completa debandada.O moral cedeu e eles recuaram. Esta realidade excluiu por completo o contacto directo entre as forças das partes como uma das características inerentes à batalha.Mas as forças da parte contrária,que compunham a vanguarda e seguintes, elas viveram a face da batalha. A desordem e o recuo descoordenado atestam o horror que se instalou no ELNA e aliados.Nestas condições, o combate final, a 10 de Novembro, ficou circunscrito a algumas horas. No conjunto, os combates foram aproximadamente de quatro dias. (…)

 

Conclusões

O combate de Kifangondo, com o objecto de estudo, foi abordado em duas perspectivas. Uma é a perspectiva intrínseca tendo em conta a sua importância no contexto da vida de Angola. Outra é a perspectiva instrumental no quadro da questão da batalha em ambiente de conflito armado de baixa intensidade.Depois da interpretação dos dados mais importantes sobre o assunto em análise, podemos concluir que o combate de Kifangondo tem a dimensão de uma batalha político-militar. Kifangondo é uma batalha político-militar, visto que constitui o episódio mais importante da guerra de 1975 e é o único caso de combate que registou um elevado número de tropas de lado a lado.O componente político de Kifangondo deriva do fim em jogo e das consequências políticas do combate.A parte militar resulta da realização das duas campanhas militares em concreto com operações relacionadas no tempo e no espaço.Kifangondo constituiu, por excelência, o combate do desenlace do ponto de vista político e militar no contexto da guerra de 1975”.

 

Miguel Júnior |Historiador, Mestre em História Militar e Ph.D. em História e Gestão Estratégica

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